Especialistas tratam do sucateamento dos cursos de humanas em instituições públicas, assunto em alta durante a gestão Bolsonaro (PL) e na última greve da USP
A recente greve da Universidade de São Paulo (USP) reacendeu um debate não muito antigo: o boicote aos cursos de humanas. A Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) foi a primeira a chamar a atenção para a falta de investimentos, principalmente no corpo docente da área. Todos os departamentos da universidade aderiram à paralisação, mesmo aqueles que menos sofrem com o corte de verbas. Mas as mais participativas foram as unidades estudantis de humanas, como é o caso da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), última a encerrar o movimento grevista.
O financeiro
Para Deisy Feitosa, coordenadora do curso de Jornalismo da Faculdade Cásper Líbero, o governo de Jair Bolsonaro (2019-2022), juntamente com a pandemia, influenciou no ataque à ciência como um todo. “Esse ataque reforçou todo um preconceito do senso comum e ajudou a criar esse pensamento de que os cursos de humanas são inferiores e não contribuem para a sociedade”, diz. Segundo ela, além da redução do orçamento voltado às universidades, foram questionados a gratuidade delas e o salário dos professores de ensino superior.
Em relação a gratuidade, Eliana Akamine, professora do departamento de farmacologia do ICB da USP, foi categórica: “Eu acho que a privatização é ruim para a universidade no sentido de reduzir, e talvez piorar, a qualidade do ensino, porque, na hora que você privatiza, o objetivo é lucro”. Ela pondera que algumas instituições conseguem manter uma boa qualidade no ensino mesmo sendo um instituto privado.
Quanto à questão do salário dos docentes, Akamine afirma que o investimento na carreira não é pequeno. A professora destaca que, para um professor passar em um concurso de universidade pública, precisa se especializar na área, ter pós-graduação, mestrado, doutorado e, cada vez mais, pós-doutorado, o que leva pelo menos dez anos. Após dois anos do concurso, o docente é efetivado, o que pode gerar, para a sociedade, uma falsa sensação de acomodação desses profissionais, diz. Entretanto,a professora ressalta que hoje existem diversos processos de avaliação dentro da universidade para que o docente não só progrida como também “preste contas”.
Rodrigo Ribeiro, doutor em Antropologia e professor da Unifesp Guarulhos, afirma que os professores universitários ainda custam pouco. “Os nossos salários podem ser considerados altos porque os padrões salariais brasileiros são muito baixos. (…) Sou o primeiro a falar: ‘vamos pagar o valor do mercado’ porque pagar para doutores qualificados, em meio de carreira, desempenhando bem a função, e com dedicação exclusiva, como acontece com a gente, é outro valor”, diz. Ele argumenta que os setores da sociedade que defendem que servidor público é excesso, o fazem sem nenhuma análise técnica.
Para o professor, o problema consiste na medição de custos, visto que as universidades federais não têm uma adoção orçamentária fixa. Isso é negociado internamente no Ministério [da Educação]. Por conta disso, somos vulneráveis à política de governo. Em um governo menos propenso ao financiamento da ciência, nós sentimos o impacto”. De acordo com ele, é preciso lidar com a escassez, mas a redução de verbas dificulta as funções sociais esperadas do ensino superior.
O social
Segundo Ulysses de Paiva, bacharel em Gestão de Políticas Públicas, a intenção, em casos como esse, é que a criticidade e o questionamento social provenientes de cursos de humanas realmente não ocorram. “’Eu’ não quero uma pessoa questionando o sistema, quero uma pessoa que me faça ganhar dinheiro, mantenha o sistema de pé, seja um apertador de botão, um peão”, afirma.
Para Feitosa, da Cásper, o imediatismo e a falta de investimento contribuem para que projetos humanísticos não sejam valorizados. O Transcender, projeto interdisciplinar que a professora participa junto ao professor Almir Almas (USP), voltado à rituais de despedida, por exemplo, tem encontrado muita dificuldade em sair do papel, porque recebeu pouco financiamento. Agora está em fase de implementação dentro do metaverso, mas graças a algumas bolsas fornecidas pela USP e com o esforço voluntário da maioria dos envolvidos.
Ela argumenta que os métodos usados nas pesquisas de ciências humanas são sistematizados e rigorosos como o de outros campos, mesmo que alguns resultados não sejam tão palpáveis e rápidos. “Às vezes, a minha pesquisa não é aplicável, mase consigo levar a minha linha de raciocínio e metodologia para outras pessoas, em outras áreas do conhecimento.”
Como essa visão sobre as áreas do conhecimento, normalmente, leva em conta resultados financeiros, as ciências humanas tendem a ser menos rentáveis. Porém, para Ribeiro, da Unifesp Guarulhos, há vários modos de medir esse impacto: “Se queremos entender o funcionamento da sociedade e os caminhos que vamos enfrentar daqui por diante, [a ciência humana] é essencial”. Segundo ele, “o verdadeiro critério que não quer mudar é o político.”
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A política
Não investir em políticas públicas nessas áreas é algo que sempre aconteceu, pontua Paiva. Para ele, a situação ficou mais desesperadora no governo de Michel Temer (2016-2018), e com os discursos de Bolsonaro, que não acreditava na importância dos cursos de humanas e preferia investir em escolas técnicas.
O gestor de políticas públicas vai além na sua reflexão ao dizer que, apesar de o investimento total ser responsabilidade do Estado, a sua má divisão é um descaso das instituições. Ele diz que investir “quase todas as fichas” em cursos mais valorizados pelo mercado também tem relação com o perfil dos alunos.“A EACH (Escola de Artes, Ciências e Humanidades) é o campus da USP com mais alunos negros e de escola pública, e também o mais negligenciado.”
O futuro
O bacharel afirma ainda que essa escolha política é simbolicamente ilustrada no novo ensino médio do Estado de São Paulo. “Basicamente, tesouraram todas as matérias de humanas. [Isso] mostra um pouco como o ensino superior nessas áreas é tratado.”
A professora Feitosa acredita que existe uma resistência por parte dos jovens para as ciências humanas e que, por isso, é importante conscientizá-los desde cedo. “Temos que começar um novo projeto, dentro dessa perspectiva. E, para mim, a divulgação científica tem papel fundamental para virarmos a chave. É preciso mostrar como é o nosso conhecimento aqui dentro das humanidades. Às vezes produzimos e deixamos guardado nas bibliotecas. Precisamos divulgar, publicar artigos”, afirma.
Ela destaca que essa resistência por parte da sociedade vem de um pensamento superficial, sem embasamento. “Se um chefe político fala que as áreas de humanas não têm valor, muitas pessoas não param para refletir, confiam naquilo que ele fala, até por uma questão de legitimidade.” Por isso, segundo ela, é preciso desconstruir esses discursos, que são os mais perigosos, nas escolas e nas universidades. “São lugares estratégicos para que a gente possa legitimar e convencer a sociedade do nosso papel, enquanto seres que estão contribuindo para a ciência e para a sociedade. A gente precisa valorizar cada vez mais o professor.”
Para Ribeiro, da Unifesp Guarulhos, o problema é que as pessoas ainda não entendem a influência da universidade na formação da própria sociedade. “São 500 anos de história, mas só cem anos de universidades. É preciso mais tempo para resolver essa imagem”, ressalta. Ele cita a fala de Darcy Ribeiro “A crise da educação no Brasil não é uma crise, é um projeto”. “Prefiro entender nesses termos.”