Com o apagamento gradativo de suas cultura, mulheres indígenas retratam trajetória de resistência e mudanças nas suas vidas, e das suas aldeias, a partir da educação
Aguydjeweté — em tupi-guarani, ato de resistência. Resistir, em sua mais simples definição, é opor força à força, defender-se: resistir aos ataques do inimigo. A palavra representa muito no que diz respeito ao cotidiano dos povos originários, denominação que eles próprios indicam como mais apropriada. Suas histórias são marcadas pela resistência, diante da tentativa do apagamento contínuo de suas culturas por meio do etnocídio cometido pelo homem branco.
Desde o início do processo de colonização portuguesa houve um “desencontro de culturas”, que correspondeu a um processo de extermínio e submissão dos indígenas. Desde então, a história desses povos é marcada pela brutalidade, escravidão, violência, doenças, genocídio e, sobretudo, aguydjeweté.
A guerra continua. Com o extermínio, milhares de famílias e indivíduos afugentados se refugiaram em áreas remotas e passaram a evitar o contato com pessoas não indígenas. Esses povos perderam acesso e direito às próprias terras, sem a possibilidade de cultivar alimentos ou ter acesso a rios para pescar, já que as grandes cidades iniciaram suas atividades em torno das águas. Daí em diante, os enfrentamentos às invasões, às queimadas, aos grileiros, à fome e à discriminação tornou-se uma árdua rotina dos povos originários.
Aldeia Tabaçu Reko Ypy: renascimento em meio ao caos
A aldeia Tabaçu está localizada em Peruíbe, litoral sul de São Paulo, e faz parte da Reserva Piaçaguera. Nela encontram-se muitas histórias, lutas e resistências, mas a protagonista dessa narrativa é Itamirim. Mulher indígena que, mesmo diante das dificuldades enfrentadas, através de seu reconhecimento e conexão com suas próprias raízes, renasceu.
A história de Itamirim lembra muito uma lenda indígena. Até os sete anos de idade, ela não sabia dos seus laços ancestrais, e só foi conhecer suas raízes quando a mãe decidiu voltar para a Aldeia do Bananal com a família — localizada também em Piaçaguera — após um período na cidade grande. A pequena não conseguia se conectar verdadeiramente com suas terras, e foi quando entrou para a escola que tudo piorou.
Estudou até a quarta série na própria comunidade, mas quando começou no Ensino Fundamental teve que ir para a cidade. Itamirim conta que passou por muitos problemas neste período.
O preconceito, a agressão, a ameaça eram obstáculos diários em sua vida. Chegou até a ser chamada de “índia suja” pelos seus colegas de classe. Foi assim que, apesar de muitos esforços para ignorar toda a discriminação que sofria, acabou desistindo de seus estudos no 1º ano do Ensino Médio.
Casou-se com um não indígena que conheceu na escola e voltou para a cidade grande, onde se encontrou novamente com as mesmas dificuldades. Nesse momento, Itamirim relata que se sentia cada vez mais afastada de sua identidade, e que ainda não havia encontrado de fato sua forte personalidade indígena.
Teve um filho e, após algumas adversidades em seu casamento, decidiu que ali não era o seu lugar. Retornou então para a aldeia mãe, onde finalmente pôde restaurar esse encontro consigo mesma.
Itamirim queria recuperar todo o tempo que havia perdido, e foi em sua dor que encontrou seu propósito de vida, a educação. Dentre tantas dificuldades passadas, resolveu utilizar o teatro, que havia aprendido na escola, como um método de ensino para propagar sua língua, o tupi-guarani.
Por meio de peças teatrais sobre lendas indígenas escritas por ela, começou a apresentá-las nas escolas das aldeias, com o intuito de repassar a mensagem de fortalecimento e resistência de suas culturas para os jovens.
Em uma dessas apresentações, a educadora foi convidada a trazer essa ferramenta para o ensino da educação escolar indígena. Concluiu os estudos que faltavam e conseguiu ingressar na USP, onde fez um curso intercultural para a formação de professores a fim de atuarem futuramente nas aldeias.
“Eu sou professora há 15 anos, e eu sempre falo: eu não escolhi a educação, foi a educação que me escolheu”, afirma.
Isso tudo fez com que se fortalecesse e se encontrasse como uma liderança indígena. Ela conta que, a partir daí, passou a encontrar novos desafios em seu próprio território, pelo fato de ser mulher e querer ter um cargo de forte representação na aldeia. A professora ressalta que foi barrada por muitos caciques de ensinar sobre a cultura nas comunidades.
“Chegou um momento em que eu estava dentro da sala de aula promovendo a importância do fortalecimento da cultura indígena, e o cacique chegou e me proibiu de ensinar essas coisas para as crianças”, relata.
Após muitos nãos, ela decidiu fundar sua própria aldeia, a Tabaçu, onde hoje pode ser a educadora que lutou tanto para se tornar, e repassar aos jovens a mensagem da importância da resistência.
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Os estudos fizeram com que Itamirim entendesse a importância da tradição. “Desde quando comecei a ver as coisas de modo mais amplo, como educadora, vi que a minha cultura está cada vez mais enfraquecida e que muitos jovens abandonam os estudos ou se desconectam de suas raízes.”
Da escola indígena para a faculdade de Medicina no Rio Grande do Sul
“Eu tento muito mostrar que apesar das dificuldades, o estudo é sempre a melhor saída. É o melhor jeito de conseguirmos transformar nossas vidas e, principalmente, de mostrar que nós indígenas podemos sim estar em faculdades”
Nauany Pótu-Coereguá Gomes Pires, é o nome da indígena que encontrou nos estudos a oportunidade de fazer e ser o que sempre sonhou, ajudar o outro através da medicina.
Nascida e criada na aldeia Tekoá Pakowaty, em Peruíbe — litoral de São Paulo — Nauany iniciou sua jornada nos estudos aos quatro anos de idade, onde já frequentava o maternal da escola indígena. Aos onze, graduou-se no Ensino Fundamental I. As aulas eram ministradas pela mãe, Jacira, e pelos tios, todos formados em pedagogia pela USP.
Nauany aprendeu desde muito cedo com seus parentes a importância da educação e o quanto ela poderia transformar sua vida. Os mesmos enfatizavam sempre o valor do conhecimento para a perpetuação da identidade indígena. Sendo assim, a menina estava disposta a enfrentar o que viria pela frente para realizar seus sonhos de continuar estudando.
Como não havia na área rural escolas indígenas da segunda fase do ensino fundamental, teve que ir para a cidade. A mudança resultou em problemas e improvisos, com os quais a mesma teve de aprender a lidar e superar.
A primeira questão era a distância. A instituição ficava a dois quilômetros de caminhada em estrada de terra e mais duas horas de ônibus da aldeia. Quando chovia, a trilha virava lama. Dificultava a caminhada e impedia o acesso dos coletivos. “Nós acordávamos sem saber como íamos até a escola e sem saber como seria a volta para a Aldeia”, relata.
A menina gostava de se enfeitar para ir ao colégio. É parte de sua cultura usar brincos e colares coloridos e chamativos, muitas vezes feitos de penas, sementes e elementos estranhos à “normalidade” urbana. Não demorou a virar o centro das atenções. Da pior maneira. A indígena conta que chegou a ter vergonha de suas raízes e de ser quem ela realmente era.
Sua vida melhorou ao entrar na Etec (Escola Técnica) de Peruíbe. O tratamento mudou, a atmosfera era outra. Alunos e professores queriam saber mais sobre sua cultura e a acolheram. Foi só ali então que Nauany pode voltar a ser quem ela era de verdade, e acender como nunca a identidade indígena que nunca saiu de sua essência. Voltou a usar seus adereços, e a entender que isso era um sinônimo de resistência.
Entrou no projeto Crescer com Proteção, realizado pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) em oito municípios da Baixada Santista e do Vale do Ribeira. Tinha como objetivo fortalecer a prevenção e o enfrentamento das diversas formas de violência contra crianças e adolescentes por meio do incentivo à educação, à inclusão de meninas e meninos no mercado de trabalho e à participação dos adolescentes e jovens na construção de políticas públicas.
Mas apesar das dificuldades, a estudante conseguiu. Passou na Faculdade Federal do Rio Grande em Medicina, e relembrou do porque este sempre foi seu sonho. Seu avô, o cacique Awa Kiririndjú, atuava como pajé e defensor das antigas práticas de cura. Ela conta, emocionada, que o vê como uma fonte de inspiração para a escolha da profissão, e que apesar dele não estar mais presente para isso, ela assumiria esse lugar.
Nauany enfatiza a importância de haver indígenas na faculdade, e como isso sem dúvidas faz com que suas culturas e identidades nunca sejam apagadas.
Essas narrativas são duas entre milhares de relatos que os povos indígenas guardam. O aguydjeweté estará presente em cada luta e superação. As histórias de Itamirim e Nauany se cruzam nas dores, nos aprendizados, nas conquistas, na volta por cima das dificuldades, e no maior ensinamento que a vida poderia ter dado a elas: apesar dos pesares, desistir nunca foi uma opção.
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A resistência é política
Os movimentos indígenas sempre estiveram relacionados à política e pode-se dizer que, agora, mais do que nunca. As circunstâncias atuais que ameaçam a existência dos indígenas no Brasil são inúmeras e incluem o mercado imobiliário, a exploração clandestina de minérios e, ainda, projetos que visam extinguir a demarcação de terras indígenas.
Através de um longo processo, sua terra foi demarcada, mas, infelizmente, a aldeia Tabaçu continua enfrentando algumas dessas dificuldades. E, com isso, também precisam combater suas consequências.
A única fonte de água que os indígenas da aldeia possuem é um lago e, mesmo assim, apenas para banho. Não é possível fazer um uso além disso, pois sua água não é potável.
Esse lago não é de origem natural. A responsável por sua criação é a exploração clandestina de areia para a produção de vidro na região. Com exceção dos litorâneos, os quais desembocam no mar, lagos deveriam ser de água doce, ou seja, potável. Mas não é o caso desse.
A despoluição ficou nas mãos dos próprios habitantes do território. Desde 2020, há relatos de falta de água e saneamento básico nas aldeias do litoral paulista, e essa situação continua.
Através de um olhar antropológico
A Antropologia talvez seja o campo de estudo mais adequado para explicar a situação atual e o futuro dos indígenas. É a ciência que estuda o ser humano e a humanidade e tem, como ponto crucial, o estudo de algumas de suas dimensões, como a cultura. Isso inclui, portanto, a de matriz indígena.
A professora da disciplina na Faculdade Cásper Líbero, Sandra Lúcia explica que o etnocídio está ligado à presença de qualquer Estado.
“Os processos de etnocídio implicam em processos de destruição de culturas, de modos de vida, de hábitos, de costumes de certas populações empreendidos por agentes de um governo, de um Estado, que têm uma proposta de homogeneização de um mesmo território.”
Como professora, Sandra usa o momento de achamento do Brasil para explicar que o etnocídio persiste até os dias de hoje. “Hoje no Brasil temos cerca de 307 grupos indígenas diferentes. É um número bem menor do que havia quando os portugueses chegaram aqui, em 1500.”
Qual o futuro da resistência indígena?
Temos, atualmente, alguns direitos assegurados aos indígenas em nossa Constituição. A educação intercultural, por exemplo, é uma delas. Ela permite a criação de uma língua indígena escrita, o que garante o resgate de suas línguas originais junto com o aprendizado do português.
Quanto ao futuro da cultura indígena, Sandra confessa que não se sente muito esperançosa. Mas, o que podemos afirmar é que o nosso próprio futuro está em risco. Não somente daqueles que, por vezes, consideramos distantes o bastante para não nos importarmos.
“Esses povos têm uma outra relação com a propriedade, com a terra. Eles têm, dentro de sua tradição, ou o que sobrou dela, uma ligação com a produção de várias espécies alimentícias, que não segue tanto a lógica da monocultura. Esses povos indígenas são ricos em sociodiversidade, ou seja, conhecimento de como lidar com essa biodiversidade.”
A verdade é que precisamos da cultura indígena e, talvez, até mais do que eles precisam da nossa.