Com ajuda de voluntários, o objetivo do Inumeráveis é humanizar as estatísticas que estampam os jornais no período de pandemia
“O Inumeráveis me traz um pouco de alento. Me traz a certeza de que tem muita gente boa preocupada com as pessoas em meio a todo esse caos e descaso que estamos vivendo, principalmente aqui no Brasil.”
Gustavo Kosha, voluntário do projeto Inumeráveis
Projeto Inumeráveis
Por trás de cada uma das mais de 94 mil vítimas da covid-19 no Brasil há uma história, uma família e, acima de tudo, uma unicidade. Com o intuito de celebrar cada trajetória interrompida pelo novo coronavírus, o artista e designer Edson Pavoni juntou-se ao empreendedor social Rogério Oliveira para desenvolverem o projeto Inumeráveis.
Acompanhando o projeto desde o início, a voluntária Gabriela Veiga é responsável pela gestão comunicativa do Inumeráveis. “A ideia nasceu de uma sensação, de um desconforto por parte dos dois criadores ao acordar todos os dias e ver a pandemia ser retratada de forma matemática e fria. Então, eles decidiram humanizar o processo e contar a história por trás dos números”, diz Gabriela sobre o projeto.
“Não há quem goste de ser número, gente merece existir em prosa.” Com esta frase em seu site, a iniciativa mostra sua única filosofia: nada é contabilizado. Não são contados os números de voluntários, média de histórias recebidas, nada. É contra a política pregada, e nada dentro do memorial é transformado em estatística.
Inicialmente, o Inumeráveis contava com um grupo menor de membros para coletar as histórias de familiares das vítimas. Porém, com a expansão do movimento, hoje a equipe supre sua necessidade com jornalistas, voluntários e, sobretudo, contadores de história. De acordo com Gabriela, o objetivo do memorial é retratar a história de 100% das vítimas. As informações de quem faleceu são obtidas através de entrevistas com familiares e amigos.
“Além de contar as histórias, temos o objetivo de celebrar essas vidas. Por isso, nosso primeiro contato por telefone sempre começa com um ato de se solidarizar com a dor do outro. A gente sente, não tem como não sentir, principalmente lidando com a morte todos os dias. Ai começam as perguntas e todas elas são formuladas de forma a encaminhar para uma narrativa de celebração. ‘Ela tinha um apelido?’; ‘Conta uma história que te lembre essa pessoa’; ‘Se você pudesse falar alguma coisa para ela agora, o que diria?’”, explica Gabriela.
Ao homenagear as vítimas, o memorial pode auxiliar com o processo de luto dos familiares, situação que ocorreu com Gustavo Kosha. Hoje ele é voluntário do projeto e entrou no movimento após mandar a história de seu pai para o memorial.
“Muito mais que um alívio, escrever um tributo para ele foi uma homenagem que eu queria fazer para os meus filhos lembrarem do avô; para os familiares, e principalmente para os irmãos dele que não puderam se despedir. Além disso, também queria que ficassem com a lembrança de como ele foi um cara sensacional para todos nós que tivemos o prazer de conviver com ele. Não pudemos fazer velório e nem um cortejo com muita gente no cemitério.”
Explicando a ajuda que o projeto pode ter com luto, a psicóloga Bruna Casiraghi diz que conversar sobre o ocorrido é uma forma de organizar, entender e lidar com o fato.
“Quanto mais tomamos propriedade do processo, mais entendemos o que estamos vivenciando. Quando se perde alguém, passamos por etapas de processamento do luto: a princípio, a dor é muito forte, é doloroso lembrar, falar, aceitar a morte. A partir do momento em que conseguimos ressignificar essa dor em saudade, lembrando de momentos e aspectos pessoais do ente querido, o processo se afasta de algo dolorido e começa a ser uma lembrança positiva. As vítimas da covid-19 partiram de forma abrupta e inesperada, então o choque se torna maior, e o tempo do processo pode ocorrer em um ritmo diferente”, conclui a psicóloga.
Sem a intenção de ser político
Em meio ao cenário pandêmico, também é notória a crise política que o Brasil enfrenta, o que interfere na criação de medidas contra o coronavírus. Assim, não há previsão para o achatamento da curva epidemiológica, fato que influencia na constante ascensão do número de vítimas no país.
“Essa é uma opinião minha, Gabriela Veiga. Acredito que há um descaso irreparável por parte do governo. Ao longo do projeto e com toda a explosão nas mídias que ele teve, mesmo que não exponha nenhum tipo de ideologia política, seguir e acompanhar todas as histórias que postamos tornou-se um ato político também, de certa maneira. É uma forma de ir contra a irresponsabilidade do governo e demonstrar o desejo de humanizar e relatar o universo de cada vítima.”
Para Gustavo Kosha, o descaso não se restringe apenas ao governo, mas também no comportamento da sociedade. “Muito mais que aos familiares, acho que o descaso [do governo] é com as próprias vítimas, que antes foram doentes e precisaram de atendimento. Graças a Deus, o meu pai teve um atendimento excelente, mas vemos histórias de pessoas mais humildes que morreram sem o devido atendimento, sem conseguir chegar a um hospital. Fora isso, tem o descaso da sociedade. De muitas pessoas que furam a quarentena, que não se protegem, ajudando o vírus a circular. Pessoas que não acreditam e zombam da doença. Tudo isso é muito triste”, desabafa.
Como impactar os leitores do Inumeráveis
“O resultado que causa nas pessoas é impalpável e invisível, não temos provas reais de que salvamos alguma vida, mas sabemos que algumas histórias acabam tocando mais o público. Percebem que não é brincadeira. Alguém entra no site, sai rolando a página e percebe a seriedade da situação. Cria-se um processo de identificação quando você lê uma história e pensa: ‘Podia ser meu pai’; ‘Isso me lembra alguém’; ‘Podia ser o amor da minha vida.’ Como diz o Edson Pavani, os números não penetram no coração das pessoas como as histórias penetram”, conta Gabriela.
Por ter sido idealizada pelo artista e designer Edson Pavani, a estética do site foi inteiramente pensada dentro do propósito do monumento. Por conta disso, ela assume uma forma mais solene e simplória, de forma a destacar as histórias que estão sendo retratadas, e não os detalhes estéticos. Outro ponto é o fato de o site contar com um sistema de rolagem infinita em sua página, como forma de evidenciar o grande número de narrativas que estão presentes dentro do monumento. Além disso, não há nenhuma pretensão por parte dos organizadores de inserir fotos e vídeos na plataforma.
“O Inumeráveis sempre será sobre as histórias. É um projeto que não tem rosto, e que as histórias te dão imagens para que você crie na sua cabeça. A gente dá o universo para que você crie dentro dele. Sempre vai ser assim, eu posso afirmar”, diz Gabriela.
A iniciativa ainda conta com novos projetos em desenvolvimento. Segundo Gabriela Veiga, estão construído um memorial físico para as vítimas da covid-19, além das lives feitas pelas redes sociais. Uma nova ideia organizada por Gabriela é de narrar histórias de povos indígenas.
“Nas lives, conversamos com os voluntários para mostrar a história por trás da história, e vemos como eles se emocionam, se conectam, choram e ficam próximos das famílias. Todos sabem que é um trabalho essencialmente importante nesse momento, o de contar uma nova narrativa da pandemia de um jeito mais sensível. É algo sobre você olhar para trás e pensar ‘Fiz parte de algo. Fui contra a frieza que estava acontecendo’”, conclui.