Depois de perder o filho num acidente de trânsito, Adriana Cardoso começou a escrever um livro sobre a vida do primogênito e conscientização no trânsito
‘Take On Me’, ‘Fluorescent Adolescent’ e ‘Hiding Tonight’ são canções que tocam no pen-drive plugado na caixa de som da sala de Adriana Cardoso, 47. É assim que ela mantém viva a memória de Pedro, seu filho que foi morto aos dezoito anos num acidente de trânsito, no Dia das Mães de 2017. “Eu não fico me lamentando e chorando porque sei quem ele era. O Pedro era muito vivo, ele era muito do ‘vamo tocar a vida pra frente’. O tempo de vida dele acabou e é isso que tenho que aceitar”, comenta.
“Tem dias que eu tenho uma angústia tão grande de não ter o Pedro. Às vezes, estou fazendo a janta e fico naquela sensação de que a qualquer momento ele vai chegar de bicicleta”
Para Karina Okajima Fukumitsu, psicóloga, psicoterapeuta e suicidologista, o luto materno carrega em si uma especificidade, já que “nenhuma mãe, nenhum pai tem um filho para enterrá-lo, isso vai contra o fluxo da vida. Muitas vezes, o filho tem a carga de levar e conduzir essa continuidade familiar”. Segundo Karina, os maiores desafios enfrentados nos estudos do luto materno são entender o que fica depois da partida de um filho e como uma mãe poderá se reconciliar com a vida após o fato.
Ainda que cada mãe encontre mecanismos diferentes para lidar com o luto, um fator comum é o estresse pós-traumático. A psicóloga explica: “Perder faz um filho faz com que a gente duvide se vamos ter o auto suporte necessário para continuar a vida, e esse acaba sendo um espaço propício para o desenvolvimento de outros transtornos psicológicos. Portanto, os próprios pais acabam se tornando parte de um grupo de risco”.
Planos interrompidos
Durante o processo, é inevitável se questionar sobre o que a vida poderia ter sido e não foi. Além da morte literal, há uma série de mortes simbólicas, expectativas e sonhos. Os planos, quando são interrompidos de maneira abrupta, se tornam uma extensão de possibilidades infinitas. “Eu sempre me pergunto como o Pedro estaria hoje em dia. Ele era muito afetivo, tinha muita vontade de tudo. Ele tinha algumas maluquices de querer morar junto com a namorada, de querer morar fora do país. Eu sempre falo, que, se ele estivesse aqui, ele morreria por causa da quarentena”, reflete Adriana.
Para Fukutmitsu, o luto não tem prazo prévio para terminar. “Quando a morte vem de maneira agressiva e violenta, nós, profissionais que lidamos com pais, precisamos lidar primeiro com a maneira que esse filho se foi. Muitas vezes, as cenas que o pai tem do filho morto geram uma maior dificuldade para lidar com o processo do luto.” Adriana confirma a fala da psicóloga ao falar sobre a Avenida Senador Teotônio Vilela, via em que Pedro foi atropelado e morto enquanto voltava para casa de bicicleta no dia 14 de maio de 2017. “Hoje, não consigo passar naquela avenida. Sempre corto o caminho porque tenho sensações ruins.”
Pósvenção e grupos de apoio
A dor sofrida por pais que perderam os filhos virou apenas recentemente temática de estudos na esfera da psicologia brasileira. Agora, grupos de apoio ao luto e pósvenção ao suicídio tornam-se cada vez mais comuns. Essas associações buscam promover uma sensação de alívio ao dividir os sentimentos de dor e angústia com quem passou por situações semelhantes.
Em São Paulo, Karina faz parte da equipe do Núcleo de Assistência Social do Instituto Sede Sapientiae que promove um grupo de acolhimento ao enlutados por suicídio, sob o slogan “Transformador em Amor” – os enlutados por suicídio podem enviar e-mail para [email protected]. O objetivo é aproximar pais enlutados por suicídio para perceberem que não estão sozinhos – em contracorrente ao senso comum de que perder um filho é uma experiência individual. O que se percebe, principalmente, é um sentimento de acolhimento, condescendência e respeito durante as sessões. Esses pais, juntos, acabam por fortalecer uns aos outros. “É como se houvesse uma linguagem própria”, analisa a suicidologista.
A recuperação da dor não é linear, e vem carregada de altos e baixos. O primeiro ano, por exemplo, tende a ser o mais difícil por ser cheio de primeiras vezes – o primeiro aniversário, o primeiro natal. Em algum momento, porém, a mãe é capaz de enxergar sua nova rotina por lentes focadas em uma orientação para a vida. As cicatrizes que ficam, afinal, viram expressões de luta e sinais de que aquilo que antes era uma ferida aberta pôde se recuperar.
Adriana Cardoso também participa de grupos de apoio. “Eu digo que eu sobrevivo. Participo do Grupo do Luto no Servidor Municipal. Ouço histórias muito pesadas. Mães que perderam a filha indo dar aula, pai que perdeu o filho. Você sai de lá detonado, mas esse choque faz perceber que isso é a vida”, conta.
O que fica
Três anos e meio depois do falecimento de Pedro, hoje, Adriana colhe novas experiências no relacionamento com seus filhos. “O Bernardo tinha seis meses e não o conheceu, mas ele se parece com o Pedro em muitas coisas, nas roupas, no gosto musical”.
No entanto, o acidente que envolveu seu primogênito ainda causa indignação. “Eu mandei mensagem pro homem que atropelou meu filho: ‘Por questões de segundos que você queria estar à frente, não sei se por dor de barriga ou porque queria estar em casa… independentemente da situação, do que valeu toda aquela pressa? Meu filho tinha 18 anos e você nunca se preocupou em conhecê-lo. Hoje, você ainda consegue passar um sinal vermelho?’”
Em meio aos momentos de reflexão, Adriana vem compreendendo a situação a respeito do filho e começou a escrever um livro sobre a vida de Pedro e a conscientização no trânsito. “Eu quero ser útil na vida, estou me recuperando. Eu e a tia do Pedro, com a ajuda dos amigos, estamos escrevendo ‘O Diário de Pedro’, uma história engraçada focando nos problemas de trânsito. Queremos distribuir gratuitamente nas escolas, fazer palestras. Inclusive, eu convidei o condutor que o atropelou. ‘Qual é seu aprendizado após isso?’”.