Ônibus fantasma. 23h46.
Eu e minha mochila ocupamos uma dupla de assentos próxima às portas. Na verdade, precisaríamos de mais cadeiras, estamos em muitos: eu, minha mochila, meus fones de ouvido, minha atual leitura e uma dúzia de pensamentos desconexos. Estes são os mais espaçosos, estão por toda parte. Penso e logo despenso. Depois repenso e penso mais uma vez. Repetidamente.
A mente raciocina em espiral enquanto o corpo balança no ritmo das tangentes abruptas. É como um ragga violento, mas sem libidos exalados ou qualquer atmosfera afrodisíaca, uma espécie de requebrado desgastante e sombrio. Cansaço físico, desilusão amorosa, desequilíbrio alimentar, indignação política, fadiga pulmonar e más ideias – todos juntos. Embora me canse simplesmente estar aqui, sou obrigado a permanecer, porque pior seria caminhar a pé os quatro quilômetros da estação à minha casa na solidão perigosa desta noite fria. Ainda não vale o risco. E, não, também não tenho dinheiro para um Uber.
À minha volta estão condutor, motorista, outros trabalhadores e estudantes desgastados pelo peso de mais uma semana. Um replicador de sorrisos amarelados dirigindo um carro com poucos jogadores de Tetris sofisticados, assessores de imprensa de si mesmos e leitores assíduos. Cada um imerso em seu universo particularmente problemático de contas para pagar, filhos para botar na cama, baterias obsoletas de celulares viciados e livros entediantes. Ninguém tem a coragem – ou seria impertinência? – de ficar de prosa a uma hora dessas da noite. Eu, orgulhosamente, sou o mais covarde dos homens neste momento.
Tudo o que eu quero é silêncio, paz e nada mais. Além de um banho e minha cama, quando saltar deste simulacro de ônibus-fantasma de R$ 4,50 a passagem. Caro demais para rodar em um parque de diversões, digo, uma cidade de 15 km² como São Caetano do Sul. E para não dar susto nenhum também: os mortos-vivos daqui são demasiado previsíveis. Eu sou o maior deles provavelmente.
Entre tantos devaneios, vejo o ponto se aproximar. Fecho o livro, abaixo a música, guardo o celular no bolso, pego as chaves do portão. Puxo a cordinha. “Parada solicitada” acende em laranja no painel acima da porta. É hora de levantar. Pensando bem, não seria tão ruim ficar sentado aqui e dar mais uma volta. Quê? Outra má ideia. Melhor descer logo, estou ficando cada vez mais maluco.
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