Marcha da Maconha vê criminalização como ponta do iceberg - Revista Esquinas

Marcha da Maconha vê criminalização como ponta do iceberg

Por João Nakamura e Pedro Penteado : junho 17, 2024

“Para o rico ‘já está legalizado’. Ele pode comprar online, chega na casa dele, não tem problema para importar. E para o pobre não, ele tem que fumar o prensado, tem todas as dificuldades, a gente luta por essa igualdade”. Foto: João Nakamura/ESQUINAS

Racismo, perdas para os cofres públicos e medicamentos inacessíveis mostram que luta pela legalização vai muito além da ‘brisa’

O movimento Marcha da Maconha foi às ruas de São Paulo neste domingo (16) puxado pelo lema “bolando um futuro sem guerra”. Entre os gritos de ordem e a cortina de fumaça que cobria a Avenida Paulista, o que mais ressoava era “Legalize Já!”, fosse da boca dos milhares de manifestantes, do banner pendurado no MASP (Museu de Arte de São Paulo) ou das caixas de som que tocavam uma música relacionada da banda nacional Planet Hemp.

ESQUINAS esteve de volta à praça neste ano crucial para o debate sobre a legalidade da droga no país. O Supremo Tribunal Federal (STF) julga um recurso para diferenciar a quantidade de maconha portada por um usuário e pelo traficante, a fim de descriminalizar o consumo próprio. Na contramão, o Congresso Nacional vota a Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que prevê criminalizar a posse de qualquer quantidade de qualquer tipo de droga.

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Cartaz pedindo pela derrota da PEC 45 e do PL 1904.
Foto: João Nakamura/ESQUINAS

A proibição, contudo, é só uma pequena parte do problema para os manifestantes. “A proibição das drogas é o combustível da guerra do Estado contra pessoas negras, pobres e moradoras de quebradas. Guerra que promove violência contra a juventude e opressão contra mulheres e corpos divergentes”, destaca o Manifesto da Marcha da Maconha, publicado nas redes sociais do movimento.

A luta do manifestante tem como prioridade combater a criminalização do usuário, na visão de Letícia Chagas, 24, advogada e codeputada estadual do Movimento Pretas (PSOL-SP), que estava na Marcha.

“A extrema-direita avança no Brasil e quer criminalizar o uso. Na prática, a lei de drogas hoje já criminaliza o usuário, porque o racismo faz com que juiz ache que todo preto fumando é traficante. Quem é preto e pobre acaba sofrendo, mesmo se tem pouca droga”, argumentou.

“A grande questão que a gente vê hoje é que o STF está querendo criar critérios para diferenciar o usuário do traficante. O que o Congresso quer fazer [com a PEC 45/2023] é barrar esse avanço colocando na Constituição que ser usuário é crime. Mas, na prática, isso não vai mudar nada”, disse Chagas.

O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) aponta que 68% dos réus processados por tráfico de drogas são pessoas negras, enquanto menos da metade disso (31%), brancos. O levantamento feito pelo instituto em outubro de 2023, junto do Ministério da Justiça e Segurança Pública, apontou que 30% dos réus processados por tráfico nos tribunais estaduais alegam que a droga apreendida era para uso pessoal.

E é por não haver essa distinção entre usuário e traficante que todos acabam sendo prensados no mesmo pacote como criminosos. O preço disso é que 5,2 bilhões de reais de gastos públicos dos estados de São Paulo e do Rio de Janeiro por ano, de acordo com o Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, valor suficiente para pagar o Bolsa Família de 600 reais para 728 mil beneficiários.

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Cartaz pede para que se “dichave a informação”, ou seja, destrinchar um conteúdo.
Foto: João Nakamura/ESQUINAS

Já para o cidadão o custo é um pouco maior, que além de pagar com a vida, perde 50 bilhões de reais por ano em bem-estar devido à guerra contra as drogas. Segundo o estudo do IPEA, esse resultado se dá pelo impacto dos homicídios no consumo e geração de renda não apenas das vítimas, mas de toda a sociedade.

São as pessoas que estão do outro lado da ponta do fuzil que vão à Marcha resistir. “A pauta da legalização traz tanta gente periférica porque somos nós que somos afetados pela proibição. Hoje, a luta racista não tem como existir se não for antiproibicionista. É impossível ser antirracista sem lutar pela legalização da maconha”, disse a parlamentar do PSOL.

E nessa luta até o Coringa aparece de bicicleta. Danilo, pseudônimo do ativista pelo plantio e cultivo da maconha, se caracterizou como o personagem por acreditar que ele “representa o excluído, o marginalizado”.

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Coringa carrega o cartaz “Alcoolismo mata, maconha cura.”
Foto: João Nakamura/ESQUINAS

“Para o rico ‘já está legalizado’. Ele pode comprar online, chega na casa dele, não tem problema para importar. E para o pobre não, ele tem que fumar o prensado, tem todas as dificuldades. A gente luta por essa igualdade”, afirmou por baixo da máscara.

Por isso, a criminalização é vista como um retrocesso que prejudica sobretudo os mais pobres. Entre os manifestantes, se destaca também um veterano que aponta o “dedo” para o Congresso.

“O Congresso Nacional precisa conhecer melhor as vantagens da cannabis para a saúde humana, como está ocorrendo em dezenas de países. Não convém querer aprovar essa PEC, que significará um retrocesso formidável. É preciso modificar a mente dos congressistas, que estão querendo colocar a cannabis em um lugar ainda mais inadequado”, defende o deputado estadual Eduardo Suplicy (PT-SP) a ESQUINAS.

Danilo, o Coringa, carregava uma placa que faz coro às palavras de Suplicy e reforçou: “A gente está aqui pela cura, pela saúde. A gente quer que melhore a qualidade do produto para todos.”

Ervas que curam e acalmam

Não só os adeptos do “cigarrinho de artista” foram à Marcha. Muitas pessoas que se tratam com o canabidiol (CBD) – substância da maconha usada para tratar de ansiedade a Parkinson – estiveram presentes na avenida.

“Viemos para curtir e mostrar que é importante lutar pela causa, que não somos criminosos, apenas lutamos por algo que a sociedade muitas vezes nos causa. Faço uso da maconha há dez anos, e uso a medicinal há pouco tempo. Percebo que, com a dose menor do remédio, tenho uma dependência menor”, disse Gabriela Rodrigues, atendente de 28 anos que conta como a maconha a ajuda a controlar a ansiedade e auxilia a sogra a lidar com o Alzheimer.

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“Somos pacientes canabicos.”
Foto: João Nakamura/ESQUINAS

E mostrando que as veias ainda estão abertas, Catarina Nóbrega, 39, desempregada, levanta a camisa para mostrar as cicatrizes de uma cirurgia que até hoje lhe causa dores e enjoos. O problema é que, mesmo com o avanço da compreensão sobre o tratamento, o preconceito ainda persiste.

“E eu, quando uso [maconha com fins medicinais], sou taxada de viciada, de drogada. Precisamos acabar com esse ‘misticismo’ no nosso país”, cobrou a manifestante.

“Se você conhece a real vida de quem usa como medicinal, você não tem mais preconceito. Tem que acabar com o preconceito com a planta. Agora, você não conhece e quer criticar aquilo que nem sabe de onde vem e como funciona?”

A maconha medicinal atua em pelo menos 20 quadros de saúde. Desde convulsão a insônia, o medicamento pode ser trabalhado de diversas formas a depender do sintoma. O que se destaca é que as altas doses de estigmas em relação ao tratamento com a maconha medicinal dificultam o investimento em pesquisas e geram obstáculos para a acessibilidade ao medicamento.

No Congresso tramitam dois projetos de lei relacionados ao uso medicinal. O primeiro visa liberar o cultivo da maconha medicinal e do cânhamo, fibra extraída da planta que pode fabricar desde cordas a plásticos. Atualmente, são produzidos cerca de 25 medicamentos à base de cannabis no Brasil, porém, a erva e os insumos devem ser importados, o que encarece o produto.

Já o outro PL busca criar uma política de fornecimento gratuito de medicamentos derivados de CBD. Ambos estão parados e sem previsão de votação.

“O objetivo é conseguirmos ampliar esse debate, pois acreditamos que o preconceito vem muito da falta de informação. E quanto mais preconceito, mais difícil para os estudos avançarem e termos algo plenamente regulamentado”, analisa Joana Lopes, psicóloga de 24 anos que marcha com a ala psicodélica, cuja missão é ampliar o debate do antiproibicionismo.

“Agora temos vários estudos mostrando diversos benefícios, pois os psicodélicos são ampliadores da consciência. Eles quebram barreiras que demoram muito mais tempo dentro de uma psicoterapia para conseguirmos acessar no sujeito. Mas, como é algo ainda em fase de estudos iniciais, é preciso ter muito cuidado. A gente luta muito para que haja a possibilidade de uma regulamentação e acesso para ampliarmos esses benefícios e termos o direito fundamental à liberdade de pensamento”, disse a psicóloga.

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Skate com a frase “Legal!”
Foto: João Nakamura/ESQUINAS

E quem se diz a “prova disso”, de como a maconha pode trazer benefícios à saúde, é o próprio Suplicy. Os ponteiros do relógio indicavam 16h20, horário em que é queimada a largada da Marcha que parte rumo à República. E após acenderem a bomba, o deputado contou sobre seu diagnóstico de Parkinson e a evolução que teve com o canabidiol:

“Há cerca de um ano e meio, meu geriatra disse que eu estava com Parkinson. Então eu passei a tomar a medicação que ele recomendou e depois conheci a cannabis medicinal. As dores que eu tinha na perna sumiram, o tremor nas mãos diminuiu consideravelmente”, disse.

“Para crianças até pessoas idosas com os mais diversos tipos de doenças, tem sido fundamental a possibilidade de se medicar com a cannabis medicinal. Tem havido uma tentativa de esclarecer o povo brasileiro, inclusive os membros do Congresso, que a cannabis possui algumas características que melhoram extraordinariamente a saúde das pessoas”, destacou Suplicy.

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A Marcha da Maconha concluiu a sua 16ª edição com uma mudança estrutural para poder abraçar um maior número de manifestantes em relação a edições anteriores. Tradicionalmente realizada no sábado, a data foi alterada para o domingo, pois a organização queria se aproveitar tanto do Programa Ruas Abertas quanto do passe livre do ônibus, concedido neste dia da semana.

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Manifestantes durante a Marcha da Maconha.
Foto: João Nakamura/ESQUINAS

No último domingo, porém, o movimento não pôde contar com a Avenida Paulista fechada. O Ruas Abertas não foi realizado pela segunda semana seguida. A justificativa foi a realização do evento Red Bull Ladeira Abaixo, na avenida Brigadeiro Luiz Antônio – que corta a Paulista na altura do número 568, a pouco mais de um quilômetro do MASP.

A Marcha segue, permeada não só pela descriminalização, mas pela luta antirracista e pelo direito ao tratamento. Defesa essa que sem estrutura “pode virar um tiro no pé se não lutarmos por reparação histórica e pelo acesso de ampla população”, apontou a psicóloga Joana Lopes.

Editado por Mariana Ribeiro

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