Trabalhadores de aplicativo relatam suas experiências perante ao cenário que se encontram e como ele se movimentou durante a pandemia
“Quem ganha são os donos do aplicativo, nós somos apenas bonecos controlados pela internet’’, conta Amaro Feitosa, de 21 anos. Desde que se entende por gente, ele trabalha com entregas. Como muitos, migrou para os aplicativos pela praticidade e por dificuldades na situação financeira.
Com a mochila térmica nas costas, seja no comando da moto ou na bicicleta, os entregadores de aplicativo compõem o pano de fundo das cidades contemporâneas. Dificilmente esse panorama de trabalho deve desaparecer, na verdade é provável que ele só se fortaleça.
O que, por vezes, aparenta ser um cotidiano mais tranquilo, com flexibilidade de horários, por exemplo, transforma-se em um emaranhado de questões problemáticas, como baixos salários, negação de direitos básicos, acidentes de trânsito e ritmos exaustivos de trabalho que testam os limites físicos, como relata Johnatan da Silva, de 22 anos. “Em média, eu pedalava dezenove horas por dia. Saía de casa às 4h30 até a Oscar Freire para fazer as entregas do café da manhã. Quando dava 11h30, eu ia para a Paulista para fazer as entregas do almoço até a janta. Quando dava 23h30 eu voltava para casa”, explica ele. “Detalhe: da minha casa, no Capão, até a Paulista são 25 quilômetros, indo e voltando são cinquenta. Fora o que eu percorria no Centro fazendo as entregas.’’
A era da uberização
Esse cenário descrito por Johnatan se repete em muitas narrativas. Um levantamento divulgado pelo Portal Terra em abril de 2020 mostra que só o aplicativo Ifood conta com mais de 140 mil entregadores cadastrados no Brasil.
Entramos na era da uberização, na qual as relações e direitos trabalhistas são mais frouxos, quase nulos. O professor de História Hélio Moreti, do cursinho pré-vestibular Anglo em Guarulhos, explica o fenômeno:
“O termo, como fica claro, nasce do aplicativo de transporte Uber, que popularizou esse tipo de relação de trabalho. O discurso é na teoria libertador, na medida em que o trabalhador é, na verdade, um empreendedor. Entretanto, a uberização nada mais é que uma exploração da mão-de-obra por parte de empresas que concentram o mercado mundial dos aplicativos e plataformas digitais. Com jornadas exaustivas de trabalho, sem descanso semanal, sem garantias de aposentadoria ou seguridade social. Na prática se traduz na destruição dos direitos históricos da classe trabalhadora.’’
Essa precarização do trabalho afeta a todos, em especial aos entregadores de aplicativos. Na visão de muitos, essa uberização é irrelevante: o que mais importa é a comida quente na mesa do jantar e não como ela chega, ou por quem é entregue. Pode-se ver mais sobre esse assunto no filme-documentário “GIG — A Uberização do Trabalho”, feito em 2019, o qual debate esse contraste social nas relações de trabalho e mostra que esse fenômeno veio para ficar e se intensifica cada dia mais.
Trailer do filme-documentário ‘’GIG- A Uberização do Trabalho’’, disponível no Youtube
“É como se você fosse invisível. Podia ser qualquer coisa no seu lugar’,’ manifesta Paulo Renato Lopes, de 22 anos, que adentrou o mundo das entregas durante a pandemia da Covid-19 decorrente da falta de outras oportunidades de emprego para estudantes em sua cidade, o Rio de Janeiro (RJ).
A música é a profissão na vida de Leonardo, de 21 anos, todavia ele também encara o trabalho de entregador por necessidade. Recusado pelo Rappi e Ifood, ele trabalha para o aplicativo UberEats na região central de Porto Alegre (RS). Sobre a maneira como se dão as relações de trabalho nos aplicativos de entrega, ele reforça: “É trabalho escravo, sabe? É muita exploração em cima da nossa mão-de-obra’’.
“Estou fazendo cada vez menos entregas por aplicativo porque o foco deles é a exploração da mão-de-obra e os valores são inadequados para quem se arrisca em cima da moto’’, conta Richard Nejelischi, 41 anos, morador da Zona Leste de São Paulo e criador do “Canal do Motoboy’’ no Youtube. Dessas quatro décadas de vida, duas são dedicadas ao ofício de motoboy. Sobre os aplicativos de entrega, ele se posiciona: “Os aplicativos se aproveitam da situação econômica do país, do desemprego. Eles usam a questão de estarem dando serviço para um monte de pessoas. Eles montaram um exército. Os aplicativos usam um sistema chamado de algoritmo usado para fazer a distribuição do serviço, ele funciona em prol do aplicativo, nunca em prol do entregador’’.
São histórias parecidas com nomes diferentes, e esse contexto semelhante repete-se, inclusive, quando se fala das consequências dos perigos de percorrer as ruas e avenidas diariamente. “Risco no trânsito passo todo dia, profissão perigo, vivemos numa corda bamba, a qualquer momento podemos sofrer um acidente’’, conta Morais, de 43 anos.
Gustavo, de 26 anos, trabalhava de oito a doze horas por dia na região de Guarulhos (SP), até se acidentar seriamente: “Atualmente estou afastado no INSS, sofri um acidente onde outra moto me acertou a 80 km/h, fiz três cirurgias na perna, pinos e tudo mais.’’ E como é a situação para quem está na bike? “Sempre quando chove é perigoso, pois qualquer escorregão é fatal, e sem falar que não somos respeitados no trânsito. Mal somos vistos’’, conta Johnatan. Também Victor Hugo, de 22 anos, sofreu dois acidentes enquanto exercia o trabalho de entregador de aplicativo.
“Muitos amigos acabam morrendo. É a realidade. Não pode parar. ’’ (Amaro, 21 anos)
Veja mais:
+ Breque dos APPs: entenda as reivindicações dos entregadores
Mas e as minas?
A desigualdade de gênero aumenta a já latente precarização trabalhista nesta categoria ao aliar-se ao medo e à misoginia. Ser uma mulher no mercado de trabalho sempre foi complicado. Ainda mais em uma área majoritariamente masculina, na qual o salário é baixo e os riscos são enormes. Além disso, elas correspondem a menos de 2% no Ifood.
Aline Morgana, de 34 anos, afirma que os entregadores correm risco de vida todos os dias e com os aplicativos isso só aumentou. Ela desabafa que em dia de chuva fica preocupada em entregar os pedidos em menor tempo possível para ganhar o seu dinheiro da corrida.
Quando o assunto é a presenças das mulheres no delivery, muitos estranham elas serem autônomas e independentes, como relata Elisângela, de 25 anos. Ela comenta que comumente questionam o fato dela estar trabalhando sozinha até tarde da noite, sem a presença de seu marido, partindo do pressuposto de que as noites são muito perigosas para qualquer mulher.
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Nesse contexto, algumas particularidades no cotidiano das entregadoras de aplicativo gritam, como preconceito no trânsito, machismo e assédio no momento de interação com os clientes. Aline, que trabalha doze horas por dia de segunda a segunda, continua seu relato dizendo: “Alguns [clientes] já chegam levantando a voz pra mim falando que lugar de mulher é dentro de casa. Teve um caso que um homem tentou me assediar. Eu já percebi que quando são mulheres entregando, principalmente quando o cliente é homem, eles crescem pra cima de nós”.
Nesse cenário de contato com o consumidor, quando clientes são mulheres, Elisângela diz que sente um conforto: “Quando entrego para uma mulher, elas ficam muito felizes, de mulher pra mulher. Parece que tem um apoio maior”.
Devido aos constantes episódios de assédio, a carioca Luiza Rizzo, de 23 anos, alega preferir realizar entregas para mulheres. Dentre as muitas experiências desagradáveis, ela relata um ocorrido: “Já fui assediada por um cliente. Ele tentou me colocar dentro do apartamento dele. Tive que sair correndo pela escada de emergência. Me senti muito vulnerável. Não tinha o que fazer, eu estava trabalhando e tentaram fazer um negócio desses comigo. Foi horrível’’.
Entre as dificuldades: a bag. A tradicional mochila térmica, essencial para esse trabalho, não foi feita pensando em atender às necessidades do corpo feminino. O seu fecho fica na altura do peito, o que é um empecilho para mulheres que têm seios grandes. Essa questão foi levantada em uma reportagem do Uol publicada em junho de 2020.
Em resumo, mulheres enfrentam o machismo descarado ao praticar sua profissão. Entre os inúmeros riscos que vêm desde entregas sozinhas à noite e assédios por clientes homens, muitas também são julgadas pelo fato de a área não ter muitas mulheres em atuação. Encontram-se em situações tão desconfortáveis e inseguras. Seu serviço é essencial em um contexto de machismo estrutural.
A vilania do algoritmo: trabalhar mais por menos?
Lutando contra o capitalismo desregulado, os entregadores reclamam das pequenas taxas que os aplicativos fornecem.
As poucas empresas de delivery de alimentação que controlam o mercado fazem a regra. O pagamento remetido aos trabalhadores é baixo. “Com a plataforma superlotada, as taxas foram abaixando’’, diz Richard.
As grandes empresas alegam calcular o valor pela rota feita. Isso inclui a retirada do pedido no restaurante, a entrega para o cliente e a distância rodada. A taxa não é fixa, varia de um aplicativo para outro. Por exemplo, pelo Ifood o preço mínimo é de cinco reais, mas em cima disso tem diversos fatores como o clima, a quantidade de entregadores e feriados, que ajudam a oscilar o preço final. “Tem entrega de cem, duzentos reais, mas a gente só ganha seis”, comenta Amaro.
Muito é comentado sobre uma não-transparência entre entregador e aplicativo, pois ao trabalhar tanto apenas ganham migalhas. “O valor que o cliente paga não é o valor integral que o entregador recebe. Dependendo do aplicativo, ele come de 20% a 50% do que o cliente paga de taxa de entrega”, relata Luiza, que trabalha de dez a catorze horas por dia.
O breque dos Apps
A paralisação nacional em 1º de julho de 2020 foi histórica. A greve conhecida como “Breque dos Apps’’ foi a primeira da categoria no país. A primeira edição contou com boicotes e mobilizações também em outros países da América Latina, como Argentina, Chile, Equador e México. Nesse dia, as ruas foram ocupadas por entregadores protestando pelos seus direitos. Além disso, uma importante quantidade silenciosa deles não ligou o aplicativo e uma parcela dos consumidores não fez pedidos no dia.
A paralisação foi convocada por trabalhadores das grandes empresas de aplicativos (como Ifood, Rappi, UberEats, Loggi e James), apartidários e associados ao Sindicato dos Motoboys. O movimento foi organizado por grupos na internet.
Uma das reivindicações dos trabalhadores são sobre os baixos valores das taxas e a variação delas, como comenta José Carlos Marine, de 18 anos: “A taxa por entrega não tem nada a ver com o preço do pedido do cliente. São R$ 3,50 no mínimo e 0,77 centavos por quilometro rodado”.
Outra reivindicação feita por eles é a mudança dos bloqueios dos trabalhadores por parte dos aplicativos, que muitas vezes são sem motivo. Eles criticam o fato de serem suspensos ou até mesmo cancelados a partir de critérios não explícitos e sem o direito de defesa ou apuração do fato ocorrido. Mas a constante reclamação é a falta de transparência nas plataformas.
Além das exigências anteriores, eles pedem auxílio ou licença-saúde. Em suma, configuram condições de direitos trabalhistas básicos. Com poucas mudanças práticas, os entregadores organizaram uma nova greve nacional no dia 25 de julho. “O primeiro Breque foi incrível porque estava todo mundo unido. Todos os entregadores de todos os estados, com uma energia muito boa. No segundo, achei que não teve tanto efeito quanto o primeiro, porque teve poucas pessoas. Deve haver outro Breque e eles têm que se unir, porque sem a união de todos os entregadores não vamos conseguir nada’’, conta Elis.
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Apesar de toda a movimentação, segundo Leonardo, não houve muitas alterações na maneira de como os aplicativos lidam com a situação de seus entregadores: “Eu não senti nenhuma diferença depois do Breque. Eu soube que o Ifood e o Rappi atenderam algumas pautas, mas no UberEats não senti absolutamente nada”.
Richard expõe um panorama das dificuldades enfrentadas por entregadores, e apresenta algumas soluções para atender as reivindicações do Breque:
“Eu tenho visto mais movimentações a nível de legislação, estadual e federal. Se depender dos aplicativos, eles não vão mudar nada porque eles não estão nem aí para o entregador. Precisamos mudar a legislação para tentar garantir alguns direitos trabalhistas, já que não temos nenhum.’’ (Luiza, 23 anos)
O drama durante a Covid-19
Com a pandemia do coronavírus, e, por conseguinte, o isolamento social, os serviços de entregas aumentaram ainda mais seus lucros. É o caso da Rappi, na qual esse valor quase triplicou, como afirmou o CEO da empresa, Sérgio Saraiva, durante uma live promovida pelo Citibank em agosto de 2020.
Em contrapartida, os entregadores alegam uma diminuição em sua remuneração. “Devido à Covid-19, as taxas abaixaram ainda mais, não consegui fazer a renda do mês. Demora mais para tocar um pedido devido a demanda de mais pessoas terem entrado nos apps’’, coloca Aline. Sobre esse cenário, Paulo Renato explica: “Aumento no número de entregadores na mesma área diminui a quantidade de entregas que um pode fazer’’.
Nesse modelo de uberização, as empresas lucram à medida que o trabalhador tem sua mão-de-obra ainda mais desvalorizada. A alta demanda acirra a busca por corridas entre os trabalhadores de aplicativo, o que, por vezes, resulta em uma maior jornada de trabalho. E, durante a Covid-19, a exaustão foi associada ao medo, como relata Leonardo:
“Estamos nos expondo muito. Eu moro com mais três pessoas e uma delas é grupo de risco. É sempre desafiador sair sem saber se vai voltar com o vírus e transmitir para quem está em casa.’’
Esse movimento de continuar nas ruas em um contexto de crise sanitária agrava ainda mais a irresponsabilidade e a falta de assistência dessas empresas perante seus entregadores. “Os aplicativos disseram que estavam dando essas condições [EPIs] para a gente [entregadores], mas eles realmente não deram. Tocava pedido, mas não tocava para eu poder pegar a máscara e o álcool. Foi realmente uma falácia deles’’, expõe Luiza, que divide o tempo entre as entregas e a graduação em Pedagogia na UERJ.
Conhecendo o pedregoso dia a dia dos entregadores de aplicativo é possível vislumbrar que, amarrado a tantas questões problemáticas, tem-se a invisibilidade. Como posiciona Aline: “Acho que deveríamos ser mais vistos pela sociedade brasileira. Os aplicativos deveriam ter o mínimo de compaixão, afinal, somos nós que trabalhamos e arriscamos nossas vidas pra que eles ganhem os milhões deles”.