Organizações verificaram uso de mercenários e munições cluster na guerra entre Azerbaijão e Armênia
Nas últimas semanas, as tensões cercando a região asiática de Nagorno-Karabakh, localizada entre a Armênia e o Azerbaijão e disputada pelos dois países, eclodiram pela segunda vez nos últimos 50 anos. Organizações internacionais alegam violações do Direito Internacional Humanitário (DIH) na guerra que começou com a dissolução da União Soviética (da qual ambos faziam parte).
A disputa havia sido suspensa por um cessar-fogo em 1994, mas o clima voltou a esquentar com alegações de violência de ambos os lados. A tensão se alastrou por toda a região e as fronteiras de Nagorno-Karabakh, que, apesar de majoritariamente populada por habitantes etnicamente armênios (que se governavam de forma relativamente independente), pertencia oficialmente ao Azerbaijão. O conflito havia terminado em novembro com um tratado de paz intermediado por Vladimir Putin, que prometeu manter a paz com soldados russos, mas os países voltaram a se confrontar.
As denúncias de violações do DIH foram feitas por órgãos como o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos e a Human Rights Watch, e tratam principalmente da falta de discernimento entre militares e civis e da falta de controle sobre certos combatentes, que dificilmente prestam contas aos líderes das partes em conflito.
Violações ao Direito Internacional Humanitário
Segundo um artigo da agência de notícias das Nações Unidas datado de 2 de novembro, o Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos recebeu inúmeros relatórios de possíveis crimes de guerra cometidos no conflito. A Alta Comissária, Michelle Bachelet, advertiu: “A Lei humanitária internacional não poderia ser mais clara. Ataques conduzidos em violação do princípio da distinção [entre civis e combatentes] ou do princípio da proporcionalidade podem chegar a ser crimes de guerra, e as partes do conflito são obrigadas a investigar sem demora, eficientemente, compreensivamente e imparcialmente essas violações, e a trazer à justiça aqueles supostamente por trás delas.”
O escritório denunciou casos concretos possíveis, começando por uma série de vídeos que chegaram à atenção do Comissariado, que parecem mostrar soldados azeris (do Azerbaijão) executando sumariamente combatentes armênios que haviam sido capturados. A execução de prisioneiros representa uma grave violação das Convenções de Genebra (vista como uma fonte universal do Direito Internacional Humanitário), já que eles haviam se rendido e, portanto, eram considerados hors de combat, ou “não combatentes”.
Uso de mercenários no combate
Outra fonte de possíveis crimes de guerra é o uso de combatentes mercenários, investigado pelo Escritório do Alto Comissariado. Conforme mostra um relatório do Grupo de Trabalho sobre o uso de mercenários, existem indícios de que ambos os lados têm feito uso deles no conflito. O próprio Azerbaijão é signatário de um tratado explicitamente contra esse uso. Apesar disso, o grupo da ONU recebeu denúncias de que o governo azeri, com a ajuda da Turquia, recrutou combatentes locais na República Árabe Síria, levando-os para combater os armênios.
O componente fortemente religioso da guerra, sendo os armênios majoritariamente cristãos e os azeris muçulmanos, cria um incentivo — além do financeiro — para os veteranos extremistas da Guerra Civil Síria lutarem em Nagorno-Karabakh. De acordo com especialistas da ONU, os mercenários, inseridos em um conflito onde parece haver ataques indiscriminados e muitas vezes direcionados contra os civis, são mais um risco de violação do DIH. “Neste contexto, é ainda mais preocupante que os combatentes sírios atuando no Azerbaijão já sejam supostamente afiliados com grupos armados e indivíduos que, em alguns casos, têm sido acusados de crimes de guerra e sérios abusos de direitos humanos durante o conflito na Síria, assim perpetuando um ciclo de impunidade e arriscando mais abusos da lei internacional”.
No lado Armênio, o grupo da ONU recebeu denúncias de combatentes estrangeiros atuando, mas que ainda não podem ser chamados de mercenários. De acordo com o Protocolo da Convenção de Genebra, existem requisitos específicos para usar essa denominação, como a motivação financeira para lutar.
Os mercenários, segundo a lei e costume humanitário internacional, não prestam contas às forças armadas e ao governo de nenhuma das partes, e por isso são mais suscetíveis a violações de Direitos Humanos. “A primeira regulação que existe sobre esse assunto é de 1977, e por esse tratado os mercenários perderam o status de proteção, eles não são considerados, por exemplo, prisioneiros de guerra caso sejam detidos e tampouco são protegidos na qualidade de civis”, explica Tarciso Dal Maso Jardim, consultor legislativo do Senado Federal na área de relações exteriores e defesa nacional, e especialista em Direito Humanitário Internacional. “Atualmente há um fenômeno que vai além do conceito clássico de mercenários. São as empresas privadas de caráter militar e de segurança que estão sendo utilizadas no conflito armado, isso é um fenômeno que se chama privatização da guerra”, completa.
Veja mais em ESQUINAS
No Iêmen, uma guerra sem fim longe dos olhos do mundo
Conheça a história de um judeu que lutou e sobreviveu ao nazismo
Nagorno-Karabakh: as vítimas do conflito
Segundo o governo azeri, 91 civis foram mortos em áreas sob seu controle desde o recomeço da violência em setembro. E, de acordo com o governo armênio, foram 45 em sua área de ocupação e outros dois no próprio país. O Escritório do Alto Comissariado, apesar de não poder verificar esses números, condenou os ataques não-discriminatórios ou que têm como alvo não-combatentes.
O maior número de mortes ocorreu no dia 28 de outubro, quando 21 pessoas foram mortas e 70 foram feridas, segundo informes locais, após um ataque com foguetes à cidade de Barda, no Azerbaijão, a 30 quilômetros do front de combate. O ataque, que teria sido lançado pelas forças armênias em Nagorno-Karabakh, carregava munições cluster, que são proibidas pela lei internacional por sua natureza não discriminatória.
Munições cluster
A organização de vigilância de Direitos Humanos Human Rights Watch alertou, no dia 23 de outubro, que o Azerbaijão fez ataques repetidos a áreas civis urbanas em Nagorno-Karabakh usando munições cluster. Pelo menos quatro incidentes foram flagrados desde o acirramento das hostilidades em 27 de setembro. Jardim explica que há uma “proibição de usar armas que não identifiquem o alvo, que têm efeitos indiscriminados”, como a cluster
A instituição confirmou a destruição de negócios, veículos, e até um playground, causada pelas submunições explosivas dispersas sobre uma área civil. O governo azeri negou pedidos de acesso do órgão para conduzir investigações em áreas sob seu controle. Segundo Stephen Goose, diretor da divisão relativa a armas da Human Rights Watch e presidente da Coalizão sobre Munições Cluster, “o uso contínuo de munições cluster — particularmente em áreas populadas — mostra um flagrante desrespeito pela segurança dos civis. As munições cluster nunca deveriam ser usadas por qualquer um em quaisquer circunstâncias, muito menos em cidades, devido ao previsível e inaceitável dano aos civis”.
Apesar de acusações do governo do Azerbaijão e dos relatos recebidos pela ONU a respeito do ataque a Barda, a organização declarou que não pôde verificar de forma independente o uso de munições cluster pelas forças armênias. Tanto a Armênia quanto o Azerbaijão se recusaram a assinar a Convenção sobre as Munições Cluster de 2008, que proibiria seu uso, alegando que não poderiam se tornar signatários até que fosse encerrada a disputa sobre Nagorno-Karabakh. Ainda assim, os países podem ser responsabilizados com as proibições nos Protocolos Adicionais às Convenções de Genebra, que são consideradas universalmente ratificadas.
Sobre eventuais julgamentos de crime de guerra, o consultor legislativo do Senado diz que “não é preciso esperar o fim do conflito”, mas que nenhum dos países envolvidos ratificou o estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. “Então a única hipótese de o Tribunal Penal Internacional julgar os casos de Nagorno é se o Conselho de Segurança das Nações Unidas enviarem esse caso, o que aconteceu por exemplo no Sudão. A outra hipótese é se o criminoso de guerra porventura estiver em um país que julga crimes de guerra acontecidos fora do seu país”. Por fim, o que pode acontecer no futuro, mas ainda durante o conflito, é a criação de um Tribunal Penal Internacional específico para julgar essa situação, foi o caso do Líbano e Camboja.