Descubra por que empresas de alimentos costumam utilizar animais de abate como mascotes.
Quando chegam as festas de final de ano, cada vez mais comerciais surgem para mostrar as delícias da ceia de Natal. Uma família alegre reunida em volta de uma mesa farta celebra um dos momentos mais felizes do ano. Quando estão prestes a saborear uma suculenta ave, eles hesitam e agradecem as duas figuras responsáveis por trazer o magnífico prato até eles: o risonho Papai Noel e um festivo franguinho de desenho animado.
O comercial feito pela Sadia é um daqueles que faz o telespectador atento ficar coçando a cabeça e se perguntar: “Como é que pode esse frango animado vender a carne da sua versão real?”. É uma reflexão valiosa, mas ela costuma passar despercebida para muitas pessoas.
Afinal, qual o motivo por trás dessas mascotes “traidoras de classe”, dispostas a vender e até comer a carne de seus colegas animais?
Quando a mascote também é o prato
Primeiramente é necessário entender o propósito de uma mascote: fazer uma conexão entre produtor e consumidor e conseguir convencê-lo a comprar a mercadoria. Parece bobo, mas uma mascote consegue alterar as vendas de uma empresa. Prova disso é o que aconteceu com a fabricante estadunidense de pilhas Energizer, que viu um aumento de 7% nas vendas em 1992 após ter criado um coelho baterista como personagem para representar a marca.
E o que a mascote perfeita precisa ter? O artista e designer Erik Cruz revela os segredos por trás do desenho ideal:
Personagens inofensivos, fofos e carinhosos são sempre bons. Então é comum encontrar em mascotes traços e formas mais circulares que acabam fazendo com que a gente os associe a essas ideias.
Erik também lembra que outro fator importante para se levar em conta ao criar um personagem é seu impacto, fazer com que ele tenha destaque em uma prateleira com dezenas de opções.
Tente se lembrar, caro leitor, das caixas de leite que viu quando foi para o mercado na última vez. É provável que a primeira imagem que tenha vindo a sua mente possua um personagem ou ilustração em seu pacote, talvez uma vaca. Não é nenhum truque de adivinhação e sim o fato de que animais são figuras que conseguem preencher ambas as características descritas e mais algumas outras, fazendo deles excelentes inspirações para mascotes.
Animais conseguem fazer um produto se destacar dos outros e criar conexões fáceis, seja um frango em uma caixa de ovos ou a vaca da embalagem de leite. Vai dizer que nunca ouviu alguém falar que o cachorro da Crefisa é uma graça?
O problema é achar uma graça um animal que logo estará na sua mesa, cozido e temperado. A professora de filosofia da Faculdade Cásper Líbero e pesquisadora do tema ética animal, Eloísa Benvenutti, comenta sobre as dificuldades de anunciar carne e outros alimentos de origem animal:
Os produtos de origem animal envolvem a nossa relação com seres que também são sencientes e que sentem dor. Então acaba sendo possível estabelecer uma empatia com os animais, tornando difícil o consumo deles. Para aliviar esse sentimento de culpa, as propagandas costumam utilizar o conceito de suicide food, que seria mostrar esses animais felizes por serem comidos.
Um exemplo desse conceito em ação é a campanha “Quero Ser Salsicha” da fabricante de salsichas e frios Frigo Eder lançada em 1972:
VEJA MAIS EM ESQUINAS
Iniciativa de João Gordo e Viviana Torrico distribui comida vegana durante pandemia
Mais sustentável: restaurantes veganos tomam conta do centro de São Paulo
Conheça o comércio de animais que contribui para preservação de espécies
O que os olhos não veem…
A “comida suicida” funcionou e continua funcionando até hoje, basta se lembrar da famosa marca de queijos franceses ‘A Vaca Que Ri’ que tem como símbolo uma vaca vermelha e risonha, entretanto nem sempre a estratégia tem sucesso.
Em 2017, a campanha ‘The Whole Chicken’ da franquia de fast food especializada em frango KFC mostra um frango dançando com a música “X Gon’ Give It To Ya” do DMX de fundo. Após sua transmissão o anúncio chegou a receber 755 reclamações por parte da população britânica, que chamou a propaganda de ofensiva e de mau gosto. Qual o motivo por trás desse fracasso? A maneira como o frango foi apresentado: em sua forma original e não antropomorfizado, ou seja, atribuindo características humanas.
Eloísa esclarece a importância da antropomorfização e da existência das mascotes nesses anúncios:
A pesquisadora Carol Adams criou um conceito chamado referente ausente. Esse conceito é exatamente essa estratégia publicitária de criar mascotes por meio de antropomorfização para que a gente tire a condição de sujeito e fique só com o produto. A questão é, aquilo não existe. A mascote é uma invenção da imaginação e um peru ou frango real não tem nada de parecido com aquilo, então o consumidor acaba criando um distanciamento entre o produto e a propaganda.
As mascotes continuam a ser sucesso e é fácil encontrá-las em meio as prateleiras do supermercado. O maior exemplo é o carismático representante da Sadia, o Lek Trek. Tendo “nascido” em 1971 ele surgiu para promover um frango defumado que já vinha temperado e mostrar a praticidade e velocidade do produto. Em sua primeira aparição, Lek Trek se oferece de bom grado como jantar para uma dona de casa, mas desde então suas propagandas têm se esforçado para fazer com que sua imagem mude de um alimento para a de um influencer, com dancinhas nas redes sociais e parcerias com outras marcas.
O publicitário e sócio da agência de comunicação Goodbrands, Ricardo Furriel, explica mais sobre o estado atual da personagem “O Lek Trek passou por várias remodelações e está cada vez mais jovem. Ele consegue se comunicar com um público mais jovem. A Sadia fez há não muito tempo atrás uma campanha com a NBA em que o Lek Trek aparece jogando basquete, então ele conseguiu se comunicar muito bem com esse público.”
É curioso ver como ainda existem marcas que seguem essa estratégia, pois, por mais bem escritas e desenvolvidas que sejam as propagandas, é difícil não se perguntar por que animais estariam vendendo a própria carne, leite ou ovos para consumo. Não faria mais sentido eles tentarem evitar que um prato de comida seja seu último lugar de repouso? Foi pensando nisso que a empresa britânica de carne vegetal Quorn decidiu criar a campanha “Why Choose the Alternative?”, em que um grupo de fantoches animais faz de tudo para evitar que acabem sendo comidos.
A propaganda foi sucesso de público e mostrou que as mascotes possuem aspirações maiores do que “virar filé”. Talvez elas queiram ser artistas, atrizes, publicitárias, otorrinolaringologistas, por que não? É fantasioso? Sim, mas pelo menos faz mais sentido do que ver um porquinho canibal e chamá-lo de fofo.