O governo egípcio executa um plano sistemático contra as árvores para transformar Cairo em um mar de concreto
Há pouco mais de uma década, a capital do Egito, Cairo, vem perdendo de forma desenfreada sua cobertura vegetal. Mas, fora do país árabe, esse crime ambiental não teve repercussão.
A notícia chegou no Brasil há alguns meses, após um vídeo no Tiktok alcançar a marca de 1,7 milhões de visualizações, expondo, em português, a degradação da cobertura vegetal egípcia. A falta de divulgação de dados e a proporção que certas páginas afirmam que o desmatamento está tomando geraram um alvoroço nas redes sociais. Críticas ferrenhas às atitudes do governo e até comparações com o filme “Lorax” foram veiculadas por internautas revoltados com a situação.
Segundo dados do Global Forest Watch (GFW), foram desmatados no Egito cerca de 1.810 hectares de 2001 a 2023. Isso equivale a 1.676 campos de futebol e à emissão de carbono de 120 mil carros populares em um ano.
O povo egípcio parece ainda mais incomodado, pois, nas redes, a população demonstra sua inquietação em relação às políticas anti-meio ambiente. Além disso, petições com milhares de assinantes e ONG ‘s – com certo apoio internacional – agiram contra as ações de desmatamento do governo de Al-Sisi. O ápice da cobrança foi uma interpelação (ato jurídico de exigir explicações) foi feita, em 2024, direcionada para diversos ministros do parlamento egípcio, cobrando o fim do corte ilegal das árvores na capital. No entanto, mesmo com toda a inquietação e movimentação da população, nada mudou.
A estudante egípcia da American University of Cairo, Ghalia Youssef conta sobre o que vem acontecendo. “Afirmo, sim, que está havendo um desmatamento aqui em Cairo, principalmente em bairros mais periféricos e pobres… Muitos lugares onde haviam áreas verdes foram substituídas por pontes, viadutos e avenidas”.
Para se ter uma dimensão, Cairo, de 2017 para 2020, perdeu 910 mil metros quadrados de área verde, segundo pesquisa do Academic Journal of Engineering and Applied Sciences. Se levarmos em consideração que o Egito é um país desértico e de poucas áreas verdes, esses dados mostram proporção do que está acontecendo no Egito. Os dados se mostram ainda mais alarmantes quando se observa a queda de 0,87m² para 0,74m² de área verde per capita, uma queda de aproximadamente 15% em 3 anos. Quando questionado sobre esses números, o governo egípcio afirma que há, na realidade, 1,2 m² de área verde por habitante. O ponto é, independente de que dado esteja correto, ambos estão absurdamente abaixo dos 9m² de área verde per capita indicados pela OMS.
O fundador da ONG “Heliopolis Heritage Foundation”, Choucri Asmar comenta a situação: “Já paramos de contar quantas árvores são cortadas, mas, de agosto de 2019 até janeiro de 2020, foram 390 mil metros quadrados de área verde desmatados só em Heliópolis.

Comparação da cobertura de área verde em 2004 (em cima) e 2024 (embaixo) na província de Al Salam
Fotos: Google Maxar Technologies GeoEye (2004) e Google Airbus (2024)

Comparação de cobertura verde em 2014 (em cima) e 2024 (embaixo) na província de Caliubia
Fotos: Google Airbus
Cairo na carência de verde
Vamos supor que na cidade de São Paulo, de uma hora para outra, o governo decidisse cortar a maior parte das árvores para aumentar as ruas, ou, se de uma hora para outra, o Ibirapuera virasse um grande encontro de avenidas. Talvez o trânsito gigantesco, que já é característica da capital paulista, diminuiria drasticamente. Mas a preço de que? Ilhas de calor, aumento de temperatura, perda de qualidade do ar, menos capacidade de recuperação do meio ambiente, desconexão dos habitantes da cidade com a natureza e perda dos detalhes verdes em meio ao mar de concreto. É isso que está ocorrendo no Cairo.
E essas ações se demonstram mais preocupantes quando levamos em consideração o fato do Sul do mediterraneo ser um local mais suscetível a situações climáticas intensas, ligadas à temperatura. Essa afirmação se comprova quando levamos em consideração dados divulgados pela NASA no ano de 2021, que demonstra que a região teve um acréscimo de 1,5C° de temperatura desde épocas pré-industriais. Esse crescimento foi por volta de 50% maior se comparado com o resto do mundo, seguindo os mesmos parâmetros. Isto é, num mundo que já tem sofrido muito com as mudanças climáticas, o Egito há de se preocupar mais ainda com ações que atenuem os efeitos do aquecimento global.
Consequências específicas das ilhas de calor são as que mais geram inquietação nas grandes metrópoles do mundo. Se a cidade de São Paulo, que cumpre em sua média os padrões de área verde per capita da OMS, já vem sofrendo com temperaturas elevadíssimas decorrentes das ilhas de calor, Cairo deve olhar com muito cuidado para a substituição dos já escassos espaços arborizados por asfalto. Após um verão de 2024 que quebrou o recorde histórico de temperatura, com quase 51ºC, o esperado para 2025 não é promissor com o escalonamento de ilhas de calor no país.
As ilhas de calor contribuem para o aumento de temperaturas em regiões com uma cobertura grande de asfalto e concreto, e pouca de árvores e jardins. Isso, junto com a falta de sombreamento, gerado por árvores, em calçadas, dificulta muito a locomoção do pedestre na capital do Egito. “É quase impossível andar pelas ruas de Heliópolis sem as árvores, o calor está insuportável”, diz Asmar.
Esse extermínio geral das árvores feito pelo governo de Abdel Fattah Al-Sisi pode parecer apenas mais um ato simplório contra o meio ambiente, mas não é. O desmatamento em Cairo é uma tentativa de torná-la uma cidade totalmente urbanizada, com grandes áreas pavimentadas, de grande fluxo de automóveis, alta movimentação econômica, e infelizmente, uma desconexão do povo com a natureza. Quem afirma para nós a existência dessa desconexão é Ghalia Youssef. “Às vezes me sinto sim desconexa com a natureza”, diz. O governo comete o corte ilegal de árvores sob o pretexto de dar ao povo mais qualidade de vida no ambiente urbano. No entanto, o que prova de fato que menos árvores e mais asfalto é o desejo da população? “Eles decidiram, sem consultar a população, alargar as vias para facilitar a locomoção para a nova capital. Para fazer isso, retiraram as árvores que sombreavam as calçadas da região “, afirma Choucri Asmar.
O fato é: o indivíduo humano tem a necessidade de ter contato com o meio-ambiente, pois a falta pode causar problemas tanto de saúde física como psicológica. É tão real esses sintomas, que o jornalista ambiental americano Richard Louv percebeu uma semelhança de sintomas em diversos indivíduos com pouco ou ínfimo contato com a natureza, e cunhou o termo “Transtorno de Déficit de Natureza” para denominar pessoas que, por estarem desconectados com o meio ambiente, sofrem de obesidade, depressão e hiperatividade. É impossível provar que haja ligação com o desmatamento, mas, de 2003 até por volta de 2018, enquanto o mundo teve um crescimento de 10% para 13% na porcentagem de indivíduos com transtornos psicológicos, o Egito, por outro lado, teve um crescimento de cerca de 17% para 25% em praticamente o mesmo período. Ao comparar o aumento egípcio com o global, é possível verificar que o aumento do Egito foi um pouco mais de 50% maior. Além disso, segundo a OMS, a obesidade infantil no Egito merece atenção pois é maior que a média mundial.
Um dado importante para se levar em conta é o fato do desmatamento estar ocorrendo de forma mais intensa nos bairros mais pobres. Segundo a pesquisa da Academic Journal of Engineering and Applied Sciences, 66% da população de Cairo mora existe menos de 0,5 metros quadrados de área verde per capita. Enquanto isso, os únicos 3 dos 37 distritos que cumprem o mínimo padrão nacional de 5 metros quadrados de área verde per capita são considerados áreas nobres e apenas um deles, o Gharb al-Qahira, uma das províncias mais ricas da capital, ultrapassa os 9 metros quadrados recomendados pela OMS. Youssef aponta a contradição. “Se você não mora em um bairro nobre com jardins, praças e parques, é muito difícil não se sentir distante do meio-ambiente… nos bairros populares já foi quase tudo desmatado”. Ou seja, é notável a existência de uma gigantesca desigualdade econômica-ecológica no país, fazendo que uma parcela da população, que já vive questões financeiras mais sensíveis, mais suscetível tanto à poluição e ao calor quanto ao Transtorno de Déficit de Natureza.
Mas por outro lado, seria mentira não dizer que a locomoção na cidade do Cairo de fato foi facilitada. Segundo observação de Youssef, “trajetos que demoravam uma hora e meia para serem feitos, hoje em dia estão demorando 30 minutos… é inegável que a mobilidade urbana de Cairo melhorou muito após as reformas de urbanização”. Mas, com o aumento da mobilidade urbana, é inevitável a maior quantidade de carros nas ruas de Cairo, consequentemente gerando mais emissão de gás carbônico, e com menos áreas verdes, menos desse gás é consumido pelas plantas. Ou seja, um ataque ao meio ambiente por dois lados, mais poluição e menos capacidade de recuperação do ciclo ecológico.
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Cortando de um lado e plantando do outro
As denúncias contra as ações que desmatam o Egito já possuem anos de história. Para tentar contornar as acusações ou, no melhor dos mundos, até revertê-la, o governo de Al-Sisi decidiu lançar a “100 Million Trees Initiative” em 2022 ao sediar a COP 27. O programa consiste basicamente em plantar 100 milhões de árvores, ou 2.670 hectares de área verde, ao redor do país sob o pretexto de combater mudanças climáticas, a poluição do ar, aumentar os espaços verdes e reduzir a emissão de carbono.
Apesar de relatórios escassos, últimas informações divulgadas em junho de 2024 revelam que o Ministério do Desenvolvimento Regional plantou 10.1 milhões de árvores até o meio do ano passado. Se continuar nessa velocidade, a promessa só será cumprida no ano de 2038.
Além de reforçar o tamanho do esforço do governo de Al-Sisi em plantar 100 milhões de árvores, a ministra egípcia do meio-ambiente, Yasmine Fouad, negou em declaração “a existência de um plano sistemático para cortar árvores” e acrescentou a “empolgação do Estado para aumentar áreas verdes”. Entretanto, essas falas, que negam fatos visíveis, somado a uma fala de uma fonte egípcia, que pediu para não ser identificado. “Não mudou muita coisa depois disso (implemento da 100 million trees initiative)… É cômico até porque, enquanto estava acontecendo a COP 27, ainda estavam cortando árvores”. Fazem pensar que o plano “100 million trees initiative” pode ser apenas uma forma do governo acalmar os ânimos da população em relação ao massacre sistêmico de árvores no país.
A luta da população
Além dos supostos esforços governamentais para reflorestar o país, iniciativas como o “Shagrha” e o “Heliopolis Heritage Initiative” lançam constantemente ações para mitigar o massacre feito por Al-Sisi, campanhas de reflorestamento e protestos contra o desmatamento.
A Shagrha, criada em 2016 no Egito, já conta com 286 mil seguidores no Facebook e já foi responsável pelo plantio de 350 mil árvores no Egito até 2023. “A maior motivação (para criar o Shagrha) veio de andar pelas ruas de Cairo e ver o quão pouco espaço verde nós tínhamos… daí surgiu a ideia de plantar árvores que geram espaços verdes funcionais, como plantas medicinais e frutíferas… nós queremos diminuir a fome, melhorar a saúde mental da população e aumentar os espaços verdes da cidade”, diz Omar El-Deeb, fundador da Shargha. Sobre as denúncias de desflorestamento, feitas pelo governo de Abdel Fattah Al-Sisi, no Egito, El-Deeb sente necessidade de combater o desmatamento e que a situação faz a iniciativa se esforçar mais e ter mais motivação para advogar a favor do desenvolvimento urbano sustentável. “As denúncias refletem uma frustração profunda da população em ser descartada de decisões de planejamento urbano. Vemos elas como um pedido de políticas mais sensíveis com a natureza. O desenvolvimento urbano é necessário, mas deve ser feito com as pessoas e a natureza em mente. Quando áreas verdes são substituídas por concreto, o impacto social e psicológico é real. As pessoas precisam de espaços para respirar. Não se trata apenas de estética, trata-se de saúde, clima e dignidade.”.
Já Choucri Asmar, da Heliopolis Heritage Initiative tem um trabalho mais direcionado à manutenção das árvores em seu bairro. “Até colocar o rosto de personalidades famosas do Egito nós fizemos para que parassem de cortar as árvores… Nós tentamos convencer o governo a replantar árvores e criar espaços verdes para que possamos caminhar nas ruas sem sofrer com o calor intenso”.