30 anos após a abertura da Vala Clandestina de Perus, mais de 1000 ossadas não têm identificação - Revista Esquinas

30 anos após a abertura da Vala Clandestina de Perus, mais de 1000 ossadas não têm identificação

Por Anna Casiraghi, Marina Ponchio e Thiago Hideki Baba : setembro 5, 2020

Com estudos inacabados sobre os cadáveres ocultados e familiares das vítimas em dúvida há décadas, a Vala de Perus é, até hoje, memória da Ditadura civil-militar

Há exatos 30 anos, em 4 de setembro de 1990, foi aberta a Vala Clandestina de Perus. Localizada no Cemitério Dom Bosco, na Zona Norte de São Paulo, ficou conhecida após a descoberta de que lá estavam localizadas 1049 caixas com corpos ocultados pela Ditadura civil-militar na década de 70. 

“A partir de 1971, a Ditadura começou a usar esse cemitério para enterrar desaparecidos como indigentes”, conta Suzana Lisboa, participante da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos. “Depois de matar, mandavam para o Instituto Médico Legal, que tomava providências para que os enterrados ficassem como desconhecidos ou com nomes falsos”, continua. Lisboa ganhou visibilidade após encontrar o primeiro familiar (seu marido) enterrado com nome falso no cemitério Dom Bosco, em 1979. 

Detalhes dos sacos onde estão as ossadas, mostrando que há fichas de identificação soltas.
Acervo pessoal

História

Suspeita-se da existência da vala desde os anos 80, com a mudança na gestão do cemitério. No local, descobriram inconsistências nos protocolos adotados pelo município. Após três anos, os corpos deveriam ser exumados e sua destinação adicionada aos documentos do morto. Porém, essas informações não constavam em cerca de 1500 casos, o que fomentou a ideia da existência da Vala Clandestina. 

O caso ganhou repercussão após a denúncia do jornalista Caco Barcellos, que foi ao ar em julho de 1995. A prefeita de São Paulo na época, Luiza Erundina, fez uma parceria com a UNICAMP, que ficaria responsável por guiar os estudos das ossadas, mas poucos corpos foram identificados no processo.  

Em 1997, os familiares denunciaram as condições em que eram armazenados os restos mortais. “Ocorreu uma enchente no laboratório, o material pegou lama, mas focaram em salvar os patrimônios da universidade, não os esqueletos”, relata Aline Feitoza, 28, integrante do Centro de Antropologia e Arqueologia Forense (CAAF) da Unifesp, que estuda as ossadas atualmente.  

Sala de necrópsia, onde estão localizadas as ossadas.
Acervo pessoal

Dois anos mais tarde, 1999, o material foi encaminhado para o cemitério do Araçá, centro de São Paulo, onde o columbário (onde são depositadas urnas contendo as cinzas dos mortos) foi reservado para as ossadas. A USP ficou responsável pelos estudos no local, mas foram novamente esquecidos. Em 2013, ocorreria uma homenagem a essas ossadas no cemitério. Entretanto, antes da estreia da exposição, o columbário foi invadido e a exposição, vandalizada. 

Em 2014, iniciou-se o trabalho de Perus, pela junção de 3 instituições – Comissão de Mortos e Desaparecidos, Prefeitura de São Paulo e Unifesp – que contrataram profissionais que estão atuando até hoje.  

Márcia Lika Hattori, 34, arqueóloga que fez parte dos estudos da Vala, ressalta como o descuido afetou a pesquisa. “Abrir uma caixa onde estavam os corpos era resultado de todas essas histórias. Não só do processo de ocultação e desaparecimento, mas de tudo que aconteceu nesse período, de todas as tentativas de identificação da UNICAMP, das ações dos técnicos argentinos, do descaso do Estado. Todas as 1049 caixas tinham esse significado”. 

Sala de necrópsia, onde estão localizadas as ossadas.
Acervo pessoal

O estudo hoje

O cenário político atual, marcado por uma visão saudosista desse período histórico, gera apreensão em relação ao estudo. Em 2019, o presidente Jair Bolsonaro assinou um decreto responsável por extinguir e estabelecer diretrizes, regras e limitações em diversos segmentos do Governo, decisão que acabou por afetar diretamente o Grupo de Trabalho de Perus (GTP). 

“Eu acordo e renovo minha indignação a cada dia para ter forças para continuar, porque é muito duro, depois de tantos anos, nós não termos respostas. 41 anos depois da anistia, temos as mesmas reivindicações que tínhamos em 79. Queremos saber onde estão nossos familiares, quem matou, como morreram e a punição dos responsáveis”, relata Suzana.  

Aline conta que “o acordo garante somente 12 meses de contrato. Assim, vai se perdendo a memória do estudo. Hoje, estou sozinha porque o contrato de todo mundo acabou. Todo ano precisamos brigar por verba, para ter um pessoal capacitado para trabalhar, então percebemos que não aprenderam nada ao longo do processo” 

A importância da vala

A história da Vala de Perus transcende a materialidade. Histórias ocultadas há mais de 30 anos serão finalmente contadas com a identificação dos corpos.   

“Longe de romantizar esse tipo de trabalho, mas acho que é imprescindível [o estudo da vala]. Ele materializa essa perda, é quase como criar esses regimes de evidência. Pessoas foram mortas, torturadas, corpos foram ocultados. Além de ser um ponto final para as famílias, é também uma forma de reconhecimento por parte da sociedade e de impedir que aconteça novamente, é a luta do nunca mais”, analisa Márcia. 

Também, há de se pensar nas famílias que estão há mais de 40 anos em busca das respostas. Muitos não conseguem decifrar a verdade sobre o que aconteceu com seus entes queridos. 

A balança entre decepção e esperança

São muitos aqueles que vivenciaram o Estado e suas lideranças saírem ilesos depois de executar milhares de pessoas durante a Ditadura civil-militar. Agora, presenciam os mesmos agentes desmontarem toda a aparelhagem de identificação e reconhecimento desses corpos, que permanecem ocultos e sem perspectiva de recuperação.   

“Eu tenho esperança, mas tenho uma revolta imensa pelo Brasil não ter feito justiça. Se tivesse feito, não teríamos hoje essa situação de horror da polícia continuar matando os pobres e marginalizados do país. A direita também não estaria aí defendendo tortura e a volta do regime militar se os crimes tivessem sido punidos. A esperança é a última que morre”, conta Suzana. 

Ela conclui que “a Ditadura poderia ter julgado e matado legalmente se quisesse, porque existia pena de morte nessa época, mas ela optou por matar covardemente na tortura e, ainda por cima, esconder os corpos para impedir que servissem de denúncia do que estava acontecendo. A cada vez que se localiza uma ossada, é a pessoa que ressurge ali, com a força da sua vida, para denunciar o que aconteceu”. 

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