Meses após golpe militar, país passa por uma grave instabilidade política. Fonte exclusiva afirma que o setor de saúde é um dos mais prejudicados
Caos político, guerra, crise sanitária e dependência internacional. Essa é a situação de Mianmar nove meses após um golpe militar, instaurado em fevereiro de 2021, depois de dez anos de governo civil. Sob alegações de fraudes eleitorais, o exército declarou estado de emergência, o que levou à deposição do presidente Win Myint e da dirigente política Aung San Suu Kyi – vencedora do prêmio Nobel da Paz em 1991 -, ao fechamento do Parlamento e do Senado birmanês, cortes na internet e o cancelamento de voos internacionais para o país.
A facilidade na retomada do poder pelas forças armadas pode ser explicada pela estrutura política do país. Apesar do estabelecimento de um governo de transição para a democracia em 2011, toda a conjuntura do Estado ainda reflete os 50 anos de regime ditatorial que o antecedeu.
“Em Mianmar, as forças armadas se confundem com o Estado. Além do maquinário bélico, os principais ministérios e 25% do legislativo estão na mão dos militares”, explica Thiago Henrique Desenzi, professor de Relações Internacionais na Faculdade Anhembi Morumbi. “Isso demonstra que, apesar da abertura em 2011, eles não saíram do poder. Hoje, vemos a tentativa de manter essa posição.”
Movimentos de resistência e a guerra civil em Mianmar
Com o golpe, milhares de civis foram às ruas para protestar contra o governo militar. Até junho deste ano, mais de 500 pessoas foram mortas pelas forças armadas birmanesas nas manifestações.
No dia 7 de setembro, a situação se tornou ainda mais tensa e incerta: o Governo de Unidade Nacional (NUG), administração paralela que reúne as lideranças da resistência do país e grupos guerrilheiros de minorias étnicas, declarou “guerra defensiva” contra a junta militar, ato que serve de prelúdio para uma guerra civil no país. Desde então, houve um aumento no número de confrontos e de presos políticos em Mianmar, com a detenção de jornalistas e de líderes das forças revolucionárias.
Até agora, o conflito tem recebido pouca atenção internacional. “O direito humanitário evoluiu muito com os processos de independência e descolonização, mas quem negocia os tratados são os Estados”, afirma Tarciso dal Maso Jardim, jurista especialista em Direito Internacional Humanitário, sobre as dificuldades da atuação do direito humanitário em casos como o de Mianmar. “Dentro dessas negociações, tentaram dizer que o que acontece no interior de cada país cabe ao seu respectivo governo resolver, como uma forma de justificar atrocidades internas”.
Covid-19 em Mianmar: Consequências dos movimentos na saúde
“Aconteceu algo em Mianmar que eu nunca antes havia visto: o governo paralelo, como forma de protesto, conseguiu paralisar todo o setor de saúde nacional. No país, não existe um sistema privado de saúde forte, a população depende desses serviços prestados pelo Estado, e estão sem”.
Vicente (nome fictício) é de família birmanesa e aceitou falar com a reportagem. Por motivos de segurança, pediu anonimato total, pedindo sigilo até mesmo sobre sua profissão ou localização atual.
Ele conta que a crise no setor da saúde do país coincidiu com a chegada da terceira onda de covid-19 no continente asiático, e se somou aos problemas decorrentes da pandemia. “Nas duas primeiras ondas de covid-19, o país reagiu muito bem, houve um controle eficiente. Mas, com a variante delta, não havia mais profissionais para trabalhar”, conta.
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Com o aumento das internações, Mianmar sofreu com a lotação dos leitos nos hospitais, além da falta de medicamentos, respiradores e de funcionários. “As pessoas passaram a ser tratadas dentro de suas casas, e foi preciso desenvolver com urgência um sistema de homecare – que antes não existia. As organizações internacionais fizeram muita coisa para ajudar, mas não conseguiram repor esse tipo de serviço clássico e essencial para a comunidade”, completa.
Ele afirma que o movimento de resistência colocou impeditivos também na campanha de vacinação no país, que foi seriamente prejudicada.
“Antes de anunciarem a ‘guerra defensiva’ no dia 7 de setembro, eles fizeram uma declaração pública de que a Covax [ação da OMS, da Aliança Gavi e da CEPI que trabalha para a distribuição de vacinas contra covid-19 para países mais pobres] era uma iniciativa deste governo paralelo. Ao fazer isso dentro da imprensa, eles impediram a vinda de 12 milhões de vacinas para o país, porque para chegar é preciso todo um procedimento formal e burocrático, é impossível entrar escondido. Então, esse tipo de ação radical tem atrapalhado muito em algumas iniciativas no campo da saúde, sobrecarregando as entidades envolvidas”, conta.
Dentro do cenário atual, Vicente destaca o papel fundamental das organizações humanitárias dentro do território, como as diversas estruturas da Cruz Vermelha, e a sua atuação como um sistema intermediário dentro do conflito que o país enfrenta atualmente.
“As organizações humanitárias estão atuando como peças fundamentais para manter os trabalhos na área da saúde e os programas que já estavam em andamento antes do golpe e da pandemia. O local com maior índice de vacinação do país é na área de fronteira com a China, e quem está promovendo é a Cruz Vermelha chinesa. A preocupação é exclusivamente com o povo, em trabalhar, vacinar, cuidar dos doentes e, para conseguirem fazer isso, precisam ser vistas como entidades neutras. Não há tempo para ficar tomando um lado”, finaliza.