Estudantes com deficiência visual e física comentam sobre a falta de acessibilidade nas bibliotecas de universidades públicas
As bibliotecas, desde o tempo de Alexandria, possuem um papel de detentoras da informação. Nos séculos passados, elas eram administradas por monges e frequentadas apenas por membros da igreja. Atualmente, esse caráter restrito cedeu lugar a um novo conceito de biblioteca: espaço que fornece informação em diversos formatos e para todos, ou deveria.
No Brasil, o acesso à informação para todos as pessoas é um direito assegurado pela Constituição desde 1988. Ao dizer todos, a lei se refere aos cidadãos brasileiros, nascidos ou naturalizados no país, que gozam dos direitos civis e políticos. Levando em consideração que esse fato é o primeiro passo para uma formação básica, a sociedade conta com diversos meios de acesso a esse recurso, dentre eles, as bibliotecas, que se mostram essenciais aos indivíduos do ensino superior.
Esses espaços públicos ou privados possuem acervos enormes e são utilizadas pela maioria dos alunos. Com a democratização do ensino superior crescendo no país, cada vez mais suas portas são abertas a diferentes realidades, buscando gerar a melhor experiência, mas na prática, estudantes com deficiência não são considerados no processo.
Arquitetura que se reinventa
No histórico de construções das bibliotecas universitárias, a acessibilidade, muitas vezes, não foi levada em consideração, ainda menos, a possibilidade de tal condição de alcance, percepção e entendimento das pessoas.
“A biblioteca é um projeto da década de 80. A sua arquitetura não tinha como objetivo a acessibilidade arquitetônica para pessoas com deficiência. Hoje, o espaço foi reformado pensando nessa necessidade”, comenta Uilian Vigentim, técnico de acessibilidade da Biblioteca de Ciências Sociais e Letras da Unesp de Araraquara.
Segundo Vigentim, os novos projetos de reforma foram pensados de acordo com a acessibilidade comunicacional e, por isso, a implementação de placas em braille, elevadores, letra ampliada e piso tátil são algumas das mudanças que a universidade se preocupou em fazer. “Apenas essa unidade teve a sorte da reforma. Algumas começaram em 2008 e continuam até hoje”, completa. Algo que facilitou a reforma em Araraquara foi o projeto anterior já possuir rampas.
Mas essa não é a realidade de todas as bibliotecas universitárias do Brasil, ainda menos, da melhor avaliada do país, a USP, segundo o RUF (Ranking Universitário Folha) 2023. A universidade possui 66 bibliotecas físicas nas unidades de ensino, museus e institutos de pesquisa dos campos, entre elas, está a Biblioteca da Escola de Comunicação e Artes (ECA).
“A biblioteca não foi pensada para pessoas com deficiência. A nossa sorte é que o espaço está no térreo e não precisa de rampas. Mas quanto as escritas em braille, algumas placas têm, outras não”, afirma Walber Lustosa, funcionário responsável pelo atendimento da biblioteca. Lustosa diz que o espaço entre as estantes do local é peqeuno, e mesmo seguindo o que determina a lei, cadeirantes não conseguem se locomover entre elas.
O funcionário completa que mudanças só acontecem após demandas específicas, como o caso de uma estudante, com deficiência de mobilidade, que não conseguia se comunicar com os funcionários da biblioteca devido a altura do balcão de atendimento. A partir dessa necessidade “isolada”, a ECA-USP resolveu alterar o móvel.
Educação acessível em “construção”
Outra questão, além da estrutura arquitetônica, é a disponibilização ou a adaptação dos conteúdos para deficientes visuais. Vigentim observa, que a falta de materiais em braille se dá pelo material ser volumoso e exigir alto cuidado. O técnico acrescenta que, de fato, a acessibilidade da Unesp não é o ideal, mas que a universidade possui tecnologias eficientes na adaptação de materiais.
“Hoje, o nosso acervo é considerado comum e com tecnologia assistiva – recursos e serviços que possibilitam o acesso de pessoas com deficiência a atividades e participação na vida escolar. Por exemplo, possso colocar o acervo no equipamento disponível, que digitaliza o conteúdo, podendo colocar em braille, letra ampliada e diferentes contrastes e áudios”, explica o técnico. No cenário acadêmico da Unesp, a conjuntura de reclamações é menor e relatos de impasses dos estudantes não são frequentes.
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Sonhos pela metade
Ana Luiza, de 25 anos, alcançou o sonho de ingressar na FFLCH-USP, em 2018, e cursando Ciências Sociais. No início, a jovem passou a enfrentar certos obstáculos por ser uma aluna com deficiência visual. “O meu principal problema de acessibilidade foi justamente em relação à biblioteca e aos textos. Tive problemas para acessá-los e fiquei sem saber o que fazer”, relembra.
O leitor utilizado por Ana reconhece apenas PDFs digitalizados, e não lê arquivos escaneados. Essa questão passa por dois extremos: a faculdade que, teoricamente, não tem autorização para disponibilizar textos oficiais, devido aos direitos autorais, e para a aluna, em que a maioria dos documentos sob domínio público têm qualidade baixa, atrapalhando o reconhecimento feito pelo programa. Por vezes Ana precisou recorrer a mãe para corrigir os erros dessas conversões, devido a pouca precisão da tecnologia oferecida.
Já com a estudante de Relações Internacionais da UNIFESP Alicy dos Santos, de 20 anos, e com deficiência de mobilidade, a biblioteca da universidade não é adequado para deficientes físicos, mas é frequentável. Segundo Alicy, quando se trata de deficiência visual, o espaço não tem material adaptado. E reforça: “A gente tem que falar e entender, que as deficiências são muito plurais e particulares”.
Em relação à biblioteca da FFLCH-USP, Ana diz que nenhum responsável pelo local está preparado para auxiliar os alunos com deficiência e a única tentativa de mobilização foi feita por uma aluna, também deficiente visual. Por conta da falta de assistência da instituição, a iniciativa foi prontamente reprovada. Hoje, a equipe se dispõe a digitalizar os textos, algo que parece simples, mas que se difere da primeira gestão, responsável pela biblioteca em 2018.
“Quando perguntamos se seria possível digitalizarem os documentos, o funcionário disse que os alunos tinham que se adaptar à instituição e não o contrário”, relata Ana Luiza.
Com a atual gestão, outro destaque é a chegada de scanners, além da prestatividade dos novos funcionários em ajudar os estudantes a manusear os equipamentos – embora não sejam preparados para esta função.
Mesmo com as melhoras, uma preocupação persiste em Ana: “Me pergunto se, quando próximos alunos chegarem, esses recursos ainda estarão disponíveis? Terão funcionários dispostos a digitalizar os textos ou a pessoa vai escutar o mesmo que eu escutei? É cansativo ser uma pessoa com deficiência, dá a sensação de que somos obrigados a inventar a roda o tempo todo”.
Obstáculos vão além
Segundo Walber Lustosa, a maior dificuldade é o constante contingenciamento de verbas e a escassez de recursos que as universidades públicas vêm enfrentando.
Já Uilian Vigentim acrescenta: “O desafio é a mudança cultural. Falta olhar os ambientes e os projetos com foco na inclusão, seja digital ou físico, e também a própria comunidade. Os órgãos colegiados, o conselho universitário e as diretorias das unidades nas assembleias precisam olhar essas demandas como algo emergencial”. Para Alicy dos Santos e Ana Luiza, a prioridade das universidades públicas jamais será com acessibilidade em bibliotecas.