O eclipse do autoritarismo brasileiro - Revista Esquinas

O eclipse do autoritarismo brasileiro

Por Giulia Lozano, Isadora Pacello, Letícia Cassiano, Lívia Maria dos Santos e Sophye Fiori : julho 10, 2023

A chamada sociedade autoritária, que estrutura o Brasil e foi lapidada por séculos, até seu núcleo ficar exposto nos vidros quebrados do STF/Foto: Marcelo Camargo/ABR

Entenda como a estrutura do autoritarismo brasileiro eclodiu no fenômeno dos atos golpistas do dia 8 de janeiro de 2023, em Brasília

No dia 8 de janeiro de 2023, apenas uma semana após a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, cerca de 200 mil “patriotas” — segundo a polícia militar — invadiram a Praça dos Três Poderes, em Brasília. A situação escalou de tal modo que uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) foi instaurada, e mais de duas mil pessoas foram presas. 

Para muitos, a manifestação — que ficou conhecida como “atos golpistas” — já estava anunciada há mais tempo do que existe o próprio bolsonarismo. De lá para cá, diversos veículos jornalísticos tentaram compreender o que aconteceu, mas as muitas respostas levam sempre à mesma raíz: a chamada sociedade autoritária, que estrutura o Brasil e foi lapidada por séculos, até seu núcleo ficar exposto nos vidros quebrados do STF. 

Paulo Gabriel da Silveira e Silva, de 39 anos e natural do Rio Grande do Sul, foi um dos presos em 9 de janeiro, durante a operação para acabar com os acampamentos em frente aos quartéis do Exército, ordenada pelo Ministro Alexandre de Moraes. Paulo Gabriel “DE DEU”, como se autointitula nas redes sociais, foi encaminhado para o Complexo Penitenciário da Papuda e denunciado no inquérito 4921, referente aos “partícipes por instigação que de alguma forma incentivaram a prática dos lamentáveis atos”, como descreve o documento de denúncia do Ministério Público

Tal qual alguns outros presos na ocasião, Paulo já se envolveu na política, quando se candidatou a vereador em Abadiânia (GO) nas eleições de 2016 pelo PTC (Partido Trabalhista Cristão). Em seu Instagram, predominam publicações com imagens da bandeira do Brasil estampando frases religiosas, bem como inúmeros registros participando de cultos evangélicos e manifestações bolsonaristas em Brasília e em Goiás, além de comentários contra a CPI da Covid-19 e conteúdos exaltando empresários. 

Os ditos “patriotas” fardam-se com todos os estereótipos da identidade brasileira. Com isso, procuram reafirmar os símbolos nacionais diante de uma ameaça imaginária, caracterizada pela crescente nos debates sociais, mas não apenas nela. O inimigo eleito por esse grupo é uma fusão de inúmeras assombrações do passado, como as lendas políticas que giram em torno do comunismo, tão antigas quanto a própria República Federativa do Brasil.

Para o cientista social e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), Jonas Medeiros, o despertar da ideologia extremista que se manifestou nos atos de 8 de janeiro remonta às manifestações de 2013, que completaram dez anos neste mês. “As revoltas de junho de 2013 expressaram não apenas um mal-estar com a qualidade da democracia e a valorização de direitos sociais, mas também uma intensa desconfiança do sistema político brasileiro. Nos anos seguintes, o próprio sistema político nada fez para dialogar com essa insatisfação, nem para se democratizar diante dessa desconfiança, o que obviamente apenas a aprofundou até 2018”, analisa. 

Segundo o pesquisador, na falta de candidaturas que dialogassem com aquela profunda dúvida quanto ao sistema político brasileiro, foi Jair Bolsonaro que encarnou uma saída vista como anti-sistêmica, ainda que o próprio tenha se aproveitado desse mesmo sistema por mais de 30 anos. 

Já o cientista político André Pereira César acredita que a extrema direita, além de ser um fenômeno mundial, veio para ficar. “Me parece definitiva essa ultradireita. Pode nem ser o Bolsonaro [no poder]. Trump nos Estados Unidos, a Giorgia Orban na Hungria, os movimentos direitistas na Polônia, Putin como um czar do séc XXI. A política é feita de ciclos — a vitória de Lula acabou por segurar essa onda, mas essa direita pode achar outros nomes”, afirma. 

Olhando para a história do Brasil, no entanto, percebe-se que a tendência para ideologias de autoritarismo, conservadoras e direitistas — representadas, na maioria das vezes, por um forte apelo popular — não é uma novidade. 

Brasil autoritário 

Ao longo dos anos 1990, o Brasil enfrentou um longo processo de redemocratização após os mais de vinte anos do regime ditatorial comandado por militares no país. Não muito antes disso, o Estado Novo de Getúlio Vargas perseguia opositores e enviava presos políticos aos campos de concentração da Alemanha nazista. Anos antes, o militarismo já mostrava suas caras na República, logo depois de o país ser comandado por um imperador.

Analisando esse histórico, não seria equivocado juntar os pontos e afirmar que a maior ameaça à democracia brasileira é (e sempre foi) o autoritarismo político, uma sombra à espreita há mais de quinhentos anos. Contudo, o problema é ainda mais profundo e cotidiano do que parece.

Para Jonas, esses sistemas políticos são reflexo de um autoritarismo que permeia toda a sociedade brasileira. Segundo ele, o conceito de sociedade autoritária “é uma forma de complexificar o fenômeno da dominação, uma vez que os sistemas de opressão incluem classe, raça, etnia, gênero, sexualidade e até religiosidade e idade”. Dessa forma, a sociedade brasileira se caracteriza como agente de reprodução desses sistemas de opressão que, por sua vez, se entrecruzam de formas complexas e contraditórias.

Essa série de violências está presente nas pequenas e grandes ocorrências do dia-a-dia, que vão da ausência de pessoas pretas em ambientes de prestígio, como universidades, à falta de autonomia que as mulheres detêm sobre o próprio corpo. Na prática, esses problemas “grandes” são amparados por aspectos e práticas culturais, como o sentimento de impunidade que sustenta os números de violência doméstica, por exemplo. 

Para a escritora e filósofa Marilena Chauí, o autoritarismo no Brasil existe a plena vista, mas se encontra atravessado por mitos sobre as características estruturais do país e de seu povo. A violência é mascarada por concepções imaginadas sobre o que é a nação brasileira. Expandindo-se no tema, Chauí ainda afirma que esses mitos e símbolos resultam em uma dissociação cognitiva para aqueles que vivem nessa realidade. Em outras palavras, para algumas pessoas, é praticamente impossível enxergar a realidade de forma crítica, pois elas se convenceram da existência de uma realidade paralela, baseada em mitos — como o da meritocracia, por exemplo. 

Retornando ao personagem inicial da reportagem, Paulo Gabriel — assim como os outros milhares de presos naquela semana e enquadrados no inquérito 4921 — não acreditava que suas ações fossem criminosas — pelo menos, não dentro do conceito de crime próprio dos bolsonaristas. No “delírio” dos apoiadores do ex-presidente que marcharam em direção à Praça dos Três Poderes em 8 de janeiro, o sentido dos acampamentos, da depredação e, principalmente, das mensagens falsas e alarmistas compartilhadas nas redes sociais era salvar o país de uma ameaça real.

Essa lógica, que ainda está longe de ser plenamente compreendida, justificaria, na visão de Jonas Medeiros, o uso de métodos de protesto tradicionalmente condenados pela direita. “Não se trata apenas de terem estampado cartazes que pediam o fim do direito de manifestação, uma vez que a mobilização e o sequestro de repertórios de ação coletiva por vezes utilizados por movimentos sociais de esquerda (como bloqueios de vias e acampamentos/ocupações de espaços públicos) era um exercício do direito de manifestação. Tem algo de perverso e parasitário em toda essa situação.”  

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Um novo olhar  

O caminho que levou aos atos de 8 de janeiro foi longo e, certamente, marcado por uma série das narrativas que Chauí apresenta. Afinal, para reunir mais de 200 mil pessoas em um empreendimento tão perigoso e de tamanha magnitude, é preciso algo que vá além do plano material.

Diante das proporções que as coisas tomaram, faz-se necessário tecer um novo olhar sobre esses acontecimentos. Em uma matéria para a revista Quatro cinco um, Jonas e Bianca Tavolari, professora e também pesquisadora do CEBRAP, defendem que é preciso analisar antropologicamente os atos, já que só assim é possível começar a estudar o raciocínio por trás do maior ataque à democracia brasileira dos últimos anos. 

Na visão dos pesquisadores, uma das razões pelas quais centenas de milhares de pessoas largaram seus empregos e deixaram suas casa para acampar em frente a quartéis, faça chuva ou faça sol, foi um sentimento de distanciamento e usurpação da soberania do povo pela política, que estourou ainda em 2013. Uma prova disso são os vídeos que circularam ao vivo nas redes sociais daquela tarde de domingo, com frases que evocavam um povo unido, tomando de volta os símbolos do poder.

No entanto, devemos nos questionar a todo momento qual é esse povo que os golpistas tanto buscam defender. Por quais grupos sociais eles estão dispostos a morrer? Se partirmos da hipótese de que o autoritarismo político que eles tanto buscam, através da sonhada intervenção militar, é causado por um autoritarismo social, este autoritarismo social serve apenas aos grupos sociais dominantes. Compreende-se, então, que a revolta inflamada na extrema-direita que invadiu a Praça dos Três Poderes está, na verdade, amedrontada com o mínimo sinal do fim de seus privilégios ancestrais. Assim, por meio de métodos pautados no medo, transformam uma parcela da população em um curral eleitoral de peões, prontos para atacar.

Editado por Mariana Ribeiro

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