Já ouviu falar do 'Holocausto Brasileiro'? Conheça a história do manicômio de Barbacena (MG) - Revista Esquinas

Já ouviu falar do ‘Holocausto Brasileiro’? Conheça a história do manicômio de Barbacena (MG)

Por Isabela Miranda, Julia Tortoriello e Victória Abreu : agosto 14, 2023

Quarto no Hospital Colônia em 1959 - Luis Alfredo (Ayuntamiento de Barbacena)

O hospital para pacientes psiquiátricos em Barbacena, Minas Gerais, tinha como maioria dos internos alcoólatras, homossexuais, pobres e mães solteiras

Pacientes psiquiátricos foram tratados como anomalias durante anos no Brasil e no mundo, entretanto, após décadas de tortura, como a ocorrida dentro do Hospital Colônia Barbacena, em Minas Gerais, mudanças nas políticas de tratamento foram criadas, garantindo que a humanidade fosse devolvida para os ambientes hospitalares.

O que foi o Holocausto Brasileiro?

O Holocausto Brasileiro foi responsável pela morte de 60 mil pessoas na cidade de Barbacena, Minas Gerais. O caso, que ocorreu no maior hospital psiquiátrico da época, o Hospital Colônia, recebeu esse nome após a visita do psiquiatra italiano Franco Basaglia, em 1979. Entre suas declarações, o médico disse estar em um local semelhante à um campo de concentração nazista e nunca ter visto uma tragédia como aquela. As vítimas eram forçadas a ir para o Hospital Colônia sem mesmo constar que possuíam algum tipo de transtorno mental. Segundo Daniela Arbex, em seu livro reportagem sobre o Holocausto Brasileiro, cerca de 70% dos pacientes não tinham diagnóstico prévio.

“Eram epiléticos, alcoolistas, homossexuais, prostitutas, gente que se rebelava, gente que se tornara incômoda para alguém com mais poder. Eram meninas grávidas, violentadas por seus patrões, eram esposas confinadas para que o marido pudesse morar com a amante, eram filhas de fazendeiros que perderam a virgindade antes do casamento. Eram homens e mulheres que haviam extraviado seus documentos. Alguns eram apenas tímidos. Pelo menos trinta e três eram crianças.”

O hospital mineiro, fundado em 1903, era destinado a pacientes psiquiátricos e muitos vinham a óbito, devido à ausência de assistência médica e à falta de saneamento básico, além dos tratamentos de tortura, como fome, frio e maus tratos físicos e psicológicos. Depois de mortos, os corpos eram vendidos ilegalmente, sem a autorização da família, para faculdades de medicina da época. Entre os anos de 1969 e 1980, foram registradas cerca de 1.853 vendas para 17 faculdades de medicina no Brasil.

Antônio Gomes da Silva, um dos sobreviventes do hospital, conta no livro de Daniela Arbex que não soube o motivo de ser preso. “Cada um fala uma coisa. Mas, depois que perdi meu emprego, tudo se descontrolou. Da cadeia, me mandaram para o hospital, onde eu ficava pelado, embora houvesse muita roupa na lavanderia. Vinha tudo num caminhão, mas acho que eles queriam economizar. No começo, incomodava ficar nu, mas com o tempo a gente se acostumava. Se existe inferno, Colônia era esse lugar.”

Em 1961 os horrores que os pacientes enfrentavam foram divulgados pela primeira vez, através das lentes do fotógrafo Luiz Alfredo da revista O Cruzeiro. Dezoito anos depois, em 1979, o jornal Estado de Minas publicou uma reportagem sobre o caso, “Os porões da loucura”, e o cineasta Helvécio Ratton produziu um documentário chamado “Em nome da razão”.

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Hospital Colônia de Barbacena – Pavilhão “Antônio Carlos” – de Indigentes

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Reforma Psiquiátrica: Mudanças Hospitalares

Atualmente, a assistência para pacientes psiquiátricos no modelo público de saúde do país é realizada através da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). A rede, integrada ao SUS, atua como uma base comunitária, composta por Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Serviços Residenciais Terapêuticos (SRT), Centros de Convivência e Cultura, Unidade de Acolhimento (UAs), e leitos de atenção integral, que podem ser em Hospitais Gerais ou nos chamados CAPS III. Os diferentes centros oferecem serviços para os variados níveis de complexidade do caso de cada paciente.

Desde o caso do Holocausto Brasileiro, o país luta por melhorias no atendimento de pacientes psiquiátricos. Segundo Roque Jr., membro do Fórum Gaúcho de Saúde Mental (FGSM), a luta pela dignidade em tratamentos na área da saúde mental acontece desde a década de 1970.

A partir das práticas do italiano Franco Basaglia, a Organização Mundial da Saúde declarou, em 1973, apoio às mudanças nos tratamentos psiquiátricos e profissionais brasileiros começaram a denunciar as condições de pacientes e hospitais. Seguindo a luta por mudanças, em 1979, foi criado o Movimento dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) no país, que buscava o fim de manicômios e uma psiquiatria humanizada. Na época “houveram muitas lutas”, relata Roque. Já em 1992, foi sancionada a primeira Lei da Reforma Psiquiátrica Antimanicomial do Brasil e a segunda da América Latina, no Rio Grande do Sul. A medida foi um marco nos avanços, porque “muitos outros estados não conseguiram implantar, como ‘proibir a construção de novos manicômios e de ampliar os existentes”, diz o membro do FGSM.

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Internos do manicômio Colônia em uma fotografia de 1959 – Luis Alfredo (Ayuntamiento de Barbacena)

Assim, impulsionado por esses avanços, o Congresso Nacional sancionou, em 2001, a lei federal (Lei 10.216), que instituiu a Reforma Psiquiátrica. As novas medidas nacionais permitiram o fim de manicômios, a criação dos cuidados humanizados e os serviços de assistência da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).

Apesar dos anos de espera para a reforma, Roque Jr. avalia que, “a lei brasileira deu um novo rumo, possibilitou avanços nos serviços, elaborou possibilidades em ‘cuidado em liberdade’, com atividades que evoluem constantemente. Mesmo com alguns retrocessos, ela faz com que os usuários da ‘Saúde Mental’ possam ser pessoas de fato, com suas histórias, de direito, não números ou estatísticas.”

O próprio membro do FGSM experienciou as mudanças. “Antes disto, muitas políticas da ‘Saúde Mental’, na prática, eram diferenciais na vida dos usuários. Muitos se recuperaram de suas crises, outros transformaram-se em grandes protagonistas, inclusive com reconhecimento nacional”, conta. “No meu caso, somados, foram 365 dias, no total de oito internações em hospícios (entre 1990-2007). Mas dei a volta por cima, participei em vários momentos de CAPS, aprendi muito e tive um tratamento exemplar. Desde 2018 estou no Fórum Gaúcho de Saúde Mental e fui escolhido por unanimidade para representá-lo no ano seguinte, na RENILA – Rede Nacional Internúcleos de Luta Antimanicomial, que estou até hoje”

Além disso, o “Relátório da Conferência Regional de Reforma dos Serviços de Saúde Mental de 15 anos depois de Caracas” relata com detalhes a mudança ocorrida dentro dos hospitais psiquiátricos do país. O documento afirma que houve diminuição de leitos e maior organização entre os hospitais, graças ao Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), que monitora hospitais todos os anos, garantindo que haja funcionamento higiênico e humanitário.

As políticas públicas atuais funcionam?

O tratamento de pacientes dentro do Hospital Colônia de Barbacena apagava totalmente sua humanidade, transformando corpos em objetos. Porém, após a Reforma Psiquiátrica de 2001, esses métodos se tornaram abomináveis, transformando a realidade desse tipo de internação. Graças ao acontecimento, os tratamentos foram levados cada vez mais a sério, formando equipes com suportes abrangentes para casos diversos dentro de hospitais e clínicas.

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Hospital Colônia de Barbacena – Sala de Cirurgia Geral

Mas como essas políticas públicas estão atualmente?

Segundo um levantamento de 2023 do jornal O Globo, disponibilizado pelo Ministério da Saúde, existem 198 hospitais psiquiátricos em atividade no país, que somam 13 mil leitos em situações precárias. Em 2018, a inspeção do Conselho Federal de Psicologia e o Ministério Público identificaram violações em todas as 40 instituições visitadas. Além disso, há a falta de investimento nos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), que não recebem aumento de recursos financeiros desde 2011.

Segundo Roque Jr., os centros têm como ideia principal devolver o indivíduo em tratamento à sociedade e à família, “onde durante alguns dias fica com o tratamento nos CAPS, e, em todas as noites retorna para suas casas”. Além dos tratamentos, as instituições oferecem oficinas junto a equipes multidisciplinares.

Paulo Amarante, psiquiatra, pesquisador da Fiocruz e um dos pioneiros do movimento brasileiro da reforma psiquiátrica, diz que o atendimento digno é garantido por lei, “ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades é lei”, como escrito na Lei 10.216. Apesar de Paulo considerar a importância da Estratégia Saúde da Família (ESF), que oferece atendimentos de diversos profissionais, suporte técnico e instrução, ele reconhece a necessidade de melhorias no tratamento psiquiátrico no país.

“A rede de CAPS é insuficiente, ela é uma rede boa, poderia ser melhor qualitativamente e também quantitativamente”, afirma.

Ainda sobre os Centros de Atenção Psicossocial, Paulo diz que, “o caminho dos CAPS é correto, o que precisa é ter mais unidades, mais cobertura, mais ampliação, profissionais, qualidade, mais profissionais contratados, mais CAPS públicos e não terceirizados, para que isso de estabilidade e atenção ao sistema”.

Além disso, o especialista destaca a importância de reforçar os centros de convivência para essa população. Bem como a lei garante, “o tratamento visará, como finalidade permanente, a reinserção social do paciente em seu meio” (Lei Federal 10.216, Art. 4o. § 1o).

Logo, Paulo Amarante explica que é necessário um maior investimento para a ampliação dos serviços de cultura, esporte, assistência social e educação para inclusão social desses indivíduos. “A rede precisaria ser reforçada, qualificada e ampliada em outros serviços além da saúde”, finaliza.

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Hospital Colônia de Barbacena – Pavilhão “Zoroastro Passos” – de Mulheres Indigentes

Editado por Daniela Nabhan

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