"Nossos direitos já vêm sendo violados ao longo dos séculos": coletivos indígenas e a luta política - Revista Esquinas

“Nossos direitos já vêm sendo violados ao longo dos séculos”: coletivos indígenas e a luta política

Por Gustavo Orito de Carvalho, Maria Clara Villela, Maria Edhuarda Castro e Thaís Bueno : julho 3, 2023

Vindos de todas as regiões do país, cerca de 6 mil indígenas, de mais de 170 povos, estão mobilizados na capital federal, pela garantia de seus direitos originários e contra o marco temporal. Foto: Leopoldo Silva / Agência Senado

Coletivos indígenas contam sobre suas mobilizações na luta política contra as invasões territoriais e pela formação da juventude

Com os pés fincados no chão e a pele coberta de miçangas, Tchului encara a multidão de ativistas reunidos em roda para ouvi-la. Uma das mãos segura o microfone e a outra, a barriga protuberante. “Lutamos desde a nossa gestação”, começa. Fala por vinte minutos e, no seu discurso, frisa a necessidade de preservar a cultura indígena e a urgência em empoderar seus jovens na luta política.

À época do evento, promovido pela fundação Fundo Brasil de Direitos Humanos, a etnia Xokleng não imaginava que o julgamento do Marco Temporal, sete vezes adiado pelo Supremo Tribunal Federal, recomeçaria meses depois. A tese, além de retirar terras indígenas ocupadas depois da Constituição Federal, em 1988, transfere a competência demarcatória para o campo legislativo, o que faz a pasta do Ministério dos Povos Indígenas ser esvaziada mediante a aprovação do PL.

A mulher de longos cabelos pretos reivindicou seu território, o primeiro a ser julgado sob a tese alegadamente inconstitucional: “que no sul reconheçam a existência dos indígenas”, disse. Apesar do cenário otimista com o qual finalizou sua explanação, valendo-se do novo emblema dos povos originários, “Nunca mais um Brasil sem nós”, o território Xokleng possui um longo histórico de perseguições e está sob risco de ter suas terras novamente sequestradas.

O “povo que vive onde nasce o sol” passa por um processo de etnocídio desde o governo imperial, quando colonos alemães e italianos começaram a ocupar as áreas do sul paranaense ao norte gaúcho, mesmo território habitado pelos Xokleng. Originários primariamente da região oeste de Santa Catarina, as décadas seguintes à chegada europeia foram brutais. Os bugreiros, homens que conheciam a vegetação densa local, foram contratados pelo governo e por companhias colonizadoras para dizimar as aldeias.

Essa diminuição da etnia influenciou na redução da extensão povoada por eles. É o direito ao território que sobrou que está em discussão na política atual. Para além dos danos populacionais, Tchului conta que a religião ancestral desapareceu e é comum a falta de identificação dos jovens com seu próprio povo. “Conseguimos preservar nossa língua e temos anciões que ensinam às crianças, mas na aldeia a maioria é evangélica. O culto a terra e a natureza quase não existe mais”.

Há, no entanto, um sincretismo de credos. As músicas ritualísticas cristãs são cantadas na língua xokleng e acredita-se que os mais velhos têm visões “do outro lado” ao aproximarem-se do momento da morte. Foi a avó da jovem indígena, inclusive, que deu o nome da bisneta, quando Tchului ainda era criança, em um momento de alucinações.

A Associação da Juventude Indígena Xokleng, organização que ela faz parte, é um movimento de base com o propósito de instigar o “espírito de liderança” nos jovens. Essa iniciativa olha para o futuro, de maneira que eles consigam ocupar os espaços políticos tendo dentro de si “o sentimento de pertencimento e a autoestima” sobre suas origens desenvolvido.

O surgimento da ideia de Marco Temporal: Terra Indígena Raposa Serra do Sol

Os Xokleng foram o primeiro povo a ser julgado a partir da ideia de existir um Marco Temporal que garante ou não o direito dos indígenas à terra baseado na legislação do país. No entanto, foi durante o processo de demarcação do território da Raposa Serra do Sol, em Roraima, que o argumento nasceu.

Há nessa T.I, atualmente, 20 mil indígenas das etnias macuxi, wapixana, ingarikó, taurepang e patamona. Sua legitimação territorial arrastou-se por mais de uma década: foi identificada pela Funai em 1993, demarcada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e homologada somente em 2005 pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. A criação de um município dentro do território indígena e a invasão de arrozeiros marcaram os doze anos de luta pela conquista demarcatória.

Os conflitos institucionais e políticos provocaram divisões dentro da própria comunidade originária, posta à prova em uma ação ajuizada apresentada pelo senador Augusto Affonso Botelho Neto, em 2005, que requisitava a anulação da demarcação. Em 2009, na decisão do caso, o STF reconheceu que a delimitação era um “imperativo nacional” para preencher as lacunas civilizatórias do país, mas utilizou como base para estabelecer as fronteiras a área tradicionalmente ocupada pelos indígenas na Raposa Serra do Sol no ano da Constituição.

Hoje, a Raposa Serra do Sol é lar da Organização das Mulheres Indígenas de Roraima (OMIR), fundada em 1993 com o objetivo de dar voz às matriarcas nativas. “Queremos um lugar de fala igual ao dos homens e andar lado a lado com eles, defendendo os nossos direitos”, conta Norma Mailey, liderança indígena do território e integrante do coletivo. Devido a quantidade de etnias dentro da faixa de terra, em todas as comunidades há uma coordenadora local, que avalia as necessidades das mulheres de acordo com suas próprias aldeias.

A entidade promove atividades voltadas para o desenvolvimento cultural feminino, através de oficinas e palestras com temas voltados para os direitos humanos, a violência contra as mulheres, o alcoolismo dentro das aldeias e a pedofilia. Outro pilar que guia o trabalho de base da OMIR é o resgate da medicina ancestral utilizada pelos povos originários e a preservação da natureza, fundamental para a existência indígena. “Lutar pela liberdade e autonomia das mulheres indígenas são os propósitos que guiam nosso trabalho”.

Entre as discussões que permeiam a realidade dessas mulheres e de toda aldeia está o Marco Temporal. Roraima, por ser um estado com longo histórico de supressão dos direitos indígenas, não reelegeu Joênia Wapichana, a única figura que espelhava direta e positivamente a comunidade nos pleitos políticos do estado.

Acrescenta-se a isso o alinhamento favorável dos parlamentares roraimenses com o projeto de lei demarcatório e, muitas vezes, até de alguns coletivos indígenas. “Estamos debatendo nas nossas comunidades, mas sempre tem um ou dois que aceitam. É preocupante porque nós que estamos na linha de frente sofrendo ameaças ao representar as organizações.”

Norma comenta que a OMIR realizou reuniões para informar os jovens alunos e o resto das aldeias sobre a situação ameaçadora sob a qual encontram-se mediante aprovação da PL.

“É preciso que todos fiquem por dentro de tudo que estamos enfrentando e saibam do tamanho do retrocesso que vai afetar a todos os indígenas. Mesmo assim, no momento, nos sentimos sem força porque não conseguimos colocar nossos representantes para lutar junto conosco”, finaliza a ativista Wapichana.

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A ação de retomada como resistência: os Guarani Kaiowá

Os indígenas Guarani Kaiowá são a segunda maior etnia originária do Brasil, atrás apenas dos Tikuna. Atualmente, a maioria vive em áreas de reserva criadas pelo Serviço de Proteção ao Índio, órgão indigenista criado em 1910 e atuante até 1967. Isso se deve ao projeto colonizatório promovido pelo Estado brasileiro após o fim da Guerra do Paraguai. Em períodos consecutivos, o extrativismo de erva mate e a exploração agropastoril no Mato Grosso do Sul os utilizou como mão-de-obra e os expulsou dos seus territórios.

Apesar dos processos demarcatórios terem começado em 1988, os conflitos internos e as invasões continuam até os dias de hoje. Questões como fome, suicídios e assassinatos são problemas recentes de diversas comunidades. Em 2021, por exemplo, uma casa de reza foi incendiada em uma das primeiras aldeias Guarani Kaiowá demarcadas, o Rancho Jacaré. No ano seguinte, o assassinato a cinco tiros do guarani kaiowá Alex Lopes, que tinha dezoito anos, foi noticiado pelo jornal Carta Capital.

Nesse entremeio, há também as discussões sobre os limites territoriais oferecidos a uma das maiores populações indígenas brasileiras. Ao passo que as reservas possuem um viés discriminatório, uma vez que foram elaboradas como um lugar de adaptação para os indígenas, até que eles pudessem se integrar “à comunhão nacional”, suas terras ancestrais estão cercadas pelo agronegócio, sendo aquelas suas únicas opções.

As ações de retomada de territórios são a chave de muitas comunidades que decidem, por si só, demarcar os espaços que consideram seus por direito, pois já o ocupavam originalmente. A Retomada Aty Jovem Guarani Kaiowá é uma organização que, além de fazer isso fisicamente, toma para si o dever de produzir conhecimento sobre seu povo. Nascida das grandes assembleias do Aty Guasu Guarani e Kaiowá, os jovens da RAJ sentiram o chamado de construir lugares de debate que abarcassem integralmente suas necessidades e construíssem uma liderança mais atual e representativa de suas ideias.

“De 2000 a 2012 nos articulamos e, apoiados por lideranças tradicionais mais velhas, construímos nossa própria assembleia. Desde então estamos na luta pelo fortalecimento da nossa língua e identidade”, conta Vanderleia Rocha, liderança do coletivo.

A organização está produzindo um relatório atualizado sobre as demandas dos jovens em trinta terras indígenas com descrição detalhada das condições e lutas travadas pelo grupo vulnerável, que já passa dos vinte mil. Além de pensar em possíveis soluções para prevenir a prática de suicídio por enforcamento, comum entre os mais novos da etnia, a RAJ também se encarrega de encaminhar denúncias aos órgãos públicos para que possam reivindicar suas garantias constitucionais. “Nós existimos há mais de 523 anos. Nossos direitos já vêm sendo violados ao longo dos séculos, agora queremos que eles sejam respeitados. Basta.”

Na sua agenda de mobilização política, marcaram presença nas manifestações contrárias ao Marco Temporal. Vanderleia diz que, além de um retrocesso na luta pelos direitos indígenas, é uma ameaça que agoniza o povo Guarani Kaiowá. “Atinge diretamente nossa vida, mexe com tudo. Se for aprovado, um massacre vai acontecer. Algumas reservas já estão lotadas. Não tem espaço para mais ninguém. Sem nossas casas, não temos ideia para onde vamos. É muito difícil de aceitar.”

A presença nas redes sociais também é um das estratégias da organização, que as utiliza como forma de se posicionar e informar a sociedade sobre as pautas indígenas. No mês de maio, perto da retomada do julgamento do PL 490/2007 no STF, duas postagens contrárias ao Marco Temporal coroaram o perfil @atyjovemgk. Nelas, se referiram ao projeto de lei como uma “máquina de moer história”, que relega ao indígena a posição de invasor. “Nossas leis são muito anteriores, assim como nossa existência. As pesquisas mostram que 29% do território ao redor das TIs está desmatado, enquanto dentro das nossas terras este índice é de apenas 2%. O que vale mais: soja, arroz, eucalipto ou a vida?”, provocaram em um dos seus conteúdos.

Tekohá é uma palavra em guarani que significa “o lugar onde somos o que somos” usada pelos Guarani Kaiowá para referirem-se aos seus territórios originários. Apesar das invasões de bugreiros, arrozeiros e ruralistas serem marcadores da cronologia indígena ao longo dos séculos, as tekohás permanecem como um espaço de pertencimento inseparável da vivência nativa e os relembra que sua história não se resume a apropriações e etnocídio. Por isso, Vanderleia afirma que elas são inegociáveis: “Nossos antepassados resistiram até hoje e nós, jovens, que somos o futuro, vamos continuar resistindo.”

Editado por Ronaldo Saez

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