“Ah, mãe, tô vendo vídeo”: um depoimento sincero sobre educação remota - Revista Esquinas

“Ah, mãe, tô vendo vídeo”: um depoimento sincero sobre educação remota

Por Giulia Luchetta e Giuliana Purchio : janeiro 8, 2021

Mãe relata como pandemia mudou a rotina de seus filhos e especialistas confirmam como a educação a distância pode impactar as crianças

Quer correr? Um dia eu falei para o meu filho, dá uma volta na casa, vai ganhar energia e vamos voltar para os estudos! E ele foi lá, fez isso. “Mãe, estou melhor” e pronto! O Rafael assiste às aulas remotas todos os dias das 13h30min às 18h usando o uniforme da escola. Sua matéria preferida é matemática e o tema do seu aniversário de 11 anos foi o jogo Brawl Stars, que ele joga com o irmão Leonardo, de 5. 

A mãe dele, Simone Alves Ribeiro tem 43 anos e é formada em pedagogia. Atualmente ela não trabalha e é responsável por auxiliar nos estudos dos filhos, montou uma rotina escolar e acompanha do lado as videoaulas do caçula. “O de cinco eu fico mais em cima, a professora pede cola, pede tesoura, manda abrir o livro na página tal, mas com o de 11 não. Cheguei no quarto dele uma vez, e ele estava vendo video no celular.” 

Enquanto os pais seguram as pontas para equilibrar as dinâmicas familiares e questões emocionais, do outro lado da tela os professores precisam adaptar suas aulas para o ambiente doméstico, onde as crianças não estão acostumadas a ligar o modo aluno, são filhos 24 horas. O comportamento e as pessoas influenciam completamente a referência de aprendizagem, dá para fazer birra com a mãe, mas não com a professora. 

Eu falei ‘filho você está ouvindo o que a professora está falando ou você está vendo vídeo?’ ‘Ah, mãe, tô vendo vídeo’ Ele é sincero, fala a verdade. 

O ato de educar uma criança já exige por si só muito empenho e diversas técnicas para envolvê-las da melhor maneira possível nas esferas básicas do conhecimento. Então, nesses tempos atípicos vemos as rotinas dentro de casa se tornarem cada vez mais trabalhosas, fazendo-se do novo normal um termo desgastante, até melancólico para certos ouvidos.

“Se não há um interesse espontâneo, a técnica é geralmente promover perguntas ou reflexões disparadoras. Isso faz parte do estudo da prática na sala de aula. É focado nisso, mas é claro que nem sempre as propostas são as mais curiosas, as mais empolgantes e nós temos também que passar por esses momentos em que nem tudo é tão empolgante.”, comenta a professora assistente e estudante de pedagogia Aline Belintani, 21 anos.

Por trás de uma câmera e em um ambiente familiar as crianças são outras. Cada um de nós, querendo ou não, é completamente diferente em cada espaço que ocupamos e com elas não muda. Muitas personalidades são deixadas de lado quando não se pode mais encontrar os amigos no parquinho, correr na quadra, tomar lanche no refeitório e pegar o ônibus escolar. Ao contrário dos adultos, o início da vida social não é marcado por amizades tão sólidas, por isso muitas vezes elas não são capazes de sobreviver à um vácuo tão grande.

“Os dias que não estão muito interessantes eu tenho que inventar, coloco às vezes um brinquedo do lado para o Rafa estudar, ou ponho uma música. Procuro maneiras de fazer a criança voltar, chamo para tomar uma água e dar uma pausa quando ele fica muito triste… Você abraçando a criança, conversando sobre o sentimento dela, é incrível o que esses 5 minutinhos de acolhimento fazem”.

As bases da disciplina positivista, adotada pela psicopedagoga Jaqueline Miranda, 23 anos, são as mesmas. Através de gentileza e a firmeza, é importante estabelecer uma rotina em que os pequenos estejam  bem inseridos e possam desfrutar de momentos para atividades em família longe das telas. 

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Os videogames online, chamadas e vídeos do Youtube são ao mesmo tempo as plataformas de ensino e o que provocam a maior distração e dependência nas crianças. Cada vez mais cedo os pais se utilizam desse artifício como aliado para os momentos de cansaço ou impaciência. Jaqueline alerta “Temos que tomar cuidado para o celular e aparelhos em geral não substituírem a presença. É importante mostrar que aquilo tem função e horário para uso determinados. Os pais devem se atentar na própria dosagem de seu uso no cotidiano, se não a criança vai entender que o celular é mais importante que ela”.

“O Rafa começou com 7 anos a jogar videogame, o Leo com 3 já jogava”. É bastante influência do mais velho para o mais novo, também, mas é fato que eles dominam a tecnologia e ela precisa ser explorada e incorporada pelas escolas, mas sem nunca substituir a relevância da leitura e escrita no papel práticas que precisam e devem ser incentivadas pela família até os seis anos de idade.  Entretanto, nem todas as crianças têm essa oportunidade. 

A pandemia nos fez repensar tudo o que eu sabíamos sobre educação. Esse ano foi um desafio, não vivemos em um mundo igualitário e há crianças que possuem acesso à internet, enquanto outras não. Tem pais que sabem ler e tem pais que não sabem. “Tem semana que eu fico muito cansada, muito, porque tem sido bem corrido. Antigamente eu era professora durante o período da tarde, hoje sou professora período integral e não tem horário, a gente tem que ficar sempre disponível, sempre alerta”, confessa Jaqueline.

O educador precisa desempenhar vários papéis em 2020 e um deles é de amigo. “Semana passada mesmo uma aluna minha perdeu o pai, a mãe estava muito chateada porque não tinha família próxima e ela veio falar comigo. Fiz uma chamada de vídeo com ela, e realmente a criança estava muito triste. O que ela falava era só isso ‘meu pai morreu, meu pai morreu, Prô’ e eu tive que conversar, contar uma história. Não sou psicóloga, mas procuro me manter disponível. Falei que o papai estava no céu olhando por ela e que a mamãe estava aqui com ela agora, que elas deveriam ficar juntas, se cuidando”.

O isolamento traz consigo uma série de consequências, e o foco é sobretudo na saúde mental. De acordo com Aline, “há uma multiplicidade e as preocupações são variadas. Tem famílias e responsáveis que preferem aprendizagem e tem aquelas que preferem questões psicológicas, e infelizmente, a gente tem que optar neste momento.”

Este ano não teve a festa junina da escola, que todo mundo gosta, e a Simone fez a dela em casa. “Eu fiz a boca do palhaço, tomba lata, pescaria… invento alguma coisa para os meus filhos não se prejudicarem tanto, porque já tem prejuízo. Eles estão ansiosos, com medo, sentem saudades dos amigos, então a gente tem que manter a positividade para não ter tanto impacto na vidinha deles. Quando eles estão muito estressados a gente faz a meditação cheira a flor, assopra a vela”.

Mas a questão vai para além do comprometimento da saúde psicológica. Diversas instituições públicas tiveram uma taxa de evasão escolar muito grande e cada prefeitura segue um ritmo diferente de atividades e lições, algumas nem sequer disponibilizam vídeo aulas. Principalmente para os alunos em fase de alfabetização, em que a aprendizagem deve ser muito bem estimulada, o material impresso disponível é longe de ser suficiente, já que muitos dos responsáveis encarregados não tem formação adequada para transmitir os conhecimentos necessários.

Mesmo não aderindo às bases institucionais de educação pública e sendo ilegal no Brasil, há uma parcela de pais que optaram pelo homeschooling. “Isso é complicado, dependendo de alguma questão política, social, podemos criar até fascistas nesse tipo de sistema. É importante que haja alguém regulando o que é aprendido”, desabafa a professora Aline Belintani.

A educação infantil recentemente se tornou obrigatória, então as pessoas ainda não estão acostumadas a se sentirem obrigadas a ter uma criança na escola. Uma situação dessa é uma abertura para que quem não defende a obrigatoriedade tire a criança da escola, ou quem não pode bancar a educação possam fazer isso. 

“Como psicopedagoga na clínica estou tendo muita demanda porque os pais acham que o ano está perdido, eu não acho que está. Se nós como educadoras não nos atualizarmos, não corrermos atrás, não buscarmos ser diferentes, realmente vai dificultar a aprendizagem no ano que vem. É cansativo, mas dá pra gente fazer sem peso e rigidez, e sim com incentivos”, finaliza Jaqueline.