Laços de "família" - Revista Esquinas

Laços de “família”

Por Gabriel Coca Matias, Isabella Souza, Letícia Galli, Luca Nieri e Manuela Massera : agosto 1, 2023

"Uma senhora de algumas posses em sua casa", obra de Jean-Baptiste Debret, 1823/Reprodução

A discrepância entre o trabalho doméstico enquanto vínculo empregatício e o jargão “ela é praticamente da família” marcam uma das relações mais antigas e colonialistas da cultura brasileira

As classes mais altas no Brasil estão acostumadas com a presença de trabalhadores domésticos em suas casas, especialmente mulheres negras (aqui consideramos a nomenclatura usada pelo IBGE, em que o termo ‘negros’ engloba ‘pretos’ e ‘pardos’). De faxineiras a babás, muitas são tidas como “da família”, visto o aparente forte vínculo que é construído entre as partes. No entanto, estas relações aparentemente afetuosas mascaram as desigualdades de raça, classe e gênero que operam no Brasil. Desde a informalidade, o desrespeito aos direitos trabalhistas, até, em casos trágicos, a presença de trabalho análogo a escravidão, o trabalho doméstico traz a tona a história de um país marcado pelo autoritarismo e pela violência. 

No livro “Trabalho Doméstico”, publicado pela coleção Feminismos Plurais, a pesquisadora Juliana Teixeira traça um percurso histórico sobre a maneira como o trabalho doméstico se configura no Brasil. Ela aponta como há no tratamento de empregadas domésticas uma herança de práticas coloniais. A tensão entre o afeto e as relações de trabalho injustas e desiguais é algo que remonta ao passado escravagista do país – e que continua viva mesmo após o 13 de Maio de 1888.

Há, na forma como essa ligação se constrói, resquícios de práticas coloniais e do colonialismo interno, em que a lógica da Casa Grande se perpetuou e as famílias brancas seguiram utilizando da mão de obra negra para viver. No entanto, há uma máscara velada – respaldada no “jeitinho brasileiro” de lidar com problemas – que confunde a olhos nus um vínculo com caráter abusivo com uma conexão afetiva.

As relações hierarquizadas no trabalho doméstico se fazem presentes por meio de dinâmicas simbólicas, como pontua a autora. Isto se dá, por exemplo, na organização do espaço da casa, em que a empregada tem o seu acesso restrito a certos ambientes da residência fora do momento de labor. Aliando, também, ao fato de que os quartos de empregada são pequenos, normalmente juntos da cozinha, e na própria área comum dos prédios, em muitos casos, há a divisão entre elevador de serviço e elevador social. 

Rotinas exaustivas e violação de direitos 

Nilzete Silva, 65, trabalhou como babá e cuidadora de recém nascidos por mais de duas décadas. Segundo ela, o apego emocional que sentia com os bebês era algo marcante, um vínculo que extrapolava as relações profissionais: “Era difícil deixar meus bebês, cuidei muito de gêmeos, sempre chorava quando ia embora. O Alexandre (seu filho) me buscou uma vez, quando trabalhei nos Jardins, e ele me viu pegando as malas e chorando muito”. 

Nilzete comenta sobre seu dia a dia nas famílias e sua rotina no emprego. Segundo a babá, ela chegou a trabalhar por 24h seguidas, tendo que dormir em seu ambiente de trabalho:

“Eu ficava lá com eles o dia todinho. Se o bebê chorava de madrugada, só podia chamar a mãe se precisava amamentar e se elas não quisessem eu mesma tinha que pegar o leite, fazer e dar pro bebê.” 

A jornada de trabalho exaustiva não é algo raro para quem atua nessa área. Dormir no serviço, viajar e passar as férias com outra família e acordar de madrugada para acolher a criança são apenas algumas das tarefas impostas de maneira sutil e relativizadas ao olhar de grande parte da população. 

Impor este tipo de jornada à trabalhadora doméstica é algo que desrespeita a legislação trabalhista, cabendo inclusive a possibilidade de uma ação na Justiça por parte destas empregadas, como aponta a advogada trabalhista Franciele Carvalho: “Esses trabalhadores podem requerer indenização pela extrapolação da jornada, acúmulo de função, e ainda, as babás que cuidam dos filhos dos empregadores entre 22 horas e 5 horas deverão receber adicional noturno que corresponde a 20% sobre a hora noturna.”

As relações desiguais, hierarquizadas e com rotinas exaustivas trazem à tona o que a filósofa e escritora Marilena Chauí defende que a sociedade brasileira é autoritária e baseia-se em um “mito fundador”. Nesta teoria, a colonização portuguesa estabeleceu uma hierarquia socio-racial, baseada na exploração e na escravidão. Essa hierarquia está presente até hoje, permeada nas relações cotidianas, de forma que as violências são naturalizadas. 

Sociedade autoritária: um exemplo trágico

Em dois de junho de 2020, uma tragédia chocou o Brasil. Miguel Otávio Santana da Silva morreu após cair do nono andar de um prédio de luxo em Recife. O menino estava sob os cuidados de Sari Corte Real, que era patroa de sua mãe, Mirtes de Souza.
Naquele dia, Mirtes teve que levar o filho para o condomínio de luxo em que trabalhava. Em um determinado momento, teve que sair para passear com os cachorros de seus patrões e, por apenas alguns minutos, deixou seu filho de cinco anos de idade sob a vigilância de sua patroa. Quando voltou, Mirtes encontrou seu filho jogado no chão do prédio. Sari ainda tentou socorrer a criança quando a mãe chegou, mas o menino não resistiu. 

Nesta situação, fica claro a ligação da ideia de sociedade autoritária com os acontecimentos. O cenário foi preenchido por desigualdade social e de raça além da cultura da submissão do proletário ao chefe/patrão. 

A desigualdade social é vista no momento em que a empregada doméstica tem que deixar seu filho aos cuidados de sua patroa porque precisou sair para passear com os cachorros de seus chefes. Nesse momento, Mirtes Souza teve que abster-se de seu papel de mãe para cumprir seu papel de funcionária, priorizando o dinheiro/serviço. 

Assim, a sociedade autoritária exerce seu poder de forma agressiva e opressiva. Os direitos políticos, sociais e civis são fortemente oprimidos, o que acentua a desigualdade social e fortalece a cultura de submissão.

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Através da ótica legislativa  

Em 2023, completa-se uma década da aprovação da “PEC das Domésticas”, importante marco que assegurou direitos trabalhistas básicos, conforme já dizia na Constituição Brasileira de 1988. O fato de que essas trabalhadoras só tiveram seus direitos reconhecidos há 10 anos, demonstra como essa categoria não tem seu trabalho respeitado e reconhecido na sociedade brasileira. 

A informalidade também é uma característica do trabalho doméstico que tem se tornado cada vez mais presente na rotina dessas mulheres. De acordo com um relatório do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) em 2022, houve um salto de quase 9 pontos percentuais na proporção de diaristas dentro da categoria. O estudo aponta que isso é uma aceleração de um processo que já ocorria desde os anos 90. O trabalho como diarista está mais exposto à informalidade e precariedade que o das mensalistas, pois a PEC das domésticas não trouxe proteção trabalhista para as pessoas que exercem essa modalidade de trabalho. 

“Embora a PEC das domésticas tenha definido que, para o reconhecimento do referido vínculo de trabalho é necessária periodicidade semanal de no mínimo três dias, permanece muito comum a realidade de trabalhadoras sujeitas à informalidade. Ainda, muitas vezes mesmo que as trabalhadoras tenham o registro da carteira de trabalho, empregadores sonegam direitos com 13º salário, dispensar sem justa causa e outros.” diz a advogada trabalhista Franciele Carvalho.

Uma das prováveis razões para isso é o fato de que a esmagadora maioria desta categoria é composta por mulheres, e em especial mulheres negras. De acordo com outro relatório do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (DIEESE) em 2022, cerca de 91% das pessoas que trabalhavam como empregados domésticos eram mulheres. Além disso, o estudo, que se chama “O trabalho doméstico 10 anos após a PEC das domésticas”, apresenta que 67,3% destas trabalhadoras eram mulheres negras. 

 Mesmo com seus direitos previstos em lei, muitas trabalhadoras domésticas não conseguem levar seus casos à julgamento:

“Infelizmente não são tantos casos passíveis de judicialização. É necessário preencher uma série de requisitos para estar abrangido pela lei das domésticas, sendo: existência de subordinação, periodicidade de no mínimo três dias na semana na mesma residência, pessoalidade e onerosidade”, expõe Franciele.

O estudo do DIEESE aponta como situações da conjuntura econômica, política e sanitária no Brasil acabaram freando os possíveis avanços que a PEC das domésticas trouxe. Um exemplo apontado é o de registro com carteira assinada. Entre 2013 e 2015, houve um aumento da proporção de trabalhadoras com carteira assinada, mas a partir de 2017, na esteira da crise econômica, esses percentuais caíram. Além disso, durante o período da pandemia, se registrou uma alta de 4,2 pontos percentuais (p.p) no total de domésticas em situação de extrema pobreza e de 5,1 p.p no total de domésticas pobres. Tais dados ilustram um quadro de vulnerabilidade social das empregadas domésticas no Brasil. 

Reflexo da desigualdade e das relações que se construíram no Brasil, ao longo de história, a natureza do trabalho doméstico tem mudado na última década, como aponta a advogada trabalhista ouvida pela reportagem:  Há ainda uma longa jornada no acesso aos direitos das trabalhadoras domésticas, mas sem dúvidas a PEC é um marco na luta das trabalhadoras.

Editado por Mariana Ribeiro

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