O Caldeirão de Santa Cruz do Deserto não se resume ao seu bombardeio. Ao ser chamado de “quilombo”, resgata a resistência e afrodescendência
À procura de um lar, o Caldeirã0
Em 1889, José Lourenço Gomes da Silva, acompanhado por um grupo de pessoas, migrou da Paraíba até a cidade de Crato, região do Cariri, no Ceará. A assinatura da Lei Áurea no ano anterior, concretizando a abolição do sistema escravocrata de mais de 300 anos no Brasil não foi suficiente para garantir uma qualidade básica de vida para os descendentes de escravos, deixando esse povo às mazelas da sociedade: sem terra ou emprego, lugar para morar ou aonde ir.
José Lourenço era um homem negro, de origem de luta: de seu pai, havia herdado o ardor da justiça social, que participou da Revolta do Quebra-Quilos, na década de 1870.
Ao chegar em Crato, com 18 anos de idade, Zé Lourenço procurou a figura popular da região: Padre Cícero Romão Batista. “Padim Ciço”, além de clérigo com a imagem de “homem santo”, foi, em 1911, o primeiro prefeito de Juazeiro do Norte, tendo como missão de vida os ensinamentos de generosidade de Padre Ibiapina.
Padre Vileci Basílio Vidal, coordenador da Pastoral da Diocese de Crato, explica: “A história do Caldeirão é a história de beatos do Sertão e essa história começa exatamente com o Padre Ibiapina, que foi um grande missionário no Sertão nordestino. Ele fazia o trabalho de fortalecer o combate à miséria do povo, à questão das secas, e construía casas de caridade para acolher os desvalidos.”
Dedicado ao resgate da memória do Caldeirão, Padre Vileci conta que Zé Lourenço, ao chegar ao Ceará e conhecer Padre Cícero, tornou-se um beato e logo ficou responsável pela propriedade arrendada (alugada) do Sítio Baixa Danta.
À uma fazenda árida e seca, o beato trouxe vida com uma farta produção frutífera e um modo de distribuição fundamentado na partilha. O povoado tomou uma proporção maior ao receber uma grande quantidade de pessoas, que migrava de todo o Nordeste para o local.
Com o desejo de vender a terra, o proprietário desfez o contrato de arrendamento, deixando o povo do Sítio sem terra para sobreviver. Como solução, em 1926, Padre Cícero cedeu uma de suas terras localizada a uns 20 quilômetros dali, chamada de Caldeirão dos Jesuítas, de difícil acesso e distante do centro urbano. Padre Vileci explica:
“No topo e com uma vista do Juazeiro, Padre Cícero manda aquele pessoal para um local chamado “Caldeirão dos Jesuítas”, que recebe o nome de ‘Caldeirão’, pois lá tinha um caldeirão esculpido naturalmente, uma espécie de tanque de pedra que acumulava água, e não secava nunca.”
Com a mudança, a comunidade perdeu muita coisa. Mas, com as mesmas metodologias, tornou à autossuficiência. Cada item produzido era colocado nesse grande armazém, onde havia uma pessoa responsável pelo controle de distribuição de acordo com a necessidade de cada família. Além disso, o beato organizou oficinas de carpintaria e ferreira, por exemplo, de forma que todos trabalhassem e contribuíssem com a prosperidade do Caldeirão.
Segundo o relato do jornalista José Alves de Figueiredo, que acompanhava (o desenrolar) da comunidade “ali não não se viam armas, além das destinadas ao trabalho: machado, foice, enxada e etc” e produções, como a de couro e de algodão, por exemplo, eram bastante promissoras.
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Além do trabalho do beato e do auxílio de Padre Cícero, o Caldeirão contava com Isaías, uma espécie de primeiro-ministro, e com Severino Tavares, que cuidavam da segurança do beato e da comunidade. Pouco mais tarde, o “Caldeirão dos Jesuítas” ganha um novo nome, que perdura até os dias atuais: “O beato fez parte da “Ordem dos Penitentes”, que era uma irmandade de oração que fazia procissões e rezas com uma cruz. Por força disso, o Caldeirão passa a ser chamado de “Caldeirão de Santa Cruz do Deserto”, esclarece Padre Vileci.
Sua fartura era tanta que, com a chegada da grande seca nordestina de 1932, o Caldeirão foi um dos únicos refúgios de muitas famílias sertanejas, que encontravam ali a solução da fome e da miséria. Nesse momento, a comunidade chegou a receber mais de 500 pessoas, tendo sido um momento bastante significativo para a história do Caldeirão.
No entanto, uma comunidade autônoma dissociada ao Estado pode incomodar um sistema de poder elitizado. Padre Vileci afirma:
“Com uma consciência social de igualdade e fraternidade, e movido pelo lema de Padre Cícero de “Oração e Trabalho”, o beato organiza o Caldeirão de tal forma que chega a ter uma ideia de quilombo.”
A tentativa de queimar uma história
Com a morte de Padre Cícero em 1934, a figura do beato Lourenço tornou-se protagonista em Juazeiro do Norte. Uma reportagem escrita pelo jornalista Tarcísio Holanda, em 1981, para o Jornal do Brasil, afirma que a comunidade do Caldeirão chegou a 3 mil pessoas.
No entanto, apesar do histórico de auxílio e acolhimento, José Lourenço e Padre Cícero sofriam bastantes perseguições: o prestígio e a admiração do povo e de romeiros não agradava as autoridades locais de poder público, principalmente após a Revolução de 1930, quando Getúlio Vargas se instituiu autoritariamente no poder presidencial por um golpe de Estado.
O cenário agravou-se, uma vez que Padre Cícero, em seu testamento, havia deixado suas terras para salesianos. Querendo a posse das propriedades, eles contrataram o advogado e então deputado estadual, Norões Milfont, que se organizou contra o beato.
Tarcísio Holanda escreve: “Foi até ao Governador Menezes Pimentel e a autoridades religiosas acusar o ajuntamento de ser uma ameaça comunista, brandindo com a lembrança de Canudos e de Antônio Conselheiro.”
Em setembro de 1936, as principais autoridades de poder do Estado, incluindo o governador Pimentel, o Chefe de Polícia Cordeiro Neto e o bispo de Crato, Dom Quintino Rodrigues de Oliveira e Silva harmonizam a invasão do Caldeirão por forças policiais. Já tendo sido informado, o beato emigrou para a serra do Araripe, fugindo de delitos jamais cometidos.
Ao ser invadido, o Capitão José Bezerra é posto como interventor do Caldeirão. Conforme as pessoas eram expulsas e mandadas que voltassem a suas terras natais, suas casas eram queimadas para que não houvesse a chance de se reerguer um novo ajuntamento.
Com o tempo, puderam se . Em maio de 1937, Severino Tavares, sem o apoio do beato Zé Lourenço, se juntou com cerca de 200 homens e armou uma emboscada, matando o Capitão José Bezerra.
O episódio acendeu uma chama de algo que, no fundo, já ameaçava acontecer eventualmente. Tarcísio Holanda detalha o acontecimento de 11 de maio: “Às 14h deste dia, […] o Governo do Estado enviava de Fortaleza uma companhia do 1º Batalhão de Combate e uma Seção de Metralhadoras da Força Pública”. O então Ministério da Guerra autorizou o decolar de três aviões até a região, metralhando o acampamento.
Foi o primeiro bombardeio aéreo sobre um agrupamento civil no país. O ataque à serra do Araripe resultou numa luta corpo a corpo: os seguidores do beato tentaram arduamente resistir às forças militares. Segundo o Chefe de Polícia, Cordeiro Neto, morreram por volta de 200 pessoas e “não havia utensílios para enterrar os mortos”, portanto, mandou que incinerassem todos os corpos com gasolina.
Na tentativa de um recomeço, Severino Tavares liderou um grupo de pessoas até a comunidade Pau de Colher, mas também acabou dizimada em 1938 pelo estado de Pernambuco.
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Após certo tempo, o beato pôde voltar ao Caldeirão e refazer suas plantações, sendo vigiado pela polícia de Crato e de Juazeiro. Com o requerimento das terras pelos salesianos, o beato retirou-se, eventualmente, do local, mas abriu um processo judicial contra o Estado do Ceará no ano de 1944. Em uma nova comunidade em Pernambuco chamada União, o beato Zé Lourenço viveu até 12 de fevereiro de 1946, vítima de peste bubônica.
O reflexo de uma mente colonialista
O coronelismo e a política do café-com-leite pôde reforçar a lógica de uma troca de favores, que historicamente beneficia elites detentoras do controle político-econômico. Com Getúlio Vargas na presidência, tais oligarquias locais perderam força, mas a presença de interventores nos estados reproduzia a mentalidade do governo, difundida nacionalmente.
A forma de trabalho e a prática religiosa do Caldeirão marcaram a comunidade como uma grande ameaça comunista, ideia muito propagada no governo Vargas. Além disso, no contexto de intensa migração ao Caldeirão, os grandes latifúndios começaram a perder mão de obra, aumentando a insatisfação das elites agrárias nordestinas.
Em entrevista à ESQUINAS, o intelectual quilombola Antônio Bispo dos Santos, também conhecido como Nêgo Bispo, afirma a diferença entre esses conceitos:
“O Quilombo Caldeirão foi bombardeado por ser uma ameaça ao modo de vida colonialista. Os quilombos nunca foram comunistas… os quilombos sempre foram quilombos. O quilombo é um modo de viver. O comunismo é uma teoria.”
Historicamente, o ódio ao comunismo é exaltado em discursos ideológicos da extrema-direita. O cientista político, André Keysel, entende o “anticomunismo” como um nome do ódio ao potencial de emancipação da democracia, tendo como apoiadores as Forças Armadas e a Igreja. De forma análoga, tais instituições reforçaram esse discurso na articulação contra o Caldeirão.
Ademais, é claro o papel da imprensa local na perseguição explícita àquele povo, usando de sua credibilidade para deslegitimar lutas, contrapondo-as ao regime vigente. Raquel Caminha, historiadora e atual gestora do Museu do Ceará, compreende que “ter acesso aos meios de comunicação e à informação também é uma forma de poder e, quem não tem, não consegue os espaços de denúncia necessários para uma reparação do Estado”.
O uso da credibilidade da imprensa junto ao autoritarismo em 1934 ficou evidente quando José Alves de Figueiredo foi preso após publicar um artigo jornalístico a favor do Caldeirão. Ademais, Tarcísio Holanda reclamou do sumiço de muitos jornais da época da Biblioteca Pública: o apagamento da memória pode ser o principal meio de mudar os motivos pelos quais uma comunidade como o Caldeirão deve ser lembrada.
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O resgate da ancestralidade no Caldeirão
Em um país construído sob uma lógica eugenista e de discriminação étnico-racial, o reconhecimento de africanidades e afrodescendências pode ser bastantfe falho ou quase inexistente. Histórias antigas como a do Caldeirão, com diversas versões e ressignificados, podem se perder no tempo ou espaço.
A luta por terras no Brasil é de caráter histórico e racializado, tendo como principal nome o Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), que é frequentemente o centro das discussões na Câmara Federal, por exemplo.
Desde 1991, o Assentamento 10 de Abril, em Crato, pode se mostrar como uma ressignificação do Caldeirão. Para Maria Ana da Silva, assentada e militante do MST, o Caldeirão é um grande simbolismo para a conquista de territorialização desse espaço pelo movimento.
Após terem sido chamados de “ladrões” e “baderneiros”, Dona Ana contou a vitória quando o Estado cedeu a titulação do local onde, atualmente, mais de 50 famílias vivem baseadas no trabalho coletivo.
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No entanto, Rafael Ferreira da Silva, professor e pesquisador vinculado ao Núcleo de Estudos em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais (NEGRER) da Universidade Regional do Cariri (URCA) refletiu acerca da contradição do Estado ao lidar com ambas comunidades:“O Estado reconhece o Assentamento 10 de abril, mas não reconhece o Caldeirão de Santa Cruz do Deserto, mesmo que esse tenha nascido cerca de 64 anos antes. A única coisa que se conta é que houve um massacre, colocando o povo negro numa subalternernidade subalternidade terrível.”.
Para o professor, é a partir do reconhecimento da que o indivíduo se vê como protagonista da história daquele lugar, incluindo as ideias de catolicismo e comunismo negros.
O entendimento do Caldeirão como quilombo se daria por um resgate das africanidades ainda presentes na memória e fisicamente.
Apesar da falta de investimentos para o cuidado com o local, o Caldeirão tornou-se um ponto turístico, contando com o Poço do Caldeirão e o Casarão do beato, por exemplo.
Nêgo Bispo preocupou-se em explicar o caráter da palavra: “Antes de destruírem Canudos, destruíram Palmares, que foi chamado de quilombo e essa palavra se tornou tão poderosa e potente que passou a assombrar.”
Raquel Caminha, ao também reconhecer o Caldeirão como quilombo, relatou sobre a memória e a verdade como ferramenta de luta ao afirmar que o espaço deveria ser considerado um patrimônio.
O Museu do Ceará conta com os módulos “Padre Cícero: mito e rito” e “Caldeirão: fé e trabalho”, com acervos de objetos como a cruz de madeira, fotos do beato e de seus seguidores. Atualmente, devido a uma reforma, o Museu encontra-se sem prazo estimado para reabertura.
Como poeta, Nêgo Bispo recita a última estrofe de sua composição:
“Porque mesmo que queimem a escrita,
Não queimarão a oralidade.
Mesque que queimem os símbolos,
Não queimarão os significados.
Mesmo queimando o nosso povo
Não queimarão a ancestralidade.”