Era ela quem mais se mexia naquele ônibus. Entre todos, em seus celulares, suas mochilas, seus sonos, a velha não aceitava entrar no marasmo que o transporte público proporciona. Certamente não acordara a menos de uma hora, nem tivera que curar nenhuma ressaca no seu café com leite. Desperta, a velha se debatia como em sonho. Debaixo dos tricôs que lhe envolviam o corpo, a velha enrubescia na batalha contra a dúvida. Firme, numa mão, segurava a caneta entre o médio, o indicador e o polegar. Na outra, mole, tinha seu oponente: um volume de Sudoku em papel jornal. Agarrada à ponta da esferográfica, mantinha o rigor de uma esgrimista presa ao seu florete, atacando apenas com o mínimo de certeza. Mas a luta ali era menos entre o papel e a tinta do que entre sua espera e os anos.
Com a boca mole, a velha entrava surdamente no reino da aritmética. “Quem está aí? Responda-me, pare e diga seu nome”, indagava ela à aparição do rei morto. E a boca se trançava em somas. O jovem em fones ao seu lado dormia em busca da voz dos outros para se acalmar. De ouvidos abertos, a velha tecia um casulo para escutar sua voz. Ela tirava o indicador da inquieta caneta e o aproximava da boca, indecisa, maquinando qual seria seu próximo bote. O papel quadriculado indagava sobre o infinito, e a velha, sem dizer, sabia que ele era bom. Mas mentia.
Estocada nas costas. Num salto, saindo de trás de um arbusto, uma semelhante cometeu o ato desonroso. “Sempre bom ter uma coisinha para fazer, né?”, ressoou a idosa inconsequente. Puxado o tapete do seu transe matemático, a velha mentiu. “Faz bem para a cabeça”, respondeu, mostrando seus dentes.
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Além de honra, faltava à enxerida um vislumbre de sua própria condição. Na ânsia por uma frase simpática que lhe fizesse companhia até o fim da viagem, ela se exibia em um sorriso fixo, idiota, tentando recuperar o requebro de outras temporadas.
Matemática, a velha é que curtia sua velhice, borbulhando o caldeirão do ostracismo com o tempero que colhera no ensino primário. Não saberia dizer qual a sua idade – sei apenas que já era legalmente idosa: estava sentada no banco preferencial do ônibus ao lado de um que não o era –, mas decerto estava investindo cada um de seus anos naquela cruzada íntima. E não estava disposta a perder sequer uma batalha por ocasião de uma infiel dessemelhante.
Seus olhos desceram novamente para o papel, sem que nenhum outro músculo se mexesse. Depois que a outra (finalmente) saiu do ônibus, ainda agarrada à ilusão de ter trocado afetos com uma irmã, a velha fatal assassinou o enigma. Enfim, seus braços se cruzaram, a ponta da caneta voltou para o coldre e o pescoço caído ergueu-se e mostrou, em reverência, que naquele instante, em algum ponto do itinerário, ela imperava surda e perpétua sobre todos os passageiros.