Pandemia escancara os regionalismos brasileiros e revela modos de lidar com a COVID-19 distintos em cada rincão; conheça histórias do Amazonas ao Piauí
“Que a gente veja no outro, o nós”
“Fiz café, mas não coloquei mais açúcar”, Elizângela Conceição Cavalcante, 48, professora e extrativista ribeirinha, conta as principais queixas da comunidade São Francisco do Caribi durante a pandemia. Com a crise do coronavírus e o aumento nos preços de produtos básicos, a comunidade se vê fadada a tomar o café amargo: “eu sei que é até saudável, mas a gente tem o costume de tomar o café doce”, comenta Elizângela. Assim como o café, as tragédias da pandemia desceram amargas para a população ribeirinha.
Com o advento da crise e a falta de acesso às cidades maiores, a venda do tucumã, principal fonte de renda da comunidade, foi severamente afetada. Aliada a essa falta de renda, os preços dos produtos de supermercados consumidos pela comunidade aumentaram exorbitantemente. Elizângela conta que o pacote de leite, antes vendido por R$7,50, passou a custar cerca de R$12 durante a pandemia. Contudo, os ribeirinhos logo mostraram-se unidos e rápidos para pensar em soluções conjuntas. “A gente começou a se preocupar mais um com o outro”, conta Elizângela sobre o espírito de comunidade que se instaurou com a pandemia. No que tange à falta de alimentos, a comunidade logo se propôs a aumentar o cultivo de produtos orgânicos, como batata e caju.
Dentre os momentos mais marcantes da pandemia, Elizângela conta, com a voz embargada, o desespero que sentiu ao ser informada do primeiro contágio na comunidade, a jovem Jamile, 16, e sua tristeza ao descobrir que a menina tinha que comer sozinha e permanecer afastada dos demais. “Quando a gente adoece, a gente quer carinho; quer atenção, não quer ficar isolada”, comenta a professora.
Ainda com a voz carregada de emoção, Elizângela conta que perdeu 14 colegas, todos professores de Itacoatiara, em uma só semana no começo de 2021 por conta do vírus. “Até hoje, ainda não tive coragem nem de apagar o nome deles da agenda do meu celular”, desabafa.
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Pandemia sem água e sabão
No Nordeste semi-árido brasileiro, a pequena região de São Raimundo Nonato, no interior do Piauí, também sofreu os impactos avassaladores da pandemia. Maira Alves, 39, moradora da comunidade Novo Zabelê, diz se sentir frustrada e angustiada, visto que sua comunidade não chega nem a ter a oportunidade de evitar o vírus com água e sabão: estão há 3 meses sem água na torneira, por conta da falha de uma bomba que leva água às 32 famílias moradoras do Zabelê: “A gente tá há três meses sem água nas torneiras. E a água vem e quando ela vem, ela vem bem fraquinha, a gente passa a noite toda com a bacia (…)”, ela conta. Maira ainda afirma que a água é a opção de esterilização mais viável para a maioria das famílias, já que o litro do álcool em gel chegou a R$50,00 no início da pandemia, e, por mais que tenha baixado, o preço continua inacessível para grande parte dos moradores da região.
Logo no início da pandemia, Maira foi demitida do Parque Nacional da Serra da Capivara, que precisou cortar gastos pela falta de turistas, e passou a trabalhar na loja de seu marido. Para ela, o famoso “Home Office”, adotado por muitos trabalhadores brasileiros, não é uma realidade possível, já que é necessário trabalhar para continuar sobrevivendo nessa guerra contra o invisível – o vírus letal. Mesmo assim, o medo assola todos os moradores que, para garantirem suas necessidades básicas, precisam se arriscar. O custo é grande: o único hospital da região possui apenas 20 leitos de UTI, todos ocupados desde o início da pandemia – a outra opção está localizada a centenas de quilômetros de distância.
André, 37, seu marido, infelizmente, foi um dos soldados que contraiu o vírus. Com o pulmão 40% comprometido, ele ficou à beira da intubação e passou dias na UPA recebendo oxigênio. Maira, por sua vez, passava os dias sentada ao telefone à espera da ligação rotineira das 17h, com um medo angustiante da notícia que receberia. Solitária, assim como o marido, Maira acompanhava apreensiva a cobertura do coronavírus pelos telejornais, que apenas potencializavam seus temores.
* Redação Aberta é um projeto destinado a apresentar o jornalismo na prática a estudantes do ensino médio e vestibulandos. A iniciativa inclui duas semanas de oficinas teóricas e práticas sobre a profissão. A primeira edição ocorreu entre 17 e 28 de maio. O texto que você acabou de ler foi escrito por um dos participantes, sob a supervisão dos monitores do núcleo editorial e de professores de jornalismo da Cásper Líbero.
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