Empresário e ator relatam situações de assédio moral, agressão física e desconforto vividas por pessoas com nanismo
“Já me pararam na rua e falaram: ‘Posso alugar você?’. Eu não entendi: ‘Me alugar?’. ‘É, você não trabalha com humor?’”. Se esse relato te surpreende, é porque você, provavelmente, não tem nanismo. A contratação de pessoas com essa deficiência como meio de entretenimento em festas é recorrente, assim como comentários desse tipo.
Para alguns, como Fernando Vigui, 38 anos, trabalhar nesses eventos é a maneira encontrada para se encaixar em uma sociedade que lhes reserva apenas uma caixinha: a do humor. Fernando é ator e presidente da Associação Nacional de Pessoas com Nanismo do Brasil, a Nanismo BR. Criado em agosto de 2019, o coletivo é o primeiro do País administrado primordialmente por pessoas com nanismo, com o objetivo principal de quebrar estereótipos relacionados a elas.
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“Tinham várias questões que eu queria perguntar para o cara. Primeiro, você perguntou o meu nome? Você falou ‘bom dia’? Segundo, você sabe com o que eu trabalho? Terceiro, o que é essa história de alugar?”. O preconceito, para Fernando, é explícito, e contratar pessoas com nanismo para entreter pode ultrapassar uma linha muito tênue. “Mas não acho que falar para a gente não fazer isso [atuar no entretenimento] seja o caminho, porque foge muito da naturalidade que buscamos”, diz.
Pessoas com nanismo no entretenimento
Com baixa estatura e atributos físicos que encantam crianças e adultos, pessoas com nanismo são sucesso no ramo do entretenimento. O problema, alerta Fernando, é quando elas ficam restritas a isso e encontram dificuldade para escapar das amarras do estereótipo do “anão divertido”.
Como ator, Fernando dispõe de diversas competências, que vão desde a dramaturgia até o canto, mas ainda assim se vê limitado a papéis muito específicos devido à sua condição. “Com o tempo, eu fui vendo que aquilo [o nanismo] me gerava sempre os mesmos papéis, e eu não queria que fosse assim. Eu estudei, eu queria desafios, me provar como ator. Eu sou engraçado porque minha personalidade é assim, não por ter nanismo”, desabafa.
Esse cenário é fruto de séculos de rótulos eternizados. “As pessoas com nanismo, além de terem o papel de engraçadas, geralmente não são consideradas atraentes, sensuais. Não são vistas como pessoas interessantes para discutir sobre economia, negócios, jornalismo. São vistas apenas como pessoas interessantes para fazer os outros rirem”, critica o presidente da Nanismo BR. Para serem levados a sério, Fernando afirma que muitos se forçam para demonstrar seriedade e sobriedade em ambientes públicos, o que ele defende.
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Quebrando estereótipos
Segundo o ator, pessoas com nanismo sempre foram contratadas para eventos, mas recentemente algumas agências são “dos nossos para os nossos”, ou seja, possuem funcionários também com nanismo ou foram criadas por pessoas com essa condição. Este é o caso de Leo Fernandes, 45 anos, proprietário da Anões em Ação, empresa pioneira na contratação de pessoas com nanismo no ramo do entretenimento. Para ele, tendo essa deficiência “você tem que mostrar algo além do que a pessoa está esperando, e ela está esperando alguém engraçado”.
A quebra de expectativa é também uma quebra de estereótipos e tem como intuito mostrar que pessoas com nanismo conseguem se encaixar em diversos setores da sociedade. “O objetivo é mostrar que nós podemos liderar, produzir e até gerir uma empresa. Mostrar que podemos fazer mais do que uma simples animação de festa”, afirma Leo.
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A Anões em Ação atua na área de eventos desde 2004. À frente da parte administrativa, estão Leo e sua esposa, Cris Lourenço, que viram no entretenimento uma oportunidade para se divertir enquanto trabalham. “Fiz o caminho contrário das pessoas que trabalham em eventos. Entrei por opção, não por falta de opção”, conta o proprietário. “A gente é pago para se divertir. Quem é pago para se divertir?”
Embora a diversão faça parte do dia a dia do casal no trabalho, eles frequentemente se deparam com situações de capacitismo, a discriminação contra pessoas com alguma deficiência. “A cada dez eventos, um tem alguém que sai um pouco do limite. Por exemplo, a gente não curte que as pessoas nos peguem no colo, mas tem parceiro nosso que não liga, que não acha ofensivo”.
Agressões contra pessoas com nanismo
O preconceito contra pessoas com nanismo vai além de situações desconfortáveis. Diariamente, elas enfrentam problemas que vão desde uma cidade não planejada para suas necessidades até agressões físicas e verbais de desconhecidos.
Leo conta que “na época do programa Pânico, que tinha o quadro ‘Pedala Robinho’, sempre tinha um sujeito no evento que queria imitar o humorista replicando aquela situação” — em que o a ator Nestor Bertolino Neto, que interpretava o jogador Robinho, levava um tapa no pescoço.
Para Fernando, as consequências do programa eram ainda mais sérias: “A gente deixou muitas vezes de sair na rua porque as pessoas davam tapa na gente, elas se achavam no direito. Sobre esse tipo de papel, eu tenho minhas ressalvas”.
Por isso, desde a intensificação das agressões com a exibição do quadro, o proprietário da Anões em Ação adicionou no contrato da empresa uma cláusula em que afirma que os contratados não se submeterão a situações de constrangimento moral e físico.
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Fernando afirma que a luta contra a desumanização é constante, já que casos de preconceito são diários. “Uma moça da nossa comunidade disse, esses dias, que estava andando no metrô e uma mulher passou a mão nela e saiu andando. Ela foi atrás da senhora e perguntou o porquê de ela ter feito isso. E a resposta que recebeu não fugiu da normalidade: ‘Ah, desculpa, é que passar a mão em anão traz sorte, e eu preciso de muita sorte, estou desempregada’”.
Ainda que o capacitismo seja rotineiro, a pauta de igualdade para esse grupo é invisibilizada. O motivo por trás disso é a ideia de que pessoas chamadas comumente de “anãs” não possuem nenhum tipo de deficiência, apenas uma estatura menor do que a média. “Mas a gente tem problemas ósseos, dificuldades com o sobrepeso e várias outras questões”, explica Fernando. “É muito fácil trazer a discussão de racismo, transfobia, quando é conveniente. Com o nanismo, a gente sente que é sempre o último a chegar”, afirma o presidente da Nanismo BR.