América Latina e as drogas: por dentro da guerra contra o narcotráfico - Revista Esquinas

América Latina e as drogas: por dentro da guerra contra o narcotráfico

Por Anna Maria Prado, Brunna Bitencourt, Esther Zolfan, Gabriela Buzzo, Mariana Ribeiro, Milena Miranda e Victória Abreu : janeiro 11, 2024

A luta contra o narcotráfico é um desafio contínuo para os países latino-americanos, que buscam encontrar soluções eficazes para conter essa ameaça à segurança e ao desenvolvimento em toda a região/Foto: Thinkstock

Como as sucessivas crises políticas e econômicas e a guerra às drogas fomentam o narcotráfico na região mais pobre do continente americano

O narcotráfico na América Latina é um fenômeno complexo, que se estende ao longo de décadas e tem exercido um impacto significativo na região, e para além de suas fronteiras. A evolução desse problema está intrinsecamente ligada a uma série de fatores sociais, políticos e econômicos, que moldaram a paisagem latino-americana. O tráfico de drogas envolve a produção, distribuição e venda de substâncias entorpecentes, como a cocaína, maconha e heroína, e tem consequências devastadoras para a sociedade, incluindo violência, corrupção e desestabilização de governos.

Esse sistema de mercadoria ilegal tem suas raízes no cultivo de plantas como a coca e a papoula, usadas para a produção de cocaína e heroína, respectivamente. A coca, originária da região andina, era tradicionalmente usada pelas culturas indígenas para fins medicinais e rituais.

No entanto, o desenvolvimento de uma indústria global de drogas ilícitas está diretamente relacionado ao comércio internacional, com a demanda crescente nos Estados Unidos e na Europa. Essa demanda criou um ambiente propício para o surgimento de organizações criminosas, que exploram as vulnerabilidades econômicas e institucionais da América Latina. 

Thiago Moreira de Souza Rodrigues, doutor em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, afirma que a questão não é exclusiva dos países latinos. “É um problema, uma questão global, de fato. Assim como o consumo, que é majoritariamente dos países do norte global, os países ricos, mas se espalha também nos países do sul global. Antigamente se pensava, nos anos 70 e 80, que havia uma divisão muito rígida entre os países do sul global, que eram os países produtores de drogas ilícitas, e os países do norte global, que eram os países consumidores de drogas ilícitas. Mas isso não corresponde mais à realidade.”

Ao longo das décadas, o narcotráfico na América Latina se transformou em um problema de dimensões monumentais, com cartéis poderosos e violentos operando em diversos países da região. Essas organizações frequentemente desafiam a autoridade estatal, subvertendo as instituições governamentais e corroendo o tecido social. A luta contra o narcotráfico é um desafio contínuo para os países latino-americanos, que buscam encontrar soluções eficazes para conter essa ameaça à segurança e ao desenvolvimento em toda a região.

E é justamente na crise política que o narcotráfico encontra espaço e se estabelece, em uma relação mutualista. O jornalista especialista em América Latina e editor do site Opera Mundi Haroldo Ceravolo afirma que a política de guerra às drogas, implementada pelos Estados Unidos, encontra na América Latina um terreno fértil, já que aqui é a rota de comercialização dessas drogas.

Sendo assim, “o narcotráfico é o negócio ilegal, ilegalizado pela política de guerra às drogas, que está por trás de movimentações financeiras significativas em todos os países. E, portanto, é capaz de comprar armas, de eventualmente eleger parlamentares e participar de alguma forma de instabilidades sociais que têm efeitos políticos”. Cada país é responsável por uma parte desse sistema de mercado ilegal, sendo utilizado apenas como rota de passagem, ou até mesmo plantação e produção. 

A seguir, a reportagem irá analisar detalhadamente a política das drogas e o narcotráfico consolidados nos principais países da América Latina.  

Bolívia

A Bolívia, país situado no coração da América do Sul, divide com o Brasil uma fronteira de aproximadamente 3.400 quilômetros, configurando a maior extensão fronteiriça brasileira. O país andino é um dos principais produtores de folha de coca, princípio ativo da cocaína, do mundo, dividindo o ‘pódio’ apenas com a Colômbia e o Peru.

Apesar do uso ‘ocidental’ da planta como narcótico, estudiosos revelam que comunidades tradicionais bolivianas, e de outros países latinos, fazem uso medicinal e religioso da coca há cerca de oito mil anos. Os alcalóides, componentes químicos, presentes nas folhas de Erythroxylum coca possuem efeitos estimulantes, ajudam a reduzir a fome e auxiliam na digestão de alguns alimentos. Além disso, a mastigação da planta reduz os efeitos da falta de oxigênio em regiões de grande altitude. 

Na Bolívia, existem três zonas principais para a produção e plantio de folhas de coca: Chapare-Cochabamba, Yungas-La Paz e Yapacani-Santa Cruz, sendo a primeira, localizada na região central do país, destinada à fabricação de cocaína. 

Até a década de 60, o país andino defendia que a folha de coca não poderia ser considerada uma droga, portanto, para as autoridades locais, apenas a cocaína era um narcótico ilegal. Porém, com a chegada do presidente boliviano Hugo Banzer Suárez, por meio de um golpe de Estado em 1971, a situação da planta mudou na região e, aos poucos, a folha de coca também passou a ser considerada uma droga. 

NARCOTRÁFICO

Plantação de coca.
Foto: Reprodução/Museu do Universo da Farmácia

Nos anos seguintes, com o intuito de intensificar o combate ao narcotráfico, a Bolívia se juntou aos Estados Unidos e, em 1976, os dois países formaram o chamado Convênio Econômico Bolívia e EUA, que implementou programas ostensivos contra o tráfico de drogas boliviano. 

As relações entre os Estados Unidos e a Bolívia no combate às substâncias ilícitas se mantiveram na década de 80 e, em 1987, foi instaurada no país a Força Especial de Luta contra o Narcotráfico (FELCN) que buscava, principalmente, acabar com os laboratórios de cocaína  presentes em território boliviano. No ano seguinte, o país instaurou a Lei do Regime da Coca e das Substâncias Controladas, que propunha normas severas contra a folha de coca e a cocaína. 

No início da década de 80, o tráfico da droga aumentou significativamente no país, passando de 4,8 toneladas para 136,8 toneladas. Após a instauração da Lei do Regime da Coca e das Substâncias Controladas (1008), em 1988, a Bolívia ganhou reconhecimento internacional na guerra contra as substâncias ilícitas e o volume de drogas traficadas caiu de forma drástica. Em contrapartida, a violência em território boliviano tomou grandes proporções, causando violações contra os direitos humanos e mortes. 

“É uma guerra sem fim. O narcotráfico é parte da crise, porque os governos latino-americanos são obrigados a combater uma parte da própria economia. A ideia de guerra às drogas é uma ideia fracassada, que favorece as crises políticas na região e a redução da autonomia dos países da América Latina”, explica o jornalista Haroldo Ceravolo. 

Já na década de 90, em meio a um cenário de agressividade e repressão, o país conheceu Evo Morales, líder do movimento em favor da legalização da folha de coca. O ativista, em conjunto com outras frentes a favor da coca, propunha mudanças na lei 1008. As propostas de Evo deram origem a movimentos sociais contra o governo boliviano com o lema “Marcha pela Vida, a Coca e a Soberania Nacional”. 

Na primeira metade dos anos 2000, sob o governo de Carlos Mesa Gisbert (2003-2005), Morales, que ainda não estava no meio político, conseguiu alterações significativas na política contra os narcóticos e, mesmo com a desaprovação dos Estados Unidos, o cultivo da coca passou a ser legalizado para famílias autorizadas. 

“Coca sim, cocaína não”

Em 2006, com a eleição de Evo Morales para a Presidência da Bolívia, o país, sob o lema “coca sim, cocaína não”, passou a estabelecer políticas que liberaram o uso da planta para fins medicinais, culturais e de exportação. O governo de Morales (2005-2019) também expulsou do país as forças de combate ao tráfico de drogas e criou um ministério para as questões relativas ao uso da coca.

Em 2017, o presidente boliviano promulgou a chamada Lei Geral da Coca, que, entre outras propostas, provava que a militarização e a violência não são as melhores estratégias para reduzir o tráfico de drogas. 

A Bolívia, que agora se encontra sob a presidência de Luis Arce, reduziu os cultivos de coca pela primeira vez em sete anos. Segundo dados do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), as plantações da folha passaram de 30,5 mil hectares em 2021 para 29,9 mil hectares em 2022. 

Desde o governo de Evo Morales, o país andino permite a comercialização e o plantio da folha de coca para rituais religiosos e uso medicinal, sob supervisão de autoridades locais, que determinam um máximo de aproximadamente 22 mil hectares por família. Apesar da legalização, parte do cultivo da planta é desviado para a fabricação de cocaína, tornando o país o terceiro maior produtor da droga no mundo, segundo as Nações Unidas. 

Em 2015, os cultivos da folha de coca alcançaram cerca de 20,2 mil hectares. Desde então, a produção vinha apresentando aumentos significativos: 23,1 mil hectares em 2016, 24,5 mil em 2017, 23,1 mil em 2018, 25,5 mil em 2019, 29,4 mil em 2020 e 30,5 mil em 2021. 

A Bolívia é popularmente conhecida como um Narco-Estado, termo que designa países em que todas as instituições legítimas de um governo estão permeadas pelo dinheiro e pelo poder de grandes traficantes de drogas. 

Brasil e Bolívia: o PCC

Nos últimos sete anos, segundo investigações do Ministério Público, a Bolívia tornou-se a maior produtora de toda a cocaína exportada para os países europeus pelo PCC (Primeiro Comando da Capital). O país andino é apontado pelas autoridades brasileiras como o maior fornecedor de cocaína para a facção criminosa do Brasil. 

A união entre o PCC e os traficantes bolivianos se deu por diversos motivos, que beneficiaram os narcotraficantes de ambos os países; a facção criminosa brasileira precisava de um local de produção em massa da droga, já que ela não é produzida no Brasil; os traficantes da Bolívia, que não possui fronteiras marítimas, buscavam uma rede de distribuição ou de transporte para fazer com que a cocaína chegasse aos portos. 

Equador

O Equador, assim como o Brasil, sofre por ser um importante caminho para o trânsito de drogas destinadas às regiões Europeias e Estados Unidos. A localização do país facilita para os narcotraficantes, já que as terras equatorianas ficam entre os dois maiores produtores de narcóticos do mundo, Peru e Colômbia.

Nos últimos seis anos, diversas cidades do país têm sofrido com uma crescente onda de violência devido ao aumento do poder de grupos de narcotraficantes no país, como Guayaquil e Esmeralda. Os casos de violência são consequência de mudanças na dinâmica do mercado de drogas, juntamente com a desmontagem de estruturas de segurança e de combate ao tráfico do país, que geram revoltas, levantes e protestos por parte da população.

São diversos fatores que contribuíram para esse crescimento de violências no Equador, e todos eles estão relacionados diretamente ao grande aumento do tráfico de drogas e aos cortes nas políticas públicas. Em 2017 ocorreu a extinção dos Ministérios da Justiça, órgão responsável pela administração de prisões no país, da Segurança e Ministério do Interior e do Conselho Nacional de Controle de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas do Equador.

As frentes extintas foram condensadas em um único ministério, o Ministério de Governo, e, como consequência, houve uma redução nos recursos orçamentários e um aumento da insegurança populacional do país. A taxa de homicídios no país em 2017, antes do apagamento dos ministérios, era de 5,6 por 100 mil habitantes. Atualmente, as taxas atingiram 20 a cada 100 mil habitantes.

A população é a que mais sofre diante das ondas de violência. Relatos de desmembramentos em prisões, explosões de bombas e assassinatos de figuras públicas, como o jornalista Fernando Villavicencio, candidato à Presidência e deputado ativo em denúncias contra o narcotráfico morto em Quito no dia nove de agosto de 2023, têm sido destaque nas manchetes, levando muitos equatorianos a considerar a possibilidade de deixar o país. O Registro Civil, inclusive, estendeu seu horário de atendimento este ano devido ao aumento na procura por passaportes e documentos de identidade. A Patrulha de Fronteira dos Estados Unidos relata ter encontrado cerca de 16 mil equatorianos na fronteira sul do país em dezembro de 2022. De acordo com registros, o número foi 24 vezes maior do que o mesmo mês de 2021. 

Mesmo que haja resistência por parte do Governo, as autoridades do Equador não se sentem adequadamente preparadas para enfrentar o surgimento de tantos grupos criminosos pelo país. Há também indícios de que a corrupção pelo movimento das drogas também permeou a Polícia, o Exército, o Judiciário e até o Poder Executivo equatoriano, dificultando ainda mais o combate ao crescimento do narcotráfico no país. 

Colômbia

Segundo o relatório Hay futuro, si hay verdad, da Comissão da Verdade da Colômbia, a América Latina já abrigava um circuito de produção e venda de drogas ilícitas desde a primeira metade do século XX. No entanto, a Colômbia emergiu como figura central nesse comércio devido a uma série de fatores, que vão desde as condições climáticas favoráveis à cultura de plantas usadas na produção de drogas, até as persistentes condições de pobreza e desemprego da população local. 

Com o passar do tempo, o dinheiro proveniente do tráfico de drogas se infiltrou na economia colombiana. O Centro Nacional de Memória Histórica (CNMH) estima que, em 1976, as exportações de cocaína e maconha constituíam metade de todas as exportações do país.

Além disso, entre 1976 e 1986, os investimentos de traficantes no setor privado dobraram. Isso deu origem a uma série de fortunas, algumas legais e outras ilegais, acumuladas na Colômbia, seja por meio de aquisições de terras e gado, investimentos no setor imobiliário, transações financeiras, envolvimento na indústria química ou no setor de transportes. As operações foram estabelecidas principalmente em cidades como Bogotá, Medellín, Cali e Barranquilla, o que contribuiu para o crescimento de economias locais mais dinâmicas.

Atualmente o país é o maior produtor mundial de cocaína. Em 2022, segundo o relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Undoc), as plantações chegaram a ocupar 230 mil hectares, a maior extensão registrada desde 2001. Os dados levaram o presidente Gustavo Petro a criticar a guerra às drogas. Para ele, a abordagem de erradicação é irracional e a alternativa seria a regulamentação das substâncias entorpecentes e a criação de uma aliança entre nações da América Latina com o objetivo de abordar o tráfico de drogas de maneira mais eficaz. 

A penetração do narcotráfico na política colombiana

Thiago Rodrigues destaca que, com o passar das décadas, houve uma penetração do narcotráfico na política da Colômbia. “Há uma série de representantes políticos, deputados, senadores, ou equivalentes, que são ligados, porque são financiados pelo narcotráfico. Não são diretamente narcotraficantes, mas têm suas campanhas financiadas pelo dinheiro do narcotráfico e se espera que eles, uma vez no poder, trabalhem para proteger o negócio de seus financiadores”, diz o especialista.

Como resultado dessas alianças, os narcotraficantes emergiram e permanecem como influentes figuras políticas no país, exercendo autoridade e legitimidade. Ainda que de maneira ilegal, eles têm forjado redes de corrupção e suborno para consolidar sua presença. Durante as décadas de 1970 e 1980, o auge do narcotráfico colombiano, os líderes das organizações conseguiram adentrar na esfera institucional da vida política, situação que aumentou cada vez mais a capacidade ofensiva e autoridade dos narcotraficantes.

As desconfianças e investigações por parte da Justiça colombiana continuam e o filho do atual presidente, Nicolás Petro, foi preso no dia 29 de agosto de 2023, sob a acusação de lavagem de dinheiro e enriquecimento ilícito. Nicolás foi detido com a ex-mulher Daysuris Vásquez, também acusada de lavagem de dinheiro e violação de dados pessoais. 

Ainda em março, a Procuradoria Geral da República anunciou que já estava conduzindo uma investigação sobre Nicolás, que também tem uma carreira política, devido a alegações de suposto recebimento de recursos financeiros de narcotraficantes em troca de incluí-los nas negociações de paz lideradas por seu pai. O presidente tem se envolvido em negociações com diversos grupos armados ilegais enquanto busca encerrar o conflito interno que já dura 60 anos no país, e que já resultou na morte de ao menos 260 mil pessoas, segundo o relatório Hay futuro, si hay verdad

Apesar de negar inicialmente as acusações, Nicolás admitiu os crimes e concordou em cooperar com as autoridades durante uma audiência de 10 horas, no dia 3 de agosto. O político reconheceu ter recebido 386 mil dólares de indivíduos ligados ao narcotráfico.

Segundo as autoridades, Nicolás recebeu “quantias significativas de dinheiro” de Samuel Santander López Sierra, conhecido como o “Homem Marlboro” e condenado por narcotráfico nos Estados Unidos. Parte desse dinheiro foi utilizado para fins pessoais, enquanto outra parte foi investida na campanha presidencial de 2022, conforme as declarações do procurador do caso, Mario Burgos, durante uma audiência judicial.

Histórico narco-político da Colômbia

Na história da Colômbia, registram-se pelo menos três momentos em que o tráfico de drogas tentou exercer controle ou influência sobre a política. Inicialmente, essa influência ocorreu por meio da eleição de alguns líderes de cartéis como representantes políticos. Pablo Escobar, chefe do Cartel de Medellín, foi eleito como representante suplente na Câmara dos Deputados no início da década de 1980, e Carlos Lehder, também ligado ao Cartel de Medellín, foi eleito deputado na Assembleia do Quindío. 

Posteriormente, na década de 1990, durante o escândalo conhecido como “Processo 8000”, veio à tona o financiamento da campanha presidencial de Ernesto Samper pelo Cartel de Cali, juntamente com a revelação de que vários congressistas eleitos na época também estavam envolvidos. Mais recentemente, o processo denominado “parapolítica” expôs as alianças entre o tráfico de drogas e grupos paramilitares com líderes políticos em diversos níveis, incluindo prefeitos locais, governadores regionais e congressistas.

A edição 51 da Revista Crime , editada pela Polícia Nacional, descreve o impacto do tráfico de drogas na democracia como “a maior ameaça às instituições e à governabilidade do Estado, com base na capacidade de corrupção que desenvolveu, como resultado das suas finanças e das ligações com grupos armados ilegais”.

Assim, para além da política, o narcotráfico representa uma ameaça à população. Conforme a Comissão da Verdade, atualmente, o tráfico de drogas desempenha um papel contínuo na perpetuação do conflito armado na Colômbia e é possivelmente o principal obstáculo para o progresso na busca pela paz. Esta ligação está estreitamente associada às desigualdades e aos conflitos rurais, uma vez que teve um profundo impacto na estrutura de posse e uso da terra no país.

O documento ainda considera o narcotráfico como uma entidade política, enfatizando a necessidade de abordagens políticas em vez de medidas puramente repressivas para lidar com essa questão.

“Traficantes como Pablo Escobar são exceções”, defende Thiago. 

Apesar de Pablo Escobar Gaviria ser um dos nomes mais memoráveis da Colômbia pelo narcotráfico, Thiago Rodrigues evidencia que essa é uma exceção, pois a maioria dos criminosos do ramo prezam pelo anonimato e priorizam a imagem do empresário. O envolvimento com a política se dá de maneira mais discreta, em sua grande maioria através do financiamento de campanhas.

narcotráfico

Pablo Escobar preso em 1991.
Foto: Al Tempo/Reprodução

Além de chefe do Cartel de Medellín, Escobar foi deputado em 1982. Em seu auge, chegou a controlar 80% da cadeia global de cocaína, transportar cerca de 15 toneladas da droga e faturar mais de 70 milhões de dólares. Assim ele “é uma figura muito peculiar, ele tinha uma agenda política, uma aspiração de ser reconhecido, como alguém que lutava por uma faixa da população, da qual ele provinha”, diz Rodrigues.

México

Durante os anos 40, o governo mexicano legalizou, por um breve período de tempo, todos os tipos de narcóticos em seu território. Apesar disso, o México enfrenta há décadas um cenário político e social marcado pela violência, tráfico de drogas e corrupção. 

A conexão mexicana com o tráfico surgiu devido à proibição da comercialização e venda de drogas nos Estados Unidos, na década de 70. Substâncias que anteriormente eram consideradas remédios convencionais, como a morfina, heroína, maconha e cocaína, foram proibidas no país. Diante da dificuldade de transportar essas substâncias diretamente para os EUA, o México se tornou uma rota alternativa, que passou a conectar a produção da matéria-prima das drogas, provenientes da América do Sul, com os estados americanos. 

Cidades mexicanas  como Juárez, Tijuana, Guadalajara e Culiacán passaram a servir como centros de operações para os cartéis de drogas. 

A expansão do narcotráfico

Mesmo com a separação dos cartéis, as disputas internas por território e o aumento das operações policiais, o narcotráfico evoluiu, ao longo dos anos, para um esquema organizado e lucrativo. Apesar das medidas adotadas pelo governo mexicano, em conjunto com líderes norte americanos, que visavam conter o tráfico de drogas, a tarefa de dizimar o narcotráfico parecia impossível, já que sua influência continuava a crescer, e, consequentemente, a violência no país só aumentava. 

O conflito entre as organizações criminosas e o governo do México se intensificou em 2006, ano em que, durante a presidência de Felipe Calderón, os políticos do país mobilizaram um exército para combater os cartéis de drogas e declararam uma ofensiva militar contra o narcotráfico. 

A estratégia do governo de Felipe Calderón resultou em um aumento significativo na violência do país, gerando confrontos entre cartéis e forças de segurança. De acordo com a BBC News, de 2006 a 2016, a guerra contra as drogas no México matou aproximadamente 160 mil pessoas. 

Ao passo que as ações militares se tornavam mais intensas e violentas, os cartéis aumentavam sua força e os narcotraficantes ficavam mais armados, já que as armas contrabandeadas dos Estados Unidos eram de fácil acesso. 

Política das drogas

A conexão entre narcotraficantes e políticos é forte no país. Thiago Rodrigues explica a forma como, através de financiamentos e apoio de narcotraficantes, políticos de diferentes esferas conseguem entrar no cenário do tráfico. 

Outro exemplo da associação entre políticos e narcotraficantes foi a prisão do General Cienfuegos, Secretário de Defesa do governo do Presidente Enrique Peña (2012 – 2018). O chefe militar, conhecido por ser contra o combate ao narcotráfico, foi preso nos Estados Unidos em 2020, acusado de lavagem de dinheiro e tráfico de drogas. Logo após a prisão do general, o presidente mexicano pediu a extradição do mesmo e o perdoou. Situações iguais a esta, como afirma Thiago, indicam “um grande nível de dependência entre militares, civis e narcotraficantes”. 

O narcotráfico está por trás de movimentações financeiras significativas na economia de todos os países latinoamericanos. O México, portanto, não é uma exceção, já que a participação do tráfico na economia mexicana é significativa. Mas o tráfico pode ser um fomentador de crises políticas. 

Segundo a Revista Science, os grupos de tráfico empregam mais de 175 mil pessoas, número que os torna o quinto maior empregador do país. Essa organização empregatícia dos narcotraficantes é conhecida como narcoeconomia e caracteriza uma espécie complexa de economia paralela.    

Cuba

“A questão cubana é muito controversa”, diz Thiago Rodrigues. 

Existem diferentes versões dos acontecimentos que se deram entre os anos 80 e 90 em Cuba com relação ao narcotráfico, durante o governo de Fidel Castro. A primeira versão diz que o regime cubano foi absolutamente narcotraficante, uma interpretação geralmente descrita por autores contra este regime, e coloca os próprios irmãos Castro como participantes ativos do tráfico.

Nesse cenário, os Castro souberam, aprovaram e deram ordens para que seus oficiais militares facilitassem o trânsito da cocaína colombiana em direção aos Estados Unidos, cobrando altos impostos para esta passagem. Esse seria um modo de contornar a crise econômica do país, que sofria com o enfraquecimento depois do final da União Soviética, principal apoiadora financeira e compradora dos produtos cubanos. 

“Fidel havia pedido para eu cortar o sinal do gravador que ele tinha na sala, mas por curiosidade eu o religuei e ouvi o ministro do interior José Abrantes prestar contas a ele das receitas do tráfico. Foi nesse momento que me dei conta de que eu não servia a um revolucionário, mas a um narcotraficante”, Juan Reinaldo Sánchez, ex-guarda-costas de Fidel Castro.

Este é um depoimento contido no livro “Hugo Chávez, O Espectro: Como o presidente venezuelano alimentou o narcotráfico, financiou o terrorismo e promoveu a desordem global” de Leonardo Coutinho. Segundo o autor: “Fidel argumentava que o narcotráfico era, antes de tudo, uma arma de luta revolucionária”. Juan Reinaldo Sánchez, ex-guarda costa de Fidel Castro, explica que o líder político dizia que se os americanos eram ‘estúpidos o suficiente para consumir a droga vinda da Colômbia, isso podia servir a seus objetivos revolucionários na medida em que corrompia e desestabilizava a sociedade americana, e que aquilo não seria um problema seu – enquanto não fosse descoberto.  De acordo com ele, o dinheiro do tráfico era uma forma de patrocinar partidos de esquerda e grupos guerrilheiros em toda a América Latina, além de financiar a expansão da revolução no continente e nos Estados Unidos.

A segunda versão coloca o governo cubano fora do esquema de narcotráfico. Segundo Thiago: “É possível que a verdade esteja mais entre as duas versões, a versão de que tudo era absolutamente planejado e a outra de que não, não era planejado, era apenas para enriquecimento ilícito de algumas pessoas”.

Essa foi a versão adotada pelo governo cubano e, para sustentação dessa narrativa, muitas pessoas importantes do regime pagaram o preço, como o general Ochoa, um herói de guerra, militante condecorado da Revolução Cubana e que foi fuzilado durante o período de desdobramento da questão cubana, muito semelhante ao Escândalo dos Contras, na Nicarágua, que aconteceu um pouco antes. 

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A cocaína é um dos narcóticos mais utilizados no mundo.
Foto: Mart Production/Pexels

Atualmente, o governo de Cuba diz adotar uma política de tolerância zero às drogas, o que para o governo é um elemento vital para atingir o desenvolvimento sustentável e o bem-estar do povo. Devido à sua posição geográfica, a ilha está localizada entre os Estados Unidos, principal consumidor mundial, América do Sul, onde estão os principais produtores e traficantes de drogas.

O país exige vigilância constante, porém, como destacado em um texto publicado pelo jornal Granma, órgão oficial do Partido Comunista Cubano, a vontade política do Estado cubano e de seu povo de enfrentar esse problema é defendida em todos os momentos nas fronteiras, no território nacional e na ampla colaboração internacional, bilateral e multilateral.

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Uma questão longe do fim 

A política de tolerância zero no combate ao tráfico de drogas, instituída na América Latina nas últimas décadas, em países como Bolívia, Equador, Colômbia, México, Cuba, e Brasil, em um primeiro momento, pode ter colaborado para a redução do volume de drogas traficadas, como aconteceu com a Bolívia no final do anos 80, mas não resolveu, de forma alguma, a violência ligada ao crime.

A Colômbia, hoje responsável pela maior produção de cocaína no mundo e famosa por traficantes como Pablo Escobar, sofre por ter o mercado de drogas tão ligado à política, o que reflete na instabilidade de sua democracia e na perpetuação de seus conflitos armados. Em 2022, a Colômbia atingiu o número recorde de 230 mil hectares de folhas de coca plantadas, de acordo com um relatório do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Undoc).

O Equador, que fica entre os dois maiores produtores de narcóticos do mundo, Peru e Colômbia e que serve como rota de tráfico entre os dois países, passou recentemente por um aumento da insegurança pública, quando foram extintos, em 2017, o  Conselho Nacional de Controle de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas e os Ministérios da Justiça, da Segurança e do Interior, com a finalidade de redução dos custos orçamentários. O conselho e os ministérios eram responsáveis pela administração das prisões no país.

A história do mercado de drogas em Cuba, por sua vez, esbarra na Revolução cubana e na luta revolucionária armada. Para o autor Leonardo Coutinho, o narcotráfico funcionou como uma arma de luta revolucionária ao financiar grupos guerrilheiros e partidos de esquerda. Hoje, a agenda cubana prevê políticas de tolerância zero ao tráfico. 

No México, muitas campanhas políticas são financiadas com dinheiro do narcotráfico. Assim, quando eleitos, os políticos trabalham para proteger os negócios dos seus financiadores, o que alimenta um ciclo sem fim. A política e o tráfico se retroalimentam, em uma relação de simbiose.

As políticas de combate ao tráfico estão longe de resolver os problemas causados pelo tráfico. No Brasil, a criminalização das drogas é usada para encarcerar a população jovem, negra e pobre. A diferença entre usuário e traficante está, sistematicamente, vinculada à cor da pele e à renda de um indivíduo. E é justamente o encarceramento em massa que contribui para o fortalecimento do crime organizado.

Fato é que a dura política de tolerância zero e de guerra às drogas, instituída em grande parte da América Latina, fortemente influenciada por uma agenda de interesses dos Estados Unidos, especialmente entre os anos 70 e 80, formatou uma região profundamente afetada pelo crime, pela corrupção e pela violência.

O narcotráfico segue influenciando eleições, ditando as regras do crime, desestabilizando democracias e causando violações aos direitos humanos, além de constantes e intermináveis crises políticas, sociais e econômicas na região. 

O que é consenso, no panorama internacional, é que o primeiro passo rumo à políticas públicas eficazes no combate ao tráfico, é reconhecer que a política de drogas é, em sua essência, um tema de saúde pública, que deve ser tratado como tal.

Editado por Mariana Ribeiro

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