Stéphanie Habrich narra trajetória que levou à sinuosa fundação do Joca, ideia pioneira com inspirações europeias que começou com reuniões dentro de casa
“Eu vi uma bola enorme de fogo atrás de mim e todo mundo já estava falando: ‘vamos sair’. Quando chegamos embaixo, olhei para cima e a bola de fogo tinha desaparecido. Agora, tinha um monte de papéis caindo, parecia confete”, relata Stéphanie Habrich, 50 anos, sobre a manhã do dia 11 de setembro de 2001.
Stéphanie trabalhava no Deutsche Bank que, na época, tinha escritórios na Torre Sul do World Trade Center, em Nova York.
“Eu nem fiquei assustada, não imaginava que iam morrer pessoas, achava que era só um avião de acrobacia que errou a mira. Nós ficamos conversando e pensando em quando íamos poder voltar lá para trabalhar”, conta.
No entanto, cerca de 15 minutos depois, o segundo avião atingiu a Torre Sul e espalhou o caos pelas ruas de Manhattan. “Todo mundo saiu correndo, eu tentei entrar em outros prédios para me proteger, só que as portas fechavam na nossa frente”, lembra Stéphanie. Os celulares não tinham internet e, ainda por cima, as linhas telefônicas estavam congestionadas e, por isso, todos estavam no escuro.
“Eu olhei para cima e vi que tinha uma cadeira caindo, mas quando eu cheguei mais perto, era um corpo. O barulho que isso faz é horrível. Decidi que não queria ficar mais lá, porque eu ia ficar assistindo o sofrimento das outras pessoas”, diz.
Então, pegou o metrô para a 82nd Street, onde morava. Somente quatro horas após o ocorrido é que conseguiu entender o que de fato tinha acontecido e ligar para os seus pais. Naquela noite, foram realizados atos nos parques da cidade.
“Eu vi uma maré de pessoas com velas. Nova York é a ‘cidade que nunca dorme’, mas, nessa noite, não tinha barulho”, relata.
Após o ataque às Torres Gêmeas, Stéphanie Habrich acabou saindo do trabalho em banco. Mas, não tomou a decisão de uma hora para outra. Na verdade, já estava desiludida com o emprego, pois sua vida era muito puxada. Antes de tudo isso acontecer, ela tinha um sonho: introduzir jornais e revistas infantojuvenis no Brasil.
Stéphanie nasceu na Alemanha, em Wolfsburg, onde este tipo de leitura é muito comum. Aos seis anos, se mudou com os pais para o Brasil. Enquanto trabalhava em finanças, realizou pesquisas de mercado para saber se daria certo, mas ainda não tinha colocado o projeto para funcionar.
Alguns anos depois, se casou com um brasileiro, que recebeu uma proposta de trabalho para retornar ao seu país. Em 2006, de volta ao Brasil, Stéphanie decidiu que iria deixar o banco e perseguir o sonho de ser empreendedora. “Na época, foi muito difícil, mas quando eu mudei, foi a melhor coisa, nunca mais voltei para finanças. O ser humano aprende pelo sofrimento. Aí a gente percebe que precisa mudar”, diz.
Para ela, o 11 de setembro foi um trauma enorme, mas acha que, ao longo da vida, teve que passar por diversos outros traumas. Assim como no seu trabalho atual como empreendedora, também precisou superar muitos desafios e dificuldades.
Uma trajetória de resiliência
No Brasil, Stéphanie fundou uma editora, a Magia de Ler. “Criei duas revistas, a Toca, que era para crianças de zero a quatro, e a Peteca, de cinco a oito. Foi indo tudo bem, mas depois de um ano e meio, eu fali”.
Segundo ela, o problema foi vir ao país com uma mentalidade para o que funcionava na Europa. “Como que os pais vão assinar se eles não tinham essa experiência quando eram pequenos? Se não está na cultura?”, explica sobre o mercado nacional.
Porém, ela não desistiu. Traçou novos planos de negócio e desenvolveu outros meios de conseguir o financiamento necessário para manter as publicações de pé. “Quando você é empreendedor, você tem que falhar seis vezes para dar certo na sétima. Você tem que persistir”, afirma. E então, a Toca e a Peteca resistiram, mas Stéphanie queria mais.
Quem se lembra bem disso é Andrea Delia, de 39 anos. Atualmente morando em Atlanta, nos Estados Unidos, ela presenciou muitos momentos da jornada de Stéphanie na editora Magia de Ler. “Sempre dei aulas de inglês, foi assim que eu conheci a Sté, na verdade”, lembra. Andrea explica que sua amiga dava aulas da língua estrangeira para os filhos da empresária, mas, ao conseguir um emprego, passou a responsabilidade para ela.
Nesse período, ela cursava a faculdade de fisioterapia e depois passou a trabalhar em um hospital. Mas, quando já era professora das crianças há dois anos, a casa de saúde fechou e Andrea acabou se vendo sem rumo. “Pensei ‘meu deus, o que eu vou fazer da vida?’. E aí, a Sté falou ‘ah, você não quer vir trabalhar comigo na editora?”, conta. De início, ela não comprou muito a ideia, achava que teria tempo para se reorganizar e encontrar trabalho na área.
Cerca de seis meses depois, no entanto, Andrea percebeu que precisava de uma rotina e concordou em trabalhar na editora: “Eu estava crente que eu ia ficar só alguns meses, mas fiquei seis anos com ela”.
Foi nessa época que Stéphanie decidiu que não queria ficar só com as revistas, mas também criar um jornal infantojuvenil. Andrea lembra que ela continuava assinando os jornais europeus para seus filhos e queria que no Brasil também existisse um veículo que pudesse levar notícias para as crianças de forma acessível.
“A gente estava pensando em trazer o conteúdo deles e adaptar para o mercado brasilero, mas não estava dando certo. Então, falamos ‘vamos fazer o nosso’”, conta Andrea. Foi assim que nasceu o Joca, o primeiro jornal voltado para o público infantil do Brasil: da idealização de Stéphanie e com um trabalho feito do zero por uma equipe muito pequena que se reunia na própria casa dela.
Nem mesmo um nome tinha na época. A ideia partiu de Andrea, que conta que, no hospital, usavam as letras ‘CA’ para se referirem às crianças. Foi com isso que ela sugeriu o Joca, uma união das iniciais de ‘jornal’ e dessa abreviação.
Stéphanie lembra que, com o novo projeto, resolveu tentar um modelo de negócio diferente: “Ao invés de vender a ideia para cada pai, eu venderia a ideia para uma escola. Aí começou a dar mais certo, porque em vez de precisar convencer de um a um, eu convencia uma escola e já conseguia mil assinaturas”.
Apesar do modelo ter funcionado melhor, ela lembra que ainda enfrentou muita dificuldade, já que, por não ser algo presente na cultura brasileira, muitos familiares questionavam a necessidade da criança ter o jornal.
“Se fosse qualquer outra pessoa, talvez ela teria desistido, porque foram tantas dificuldades para conseguir fazer o negócio sair”, diz Andrea. Ela lembra que, na época, enfrentaram obstáculos com a logística e parte técnica, além da divulgação e propaganda, que tinha que ser minuciosa por ser voltada às crianças.
Veja mais em ESQUINAS:
Como a literatura infanto-juvenil afeta as crianças hoje em dia
Os impactos da pandemia da covid-19 na alfabetização
O Joca é feito de pessoas
A persistência e animação de Stéphanie com o jornal, mesmo em meio ao cenário de dificuldades, a levou para vários lugares – incluindo uma das salas da graduação da Faculdade Cásper Líbero.
Em busca de colaboradores para seu trabalho, Stéphanie visitou a faculdade em 2015. Foi nessa época que Joanna Cataldo, jornalista hoje com 26 anos, teve o primeiro contato com a criadora do Joca. “Quando eu estava no terceiro ano da Cásper, a Stephanie foi lá conversar com os alunos e começou a falar sobre o Joca, porque ela estava tentando recrutar pessoas para escreverem”, lembra Joanna.
Com o discurso animado, naquele momento Stéphanie conquistou mais uma apoiadora de sua trajetória. “Ela começou a falar da proposta do jornal e eu fiquei encantada. Pensei ‘nossa, é isso que eu estava buscando e não sabia’”, conta a jornalista. “Ela realmente te estimula a abraçar o projeto. Então realmente me contagiou de alguma forma naquela fala”.
Entretanto, a ideia de participação voluntária no jornal não deu certo logo de início e a estudante precisou adiar seu sonho de trabalhar com o jornalismo infantojuvenil. Foi apenas no ano seguinte, o último na faculdade, que Joanna viu uma vaga de estágio no Joca divulgada pelo email da instituição, e pode se encontrar novamente com Stéphanie. Dessa vez, como parte da equipe de redação.
“O Joca tinha muito a ver comigo, e acabei sendo contratada. Desde então, eu e a Stephanie já passamos por muitas coisas, são cinco anos muito intensos, em que fizemos várias coisas legais, que me orgulho muito. É uma experiência muito boa”, afirma.
Logo quando entrou, Joanna viveu uma época de mudanças no jornal, que foram essenciais para que a proposta se expandisse. Da casa de Stéphanie, local onde tudo começou, o Joca se mudou para um escritório, que iniciou o processo de retomada com a melhora do cenário pandêmico. “Era uma coisa bem familiar. Era quase como se a Stephanie fosse a mãe da família, e a gente, os filhos. Nós tínhamos uma relação de mãe mesmo com a Sté”, relembra Joanna.
Para Stéphanie, essa conexão próxima e afetuosa para com todos os envolvidos com seu projeto é um elemento essencial para que continue levando o Joca mais além.
“É muito importante você ter ‘a equipe’. Já despedi muitas pessoas, não pelo fato de elas não serem capacitadas, mas por elas não terem comprado o sonho. Quando eu comecei o Joca, eu que escrevia as notícias, eu que fazia o marketing, mas depois chegaram minhas amigas e são pessoas que movem montanhas”, comenta.
Hoje, o Joca já deixa um legado múltiplo: para pessoas como Andrea, que participaram do seu início, ele foi uma mudança de vida, que deixa saudades. Para quem acompanha seu crescimento mais recente, como Joanna, é uma realização e um orgulho. E, além disso, para todos que são impactados pelo trabalho de Stéphanie e sua conexão com o próprio propósito, é um novo olhar para o mundo e para a compreensão de toda uma vida: “Eu tenho certeza que o Joca consegue mudar a mentalidade de uma sociedade”, finaliza ela.