Os desafios de uma analista ambiental ao equilibrar o papel de mãe com o projeto de proteção das onças-pardas na região metropolitana de São Paulo
“Ela não vê os animais como inferiores. Ela cuida como se fosse filho, está sempre olhando, atenta, preocupada se ele está sentindo frio, se ele tá com calor. Principalmente com os filhotes que passaram por aqui, sempre foi assim”, descreve Henrique. “Ela tem uma paixão muito grande, não só com as onças, mas acho que com toda a fauna”, conta Sérgio.
O encantamento não vem apenas do fato de Márcia Gonçalves Rodrigues ser mãe de Henrique e esposa de Sérgio. Trabalhando como analista ambiental no Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) – autarquia federal e braço do IBAMA -, Márcia é, acima de tudo, uma apaixonada por bichos. O sentimento cultivado por décadas serve de base para sua ação de implementação das políticas públicas focadas na fauna e flora do país.
“É uma relação de profunda admiração. Mesmo antes de trabalhar com elas aqui, pessoalmente, eu sempre achei a onça-parda mais bonita que a onça-pintada”, descreve Márcia sobre os felinos, “achava o rosto dela bastante sereno. E eu sou apaixonada por gatos, e a onça é um gato”, ela brinca. “Um gato grande, mas é um animal extremamente inteligente, tanto que ela conseguiu se adaptar e viver perto do ser humano, o que é um desafio hoje.”
Aos 56 anos, ela possui um longo histórico trabalhando com a vegetação e com as vidas animais do país. Sua relação com a onça-parda começou em 2011, quando ela criou um projeto de restauração florestal e da fauna e para a educação ambiental: o Corredor das Onças. Focado no estudo das onças-pardas que vivem na região metropolitana de Campinas, interior de São Paulo.
O caminho até as onças
O Corredor virou uma ONG em 2014, da qual surgiu o Projeto Abayomi, voltado para a reabilitação desses animais. Márcia trabalhou em parceria com diversos profissionais voluntários, como veterinários, e com seu marido para a realização do resgate de mais de 50 onças com lesões causadas por acidentes, como atropelamentos, mas, também, por ferimentos resultantes da caça ilegal de onças na região.
Mas foi um almoço quase que de Natal que inspirou todo o seu trabalho com as onças-pardas. Todo ano, em dezembro, Márcia se encontrava com o Doutor Paulo Nogueira Neto para um almoço. “Ele foi meu orientador de mestrado, mas também meu orientador de vida”, conta. A tradição começou durante o curso de Ecologia na USP e continuou mesmo depois da sua graduação do mestrado.
Em um desses encontros tradicionais, o Dr. Nogueira Neto contou que um funcionário de sua fazenda encontrou uma leoa em sua propriedade na região de Cosmópolis – uma Unidade de Conservação que ele mesmo criou, no interior do Estado de São Paulo. O ex-Secretário Especial do Meio Ambiente brincou que ela “devia ter fugido de algum circo, mas depois percebeu que era uma onça-parda”, relata Márcia. Foi então quando o amigo confessou para ela que gostaria muito de estudar o animal e sua presença em regiões não tão óbvias.
Márcia já atuava como funcionária do Ministério do Meio Ambiente nessa época e estava terminando seu doutorado em Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências na Unicamp. A presença desse tipo de predador em uma região urbana a fascinou. Porém, a sua jornada para estudar as onças “foi uma luta”, ela confessa. As autoridades não enxergavam um propósito de dedicar um servidor oficial nesta Unidade de Conservação, mas Márcia não deixou isso a impedir.
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“Aprendi isso com ela, a nunca desistir. Correr atrás do que você quer, incansavelmente, mesmo que isso te mate no futuro”, conta o filho Henrique. “Desde que eu era pequeno, minha mãe estava sempre trabalhando. Quando a gente morava em Brasília, meus pais precisaram sair de lá. Eu e meu pai fomos para São Paulo e minha mãe ficou em Brasília”, lembra o jovem de 19 anos sobre a dinâmica familiar de quando ainda era criança. Márcia eventualmente conseguiu se mudar para a região onde estava localizada a Unidade de Conservação para estudar a onça-parda, área em que fundou O Corredor das Onças e o Projeto Abayomi.
Essa determinação e preocupação com o meio ambiente de Márcia começou desde cedo. Ela decidiu que se tornaria vegetariana com apenas nove anos de idade em plena década de 70, em Muzambinho, município pequeno no interior de Minas Gerais – uma época e região em que a prática não era tão popular. Porém, sua trajetória não foi tão direta e certeira quanto sua decisão de infância, que perdura até hoje. Sua carreira começou com um paradoxo.
Márcia se diz um “contrassenso”, isso porque fez faculdade de zootecnia, que não é sobre proteção ao animal, e sim sobre a criação de animais para produção de carne. “Naquela época era tudo mais complicado. Se existisse internet eu jamais teria escolhido zootecnia”, revela.
Desde que foi selecionada para estagiar, na área da ecologia, no Instituto Butantan, em São Paulo, Márcia decidiu fazer seu mestrado em ecologia. No decorrer dessas atividades surgiu a oportunidade de ir trabalhar no SIVAM (Sistema de Vigilância da Amazônia) via concurso, então aceitou.
Ser mãe no mercado de trabalho
Foram cerca de 5 anos trabalhando no SIVAM, e foi lá que ela encontrou e começou a namorar Sérgio, que viria a ser o pai de seu filho e seu marido. Mas não só de momentos bons fez-se a história entre Márcia e o Sistema de Vigilância da Amazônia.
Ao retornar da licença-maternidade se deparou com a demissão. O SIVAM ficava em São Paulo e Márcia ia até a fundação de ônibus fretado todos os dias. “Fui de manhã chorando porque eu deixei o Henrique pequeno, ele tinha 5 meses, para ficar com o pai. O Sérgio trabalhava de casa na área dele, analista de sistemas”, conta Márcia. “Então eu fui chorando, por ter que deixar ele e voltei chorando porque eu cheguei na fundação e eles me deram o aviso prévio para cumprir 30 dias”, ela explica.
“Depois que você tem um filho fica complicado, ainda mais para a mulher”, conta Márcia, mas ela já imaginava essa possibilidade, então ela prestou e passou no doutorado na Unicamp. Lá, ela tinha uma bolsa para se manter.
A realidade da mãe que trabalha fora impactou a vida de Márcia de outras maneiras: “A gente enfrenta uma dupla e, às vezes, uma tripla jornada. Você fica ali na corda bamba, mantendo equilíbrio para fazer tudo”. Sobre a infância de seu filho, ela conta que Henrique cresceu com seus pais almoçando fora.
O seu trabalho também trouxe imprevistos para a família. Muitas viagens foram canceladas de última hora, pois uma onça havia sido atropelada ou alguém tinha colocado fogo ilegalmente numa área e Márcia e Sérgio tinham que deixar tudo de lado para lidar com essas situações.
Quando perguntada se ela se arrepende de alguma coisa, Marcia confessa: “Eu acho que eu dediquei muito tempo aos bichos, principalmente quando o Henrique era pequeno”. Ela pausa e reajusta seus óculos de grau antes de continuar: “A gente tenta compensar, o que, às vezes, não é legal, porque você acaba sendo um pai muito permissivo. Talvez eu tenha sido muito permissiva com o Henrique para compensar essa ausência”.
O filho enxerga a situação de uma forma diferente: “Nunca liguei muito. Ela sempre teve as responsabilidades dela e eu sempre entendi isso. Aquilo era prioridade. Eu não me incomodo muito não”. Ele também desconstrói as inseguranças da mãe com convicção: “Ela é a mulher mais forte que eu já conheci, muito determinada e dedicada”.
O exemplo que vem para casa
Henrique teve contato com alguns dos animais resgatados por sua mãe quando era criança. O filhote de gato do mato, Madiba, foi o animal que ele teve mais proximidade. A família do felino morreu em um acidente e ele passou um tempo na casa da Márcia enquanto se recuperava. “Ele era do tamanho da palma da nossa mão”, lembra Márcia. “Ele estava sempre comigo, filhote quer sempre brincar. E eu sempre quis ter gato, então aproveitei”, conta Henrique rindo, pois ele e o pai têm alergia a gatos e não podem adotar essa espécie de animal. Mas um dia o Madiba sumiu.
“Quando a mãe sai, os filhotes de felino selvagem ficam no ninho, só saem quando a mãe volta”, explica Márcia. “Quando eu saía, o Madiba se escondia entre a muvuca de roupas que tinha dentro do armário”, ela lembra. Ela se atrasou no trabalho em uma ocasião e pediu para o filho dar o leite ao filhote, mas Henrique não o encontrava. “Ele tava sob minha responsabilidade, pensei ‘Meu Deus, minha mãe vai me matar’, explica Henrique, hoje achando graça. “Eu voltei para casa e foi só o Madiba ouvir minha voz que ele apareceu correndo”, relata Márcia.
Abayomi é mais um dos casos que Márcia leva com carinho. “Quando encontramos a falecida mãe dele, que ainda era lactante, prometi que encontraríamos seus filhos e devolveríamos à vida livre. Mas o Abayomi foi o único filhote que achamos. Era pele e osso”. Márcia conta chorando: “Ele lutou para viver. Foi o que eu mais me apeguei.” Essa história foi a inspiração para a criação do Projeto Abayomi.
Mais uma vez homenageando a língua tupi-guarani, Márcia nomeou Guru. A onça foi resgatada após ter sido atropelada, e precisou ser operada mas “por ser muito forte, 30 dias depois de ter a cabeça do fêmur retirada já estava andando, desesperado para sair”, diz Márcia. Mas a analista de ambientes, de maneira cabisbaixa, revela que 6 meses depois Guru foi abatido por caçadores: “Fomos até o local onde tínhamos o sinal de mortalidade e era um acampamento de caçadores. É muita covardia”. E ainda expõe que foi um dos casos que a deixou mais triste, porque por achá-lo lindo e inteligente, se apegou.
Sobre sua parte favorita do seu trabalho – a soltura -, Márcia conta que: “Os animais sentem que eles vão ser soltos.” E ela revela que um dos momentos mais marcantes foi com a onça-parda que inspirou boa parte do seu trabalho: “Nunca vou me esquecer, eu olhei pelo buraco de respiração da caixa e vi o Abayomi, é como se estivesse sorrindo para mim.”
“A soltura é um ato de amor. Machuca, mas é bom. Você sabe que você cria o filho para o mundo”, pondera. Depois que as onças resgatadas retornam ao seu habitat natural, Márcia conta que elas aprendem com a experiência traumática. Ela também está ciente de que o felino pode voltar a ser machucado, mas que isso não é motivo para mantê-lo em cativeiro. “É a mesma coisa com o seu filho”, ela elabora. “Você não vai travar a vida do seu filho por medo de que alguma coisa aconteça. Infelizmente, viver é isso”.