Apesar do prejuízo para empresas e arrecadação fiscal, pirataria é “paradoxo”, uma vez que gera empregos e renda e democratiza o acesso a produtos elitizados
A Copa do Mundo está de volta e, com ela, o mercado de falsificações aquece novamente. A procura por camisas da seleção, bandeiras do Brasil e souvenirs futebolísticos aumenta e gera competição entre produtos oficiais, credenciados pelas confederações e fornecedores esportivos, e cópias não autorizadas. O prejuízo para as empresas esportivas é bilionário.
De acordo com a pesquisa realizada pela Associação da Indústria e Comércio Esportivo (Ápice), encomendada pelo Ipec (Inteligência em Pesquisa e Consultoria), só no ano passado foram comercializadas mais de 482 milhões de unidades de itens esportivos. Desse montante, mais de 157 milhões de unidades eram falsificadas, como camisetas, bolas, mascotes, figurinhas e álbuns.
Incentivo à sonegação?
Segundo Carlos Eduardo Oliveira, economista e assessor da Confederação Nacional de Serviços (CNS), a falsificação impacta fortemente a economia e faz com que, às vezes, marcas que pagam impostos regularmente deixem de fabricar, o que amplia o mercado para aquelas que sonegam os tributos. Para Oliveira, a sonegação gera perda de receita significativa para o Estado, o que pode “comprometer as verbas destinadas para setores essenciais, como educação, saúde e infraestrutura.”
Na mesma pesquisa da Ápice, foi constatado que, só em 2021, o Governo Federal deixou de arrecadar R$ 2 bilhões em impostos. Já as empresas do setor esportivo arcam com impacto negativo de R$ 9 bilhões por conta das mais variadas falsificações. A atuação ilegal representa 33% do mercado brasileiro no segmento, segundo o Ipec.
Questionado sobre o porquê de a população optar por produtos falsificados, o economista cita os preços abusivos praticados pelos fornecedores oficiais. “Uma camisa original da seleção ou de um time como o Corinthians, por exemplo, é muito cara, próximo de R$ 400, e o preço de uma camisa pirata é bem mais barato”, afirma Oliveira.
Pirataria, um paradoxo
O crime de pirataria está descrito no artigo 184 do Código Penal. A punição para quem descumprir a lei pode chegar a quatro anos de prisão, além do pagamento de multa. A punição também pode atingir os compradores, eventualmente podem ser classificados como receptadores e, assim, poderão ser punidos com até um ano de prisão, além de um revés financeiro.
Entretanto, o comércio ambulante cumpre um papel social e econômico fundamental no país, trazendo emprego, consumo acessível e renda para grande parte da população. A advogada Ana Clara Freire, especialista em direito tributário e digital, enxerga no comércio ambulante uma ferramenta para a democratização do consumo: “Querendo ou não, a prática do comércio pirata tem uma função social, gerando emprego tanto na produção quanto no comércio, e de alimentar o poder de compra das classes mais baixas e da classe média”.
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Segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia), o Brasil tem uma taxa de informalidade de 39,7% no trimestre até agosto de 2022. Esses dados representam mais de 39 milhões de trabalhadores atuando no mercado informal.
Ainda segundo Ana Clara, o crime da pirataria é “uma infração de menor valor jurídico”. Para a advogada, levando em conta o contexto socioeconômico do país, a prática criminosa é, muitas vezes, a única fonte de renda para alguns trabalhadores.
“Em uma economia como a nossa, em que as pessoas nem sequer têm o que comer, é evidente que elas dariam um jeito de sobreviver. Você cometer um crime que não tem maiores consequências para um bem jurídico como a vida humana, por exemplo, pode ser uma maneira digna de levar a vida. Tratando-se apenas do comércio e não da manufatura, que mal tem você copiar uma bolsa e colocar à venda? É um crime de menor potencial ofensivo”, diz Freire.
Mercado informal
Orlando José da Silva é um vendedor ambulante, ocupação popularmente conhecida como “camelô”. Ele comercializa roupas e algumas bijuterias há dois anos na Avenida Jabaquara e se diz confiante para as vendas nas próximas semanas. “Estou esperando vender bastante durante a Copa. Comprei bastante coisa de futebol”, diz o vendedor.
Ele ainda ressalta a importância da pirataria tanto para os consumidores quanto para os vendedores ambulantes e defende o negócio: “Pirataria é um meio de comércio. Muitas pessoas não conseguem comprar um produto de boa qualidade, boa marca, aí compram pirata, né? Alguns conseguem ir ao shopping comprar a versão original. Outros não têm como, aí compram na barraquinha, no brechó”.
Jomilson Martins, que se tornou camelô após ficar desempregado, não está tão confiante em relação ao torneio: “A Copa não está essas coisas não. Pensei que ia vender mais, tô até com medo”. Porém concorda com Orlando quando diz que não vale a pena a compra do produto original: “O pirata é cinco vezes mais barato que o original. Eu mesmo, como consumidor, não dou quinhentos paus em uma camisa de futebol, não. Eu dou 50, 60 paus em uma boa, porque tem camiseta de pirataria que é ótima, de primeira linha”.
Pirataria, um paradoxo
Embora tenha implicações legais e jurídicas, a pirataria não deixa de ser parte da realidade dos brasileiros. A pesquisa realizada pelo Ipec indica que, dentre as 60 milhões de camisetas vendidas no Brasil em 2021, 22 milhões eram falsificadas. “Tenho família, tenho filhos e, por isso, preciso correr atrás, né? Tenho que vir para a rua todo dia de manhã e só à noite voltar para ver se levo um leite, uma fralda ou algum alimento para casa’’, completa o ambulante Orlando.
Eduardo Ribeiro Augusto, sócio da área de propriedade intelectual da Siqueira Castro, chama a atenção para o registro das marcas no Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI). De acordo com ele, a pirataria se trata da violação a uma propriedade. “Quando falamos de pirataria, via de regra, estamos tratando de um uso indevido de uma propriedade intelectual, podendo ser uma marca, patente, direito autoral ou desenho industrial. A grosso modo, é o uso não autorizado de uma criação de alguém”, ele afirma.
Para Eduardo, não há incentivo em criar marcas e produtos se, no futuro, eles poderão ser pirateados. “Se não há respeito a esse sistema, por que eu vou criar e registrar marcas, desenvolver produtos, se qualquer pessoa pode pegar a sua marca e fabricar sem pagar royalties, sem pagar absolutamente nada para você”, ele posiciona.
O registro no INPI formaliza o compromisso das entidades futebolísticas com a oficialização dos produtos e do consumidor com a compra regular. Quanto à questão da acessibilidade a produtos originais, Eduardo diz que produtos mais baratos poderiam ser desenvolvidos: “As marcas também têm o papel de fabricar produtos acessíveis. Talvez tenham linhas alternativas e originais que atendam aos anseios da população. Não é um problema tão simplista que basta piratear e está tudo certo”.