O retrato da negligência das políticas de segurança pública no Rio de Janeiro através UPPs, as Unidades de Polícia Pacificadora, e seus impactos negativos
As UPPs, ou Unidades de Polícia Pacificadora, foram projetos do governo do estado do Rio de Janeiro com a forte intenção de desacelerar os crescentes índices de violência urbana e diminuir a presença do tráfico e das milícias dentro das comunidades, principalmente Complexo do Alemão, Maré e Jacarezinho (que, somados, equivalem a mais de 250 mil habitantes).
Inspiradas nas missões pacificadoras da ONU, as unidades tinham como objetivo ocupar as zonas dominadas pelo crime e buscar um estabelecimento de ordem e “paz”, palavras que carrega alegoricamente em seu nome.
Impossível separar essa ambição no passado ano de 2008 (ano de início da aplicação do modelo) dos eventos que viriam a acontecer na capital do estado na década seguinte. O estado estava prestes a receber a Jornada Mundial da Juventude, Copa do Mundo de Futebol e as Olimpíadas e Paralimpíadas, eventos de magnitude global e que foram de suma importância para a tomada de decisão de aplicar uma polícia, primeiramente, pacificadora.
Fruto de diversas tentativas incapazes de sanar o problema vivido pela sociedade fluminense, as UPPs têm um início promissor em sua aplicação, diminuindo os números de assassinato dentro da metrópole carioca em seus primeiros anos.
O problema dela atém-se a algo cíclico dentro da política do Rio. Segundo Jacqueline Muniz, de 60 anos, antropóloga, socióloga e professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), esse fracasso começa quando, “contrariando o próprio planejamento feito pela corporação, os grupos políticos ‘pegando carona’ na experiência resolveram prolongar para que tivesse resultados eleitorais”.
“Ninguém está mais preocupado se aquilo está funcionando como tem que funcionar. Aí Amarildo é assassinado, em uma favela da zona sul, com câmera de vídeo. Aquilo já era um sinal desse esgotamento. Desse crescimento linear que não poderia acontecer. Tem que crescer em qualidade, não em quantidade”, completa.
Assim, esse uso das ações policiais como palanque eleitoral gerou reflexos inversos na realidade. De 2008 para cá, os índices de criminalidade que, a princípio, foram reduzidos, começaram a atingir altas recorde.
Segundo dados do Instituto de Segurança Pública (ISP), a taxa de homicídios, que havia sofrido queda entre 2008 e 2012 (de 7.134 para 4.666), voltou a subir e se aproximar de números anteriores às unidades, chegando em 2017 à marca de 6.731.
Além desses, delitos como roubos na rua, que tiveram queda de 88.495 para 58.763 entre 2009 e 2012, atingiram alta histórica de 127.098 casos em 2016. E, roubos de carga, que eram 4.472 em 2007, caíram para 2.619, e voltaram a subir de maneira exponencial em 2017, atingindo 10.599 casos.
Sobre essa questão da falha, Jacqueline diz:
“O programa foi sabotado por dentro, pelas próprias estruturas do Estado. Porque tinham setores que não estavam interessados que aquilo desse certo, tinha que sabotar. Esse programa teve orçamento, recebeu dinheiro internacional, teve orçamento provisionado. Portanto, era possível fazer boas experiências, ter boas práticas e gradualmente, ao longo do tempo, ir tornando cada vez mais clandestina, menos ostensiva e armada a atividade criminosa.”
A professora completa o raciocínio pontuando como havia um problema grande na logística implementada para aplicação do programa, uma vez que foi aumentado o plantel de agentes para ingresso nas operações dos postos, mas esses novos oficiais não tiveram tempo de ser treinados propriamente.
“A polícia do Rio pulou de 29 mil para quase 45 mil. Entraram em torno de 10 a 12 mil. Muitos já saíram. Muito maior do que a PM do Espírito Santo, da Paraíba, em um período de poucos anos, isso é incalculável. Como você treina 12 mil pessoas simultaneamente? Como você distribui salas de aula?”
Essa incapacidade de treinamento de seus novos recrutas vai contra uma proposta que o próprio governo havia anunciado no diário oficial da época. Em 3 de março de 2008, foi oficializado via Diário Oficial a implementação do projeto e, dentre as considerações oficiais, está pontuada a “necessidade de aprimorar a estratégia de formação e capacitação continuada dos profissionais de segurança pública que contribuam para com o Programa de Polícia Pacificadora”. Algo que não foi correspondido pelos governos seguintes.
Além disso, Jacqueline adiciona que, na intenção de utilizar as UPPs nas campanhas políticas, o projeto foi sendo descaracterizado através da alta implementação de Unidades Pacificadoras por toda a cidade. O que seria uma medida pontual e gradual passou a ser prometida aos montes à população. Assim, com mais postos, menos investimento e atenção eram voltados a cada uma.
Com mais um projeto de “pacificação” do Rio de Janeiro sem sucesso, sobra ao povo seus reflexos e carregar as chagas desse processo, que torna incapaz uma melhora de vida e impossibilita a mobilidade social das camadas mais pobres da população.
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Do morro ao asfalto
Essa dinâmica violenta estende-se na vida fluminense há décadas e não aparenta uma solução próxima. Modelos de solução se acumulam, mas mantém a mesma condição encontrada anteriormente, quando não pior.
Desde os primórdios da Guerra às Drogas, entre a década de 1970 e 1980, até o mais recente fracasso das Unidades de Polícia Pacificadora, a posição que os moradores das periferias continuam a mesma: a do medo.
“Diante da covid, as pessoas ficavam entre a cruz e a caldeira. Entre a possibilidade de morrer de vírus e a de morrer de um tiro. Essa é a experimentação da juventude popular. Por isso, o medo de sobrar era mais desesperador do que o de morrer. Sobrar é fazer tudo certo, conseguir estudar, fazer um vestibular dentro da favela, entrar na faculdade pública, no seu grupo de funk, de passinho, e as coisas desandarem, e acabar perdendo tudo isso porque você não tem estabilidade, você não tem previsibilidade na sua rotina. Então, ao não ter rotina, você não tem como planejar a sua vida, nem sonhar”, explica Jacqueline.
Essa condição constante de aflição experienciada principalmente pelos jovens do subúrbio, condicionadas pela tutela do crime organizado e das milícias, e largada às traças pelo poder público, perpetua uma posição de subalternidade aos moradores das favelas, os impossibilitando de mobilizar uma saída dessa condição.
Mobilidade literal e metafórica, uma vez que o próprio deslocamento de dentro para fora dos complexos não é possível no estado atual da segurança pública do Rio. Para ilustrar: de acordo com o IBGE, na Pesquisa Nacional de Saúde Escolar (PeNSE), na cidade do Rio de Janeiro em 2019, 21,4% dos alunos do ensino público deixaram de ir para a escola por não se sentirem seguros no trajeto, um número que vem em ascensão contínua desde 2009 (ano que registrou números na casa dos 7%, três vezes menos).
Outro dado sobre a questão é a quantidade de alunos que disseram não se sentirem seguros dentro do ambiente escolar. A capital carioca apresentou 11% dos alunos que declararam ter medo dentro do ambiente educacional em 2019, crescimento de 5% em relação ao ano de 2009.
Isso elucida a questão do receio de ficar, apresentado por Jacqueline.
Qual a perspectiva de futuro para essa geração de crianças e adolescentes que são impossibilitados de sequer ir à escola? Com que ferramentas esses jovens vão se habilitar a ascender socialmente?
Enquanto o poder público lavou as mãos na última década, a dinâmica manteve-se a mesma e apresentou poucos respiros de melhora. Os trabalhadores dessas comunidades seguem em condições precárias de emprego, geridas pelo grande capital do centro urbano da “cidade maravilhosa”, mas sem que esse trabalho retorne às favelas. Colônia e metrópole. Asfalto e morro. Um crescimento às custas justamente dessa população marginalizada e largada ao incerto.
Nesta dinâmica, quem fica não tem perspectiva pelo temor da morte, e é velada uma das principais facetas da sociedade brasileira: o autoritarismo. Essa naturalização da violência, incorporando-a ao imaginário popular, permite que essa posição do povo pobre e preto se mantenha.