Pouca diversidade nas redações jornalísticas é reflexo histórico de um passado em que os negros nunca puderam contar sua própria história
O jornalismo como fator de transformação social pode moldar a opinião pública e refletir os panoramas da sociedade. No entanto, ao observar uma estrutura majoritariamente branca das redações, esse jornalismo pode distorcer narrativas e ratificar o caráter estruturalmente racista do meio social.
Segundo dados de 2021 do Perfil Racial da Imprensa Brasileira, os negros representam apenas 20% dos jornalistas brasileiros e são maioria nos cargos operacionais, como repórter e redator, ocupando 60% deles, enquanto pessoas brancas desempenham 61,8% dos cargos de chefia.
“Conseguimos encontrar a subrepresentatividade nos cargos de liderança e de tomada de decisão. Porque não adianta uma redação com 80% dos jornalistas negros se os cargos de chefia são de pessoas que não possuem um olhar racializado”, diz a CEO e fundadora do veículo antirracista Notícia Preta, Thais Bernardes.
O IDEAL DE UMA NOVA IMPRENSA
A imprensa no Brasil inicia-se oficialmente, após poucas tentativas, apenas no século XIX com a chegada da Família Real portuguesa em 1808. Anteriormente, pelos últimos 300 anos de um Brasil colonialista, a circulação de periódicos ou livros impressos era proibida e a informação temida: a sustentação de um povo sobre o degrau da ignorância apenas beneficiaria um sistema construído pela lógica da dominação e da existência de uma cultura hegemônica.
Com um caráter bastante opinativo, os jornais da chamada Imprensa Régia expressavam críticas ao governo e eram destinados a uma pequena parcela da alta sociedade, dado que a maioria populacional brasileira ainda era analfabeta.
Assim, permitida a criação de jornais ao redor do país, surge o periódico “O Homem de Cor”, em 1833, pelo jornalista Francisco de Paula Brito, o qual denunciava o racismo e validava o povo negro como cidadão de direitos. Em cada uma de suas cinco edições, levou no cabeçalho o artigo 179 da Constituição de 1824: “Todo o Cidadão pode ser admitido aos cargos públicos e civis, políticos e militares, sem outra diferença que não seja a de seus talentos e virtudes.”
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A IMPORTÂNCIA DE UM OLHAR PLURAL
A atividade jornalística retrata a sociedade, mas também influencia, moldando os interesses do debate popular. Na década de 70, foi desenvolvida a Teoria do Agendamento pelos pesquisadores Maxwell McCombs e Donald Shaw, a qual entende que o público interpreta os assuntos mais importantes aqueles que mais são expostos pela mídia. Nesse sentido, constrói-se a base da criação de consensos entre a população, secundarizando temas indiretamente.
A partir desse conceito, o professor e jornalista Nelson Traquina, ao estudar sobre a teoria do jornalismo, definiu a existência de um pólo ideológico das notícias: a mídia tenderia a reproduzir a ideologia do sistema dominante, sustentando a visão de mundo das elites políticas.
Assim, a pluralidade na estrutura organizacional se revelaria fundamental para a construção da opinião pública. “Se olharmos a época da escravidão, os negros não podiam falar, como naquela imagem da escrava Anastácia com a máscara de Flandres. A questão da oralidade é importante para manter a cultura de um povo e transmitir conhecimento. Cada um tem sua bagagem de conhecimento, vivências e formação social e, na hora de escrever uma matéria, imprimimos esse olhar e essa maneira de olhar o mundo”, comenta Marcelle Chagas, jornalista e coordenadora da Rede de Jornalistas Pretos.
A escuta de intelectuais e referências com diferenças ético-raciais fomentam a visibilidade e a legitimidade de outros grupos sociais e, ao produzir uma matéria, é necessário abrir o campo de visão para diferentes especialistas, incluindo narrativas e fugindo da ideia de ‘fonte única’. “Criar essa cultura de procurarmos fontes além do que estamos acostumados é algo essencial para uma visão antirracista. É um exercício necessário das redações para que a gente diversifique as fontes. O Notícia Petra possui uma lista apenas com fontes negras. Ninguém melhor que nós para falarmos de nós”, diz a fundadora do Notícia Preta.
“Formamos os nossos jornalistas em comunicação antirracista. Aprender técnicas e uma segunda língua todo mundo aprende. O que constitui um jornalista é o que ele traz de valor dentro dele. Se tivéssemos processos seletivos para trainees e estagiários que levassem em conta outros pontos além do inglês fluente e das experiências vividas, teríamos uma entrada bem diferente”, acrescenta Thais Bernardes.
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A DESLEGITIMIDADE PELA MÍDIA
No início de 2022, o artigo “Racismo de negros contra brancos ganha força com identitarismo”, publicado pela Folha de S.Paulo, defende a tese do racismo reverso, levantando ideias, como a suposta existência de uma supremacia negra. Ao deslegitimar a luta antirracista, recebeu diversas críticas nas redes sociais pelo posicionamento do autor, mas, principalmente, pela conformidade de um dos maiores veículo de comunicação do país.
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O objetivo de atingir uma comunicação antirracista é atrasado pela concepção de liberdade de expressão e discurso de ódio. Marcelle Chagas destaca o ambiente online como um facilitador desse cenário: “O impacto da desinformação é real e a internet favorece essas micro agressões a população negra, é um reflexo da nossa sociedade no campo virtual. É um racismo já estruturado”. A distorção de narrativas serve como ferramenta da classe dominante para manter suas forças político-sociais.
“É pensado para confundir. A reversão do discurso é malicioso e muito bem pensado para mudar a lógica, e isso não tem sentido dentro da nossa estrutura histórica. A nossa proposta não é o oprimido virar opressor, mas sim, uma sociedade equitativa. Artigos como esses são enormes desserviços”, completa a CEO do Notícia Preta.
UMA LUTA SOLITÁRIA
O estudo do Perfil Racial da Imprensa Brasileira indica que 98% dos profissionais negros encontram dificuldades na carreira jornalística. Associado a isso, a questão de gênero é um fator adversativo: as mulheres são 36,6% nas redações e, dentre as entrevistadas, 85% das jornalistas negras constataram terem sido vítimas de misoginia e racismo.
“É necessário compartilhar as matérias dos repórteres negros que você segue, porque é a melhor forma de levar essas pessoas para outros lugares dentro da profissão. Espalhar somente conteúdos de jornalistas brancos não ajuda. Do lado de cá, tem que ter essa vontade de buscar mais negros para entrevistas e, do lado do leitor, é preciso ter o entendimento de que qualquer engajamento, positivo ou negativo, eleva esse conteúdo com outras pessoas”, ressalta Matheus Moreira, repórter da Deutsche Welle Brasil.
O diretor do Sindicato dos Jornalistas de São Paulo e membro da Cojira (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial), Fábio Soares, ao participar ativamente na realização de eventos que provoquem reflexões na sociedade, lamenta o caráter ainda bastante individual da luta racial: “É muito difícil despertar colegas negros para as discussões. É uma luta solitária. Não basta só colocar pessoas negras na empresa, é necessário ter um letramento racial e entender a importância de colocar pessoas negras comprometidas em impedir que o racismo se prolifere”.
A falta de jornalistas negros impede a criação de suas próprias narrativas e, ao ratificar a majoritariedade da população negra no país, o perfil atual das redações não espelha a realidade social. “Por estarmos em um estado democrático por direito, e nos entendendo como pessoas que não gozam dos direitos que a democracia prega, tentamos fazer isso no jornalismo. Enquanto não houver diversidade nas empresas de comunicação, haverá desigualdade racial e social”, completa Soares.