Famoso pelos casos de discriminação e polêmicas na Copa do Mundo, o Catar abriga universidades internacionais dentro de um complexo educacional de mais de 10km² e destina altos volumes de investimento para melhorar o acesso à educação no país
A escolha do Catar para sediar a Copa do Mundo de 2022, há doze anos, levantou receios devido à histórica supressão dos direitos das mulheres e dos homossexuais. O código penal catariano, a “sharia”, que tem base no Alcorão – livro sagrado do islamismo – determina pena de três a cinco anos para quem possuir relações sexuais com pessoas do mesmo sexo. A lei também prevê punições exclusivas às mulheres. No início do ano, veio à tona o caso da mexicana Paola Schietekat, que denunciou um estupro e foi condenada a sete anos de prisão e cem chibatadas, pois o crime, cometido por um homem casado, foi considerado relação extraconjugal. No entanto, apesar dessas questões que desfavorecem a imagem do país internacionalmente, tornando-o um ambiente pouco atrativo para a permanência de imigrantes, a educação no Catar, em especial o ensino superior, conta com uma estratégia de investimento e especialização para a população.
Educação para todos
A Qatar Foundation, instituição com o objetivo de melhorar o acesso à educação no país, foi criadora do WISE Prize – da sigla em inglês, Prêmio da Cúpula Mundial de Inovação Educacional –, apelidado de “Nobel da Educação”. As conferências da organização já reuniram mais de duas mil pessoas comprometidas em transformar o sistema educacional catariano, além de representantes da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) e de empresas multinacionais, como Nokia e Microsoft.
Qatar Science & Technology Park, Qatar National Research Fund, Qatar Biomedical Research Institute, Qatar Environment & Energy Research Institute e Qatar Computing Research Institute são alguns dos principais institutos da fundação com objetivos de desenvolvimento científico e tecnológico do país.
Um exemplo da preocupação do Catar com a educação se deu durante a pandemia de covid-19. Giselle Reis, de 36 anos, pesquisadora e professora de Ciência da Computação na Carnegie Mellon University in Qatar (CMUQ) há seis anos, conta que, durante a pandemia, professores e estudantes não enfrentaram grandes problemas na transferência para o estilo remoto. O estado ofereceu diversos auxílios para a população envolvida, além da própria universidade na qual leciona, que providenciou um estúdio destinado para gravação de aulas e permitiu que os professores levassem equipamentos novos para casa para montarem seus escritórios.
“A Qatar Foundation melhorou a internet nos dormitórios e a empresa de telecomunicações aumentou a velocidade da internet nas casas de professores e alunos. Como existem muitos recursos, não precisamos ser muito criativos nas soluções”, afirma a professora.
A educação escolar gratuita só é oferecida aos cidadãos catarianos – pessoas que nasceram no país e são filhos de um pai catariano. Para auxiliar as instituições privadas, que abarcam a demanda dos estudantes imigrantes, maioria no país, o governo oferece auxílios às escolas particulares, como o custeamento das contas de luz e água.
O ensino superior, que dispõe de renome mundial, patrocínio internacional e grande investimento, é protagonizado pela Cidade da Educação, complexo de mais de 10km² e localizado em Doha, capital do país. A ideia de criar tal infraestrutura foi iniciada pela Qatar Foundation, reconhecida por sediar institutos de pesquisa, algumas escolas e possuir um fundo destinado exclusivamente a incentivos para a criação de startups. Atualmente, abriga instituições de ensino de diversos países, entre eles Líbano, Estados Unidos, França e Inglaterra.
Segundo Giselle, o foco foi promover o desenvolvimento educacional de todos os alunos, sem discriminação de gênero. Além disso, uma das motivações para sua criação foi disponibilizar ensino superior de qualidade para os alunos impossibilitados de saírem do país para estudar que são, em sua maioria, estudantes do sexo feminino.
“No islã mais estrito, mulheres não podem viajar sozinhas. Então, enquanto muitos filhos conseguiam ir para o exterior fazer universidade, muitas filhas não iam. Apesar disso, havia interesse em educar essas meninas, e, invertendo um pouco um ditado popular, se Maomé não vai à montanha, a montanha vem a Maomé!”, conta.
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Uma realidade distinta
O salário acima da média em relação à Europa e ao Brasil e a curiosidade por vivenciar a cultura árabe são alguns dos motivos que fizeram a professora escolher trabalhar no Catar. No entanto, não há apenas pontos positivos em se viver no país.
Uma das críticas de Giselle é a falta de suporte governamental com os estrangeiros. Diferente de outros lugares ao redor do globo em que já trabalhou, como França e Áustria, no Catar apenas os catarianos possuem direitos de seguridade social, como aposentadoria. O sistema de saúde é público, mas segregado por sexo. Na única vez que tentou utilizá-lo, foi impedida de entrar por estar usando vestido.
“Existe uma sensação generalizada de que a vida do imigrante aqui é temporária e que o governo não vai se importar se a gente for embora. A segurança social é inexistente para imigrantes, até onde eu sei, e isso traz uma sensação de falta de compromisso: se o governo não se importa em cuidar de mim, e eu não tenho os mesmos direitos que um cidadão catariano, eu não vou vestir a camisa do país e lutar por um futuro melhor aqui”, desabafa a professora.
Os altos recursos estatais empregados no ensino superior facilitaram o acesso à educação de alta qualidade e atraíram muitos estrangeiros ao país também para estudar. É o caso de Giordana Fogaça, 24 anos, primeira aluna brasileira do curso de comunicação na Northwestern University in Qatar, hoje formada na instituição.
O processo de admissão foi parecido com o dos Estados Unidos, país de origem da universidade: a inscrição é feita por meio de uma plataforma online na qual se colocam notas dos exames requeridos e cartas de recomendação e de interesse – inclusive, o objetivo inicial da estudante era o campus norte-americano, mas aceitou ter sua aplicação considerada no país árabe, em 2018.
Para ela, o custo-benefício é bom e ela pode usufruir de diversos benefícios oferecidos pela universidade, como duas viagens pagas integralmente, passeios e oportunidades de trabalho e estágio. Sobre os valores despendidos, conta: “Nessa faculdade eu tenho metade [de] bolsa e metade de financiamento, então a minha contribuição familiar ficou muito pequena ou ficou menos do que eu pagaria no Brasil.”
Dentre os pontos negativos de se morar no Catar, cita o clima e certas normas sociais que precisam ser seguidas: “As temperaturas são bem altas e no verão fica ainda pior. Também tem algumas regrinhas diferentes do Brasil, tipo código de vestimenta e afeto em público, que a gente tem que ser um pouco mais cuidadoso”.
Frederico Silva, 37 anos, mora há cinco anos no Catar, trabalha como conselheiro da Associação de Estudantes Brasileiros e é diretor da Experiência Estudantil na Northwestern University in Qatar. Foi a primeira pessoa a fazer contato com Giordana para dar continuidade ao processo de admissão. Segundo ele, o governo catariano oferece muitas oportunidades para os alunos estrangeiros terem acesso a um crédito educativo. Desta forma, além de poderem obter uma bolsa por mérito, concedida pela faculdade, é possível também que eles solicitem esse auxílio, caso de Giordana.
“É um financiamento sem juros e, no final do tempo dos alunos aqui, se os alunos permanecem no Catar e trabalham em lugares filiados a essa organização [a Qatar Foundation], esse crédito vai sendo ‘perdoado’. Em vez de pagar com dinheiro, a pessoa paga com o tempo de trabalho aqui no Catar”, explica.
Tal medida não só beneficia os alunos, ajudando-os a custear os estudos, como favorece o país. Isso porque os fundos estudantis disponibilizados e pagos de outra forma proporcionam um ambiente mais atrativo para permanência dos estrangeiros que estudaram no Catar.
“O retorno do investimento do país é manter o cérebro, a mão de obra qualificada”, pontua Silva. Tantos incentivos não são à toa: o Catar possui um plano de longo prazo, chamado de “visão nacional” (tradução livre), focado em promover o desenvolvimento socioeconômico e, até 2030, ampliar a força de trabalho especializada formada por meio do próprio país, dentre outras metas.
Força feminina
Esta força de trabalho, atualmente, é liderada por mulheres. Na Northwestern University in Qatar, por exemplo, cerca de 80% dos estudantes são do sexo feminino. As mulheres também são maioria no corpo docente. As próprias raízes da Cidade da Educação são femininas.
A Qatar Foundation, responsável pela iniciativa, foi instituída por Mozah bint Nasser, mãe do atual emir, Tamim bin Hamad bin Khalifa Al Thani. Sua irmã, Hind bint Al Thani, é a CEO que lidera a fundação.
“Historicamente o ensino aqui sempre foi liderado por parte das mulheres. Tem um intuito muito grande das mulheres poderem fazer aulas. Normalmente quando você olha universidades árabes, o ensino é separado. Aqui não”, salienta Silva.
O ensino catariano também é diverso em outros âmbitos. Por ser um país formado em peso por expatriados e estrangeiros, o multiculturalismo é outra característica presente nas instituições. No que se refere à Northwestern University in Qatar, tanto Frederico quanto Giordana convivem com pessoas de vários lugares do mundo.
“Quando eu cheguei aqui, em 2018, só tinha eu de brasileira durante um ano inteiro. Sendo assim, eu consequentemente me aproximei dos outros estrangeiros. Tenho colegas do Paquistão, do Canadá, da Etiópia e da China”, conta a comunicadora.
O reitor vê essa característica como algo vantajoso para a instituição. “Uma coisa bem interessante é o nível de diversidade cultural que a gente tem aqui. Tem dez pessoas no meu escritório, sete países são representados ali. A universidade, mais de sessenta países representantes, sem contar a quantidade de países que elas passaram antes de chegar aqui. O denominador comum é a diferença cultural”, relata.
Para além da Copa 2022
Sediar uma Copa do Mundo é também ter os holofotes do mundo inteiro voltados ao seu país. Giselle Reis acredita que essa é uma excelente oportunidade para aumentar a visibilidade, o conhecimento e o desejo das pessoas em estudarem no Catar, a começar pelo fato de um dos estádios ficar dentro da Cidade da Educação.
Assim, os estrangeiros que irão ao país para acompanhar os jogos ainda terão a oportunidade de conhecer a gigante infraestrutura universitária do Catar. Os alunos também poderão vivenciar a experiência de perto: segundo Reis, as faculdades do campus se organizaram para não ter aulas durante o evento. As grades horárias de todas as faculdades foram modificadas para que o ano facultativo não impedisse os alunos de acompanharem o evento.
A professora fala com otimismo sobre a possibilidade de os visitantes conhecerem o Catar para além dos estereótipos. “Ainda existe um preconceito muito grande com a região, mas espero que a Copa ajude a combater isso. Acho que [as pessoas] não fazem ideia de que existem universidades excelentes com um modelo de financiamento ótimo para os alunos, dormitórios confortáveis, e uma qualidade de vida incrível”, finaliza.