“Ser gay era ser invisível. E ao mesmo tempo, ser observado por todos”, A história de dois homens e duas vidas entre silêncios, perdas e resistência.
É difícil encontrar livros de História que mencionem nomes como Cláudia Wonder, João Antônio Mascarenhas ou Brenda Lee — figuras pioneiras da luta LGBTQIA+ no Brasil. Se hoje as ruas se enchem de bandeiras coloridas e vozes que ecoam por direitos, muito se deve a pessoas que viveram décadas antes da criminalização da homofobia, sem visibilidade, sem proteção, sem garantias. Muitas, sequer sobreviveram.
Segundo o IBGE (2023), mais de 2,9 milhões de brasileiros se identificam como LGBTQIA+, e os jovens entre 18 e 29 anos formam a maioria. Mas onde estão os mais velhos? Muitos morreram. Outros estão vivos, porém silenciados. Aldo Carrasco, 50 anos, engenheiro, e Antônio Donizeti Rufino, 53 anos, contador, decidiram romper esse silêncio e compartilhar, com coragem e emoção, as suas histórias. Histórias que, por muito tempo, não puderam ser ditas em voz alta.
Em um país que pouco registra a memória de quem sobreviveu, esta matéria é uma tentativa de ouvir, e não esquecer.
“A aids levou tanta gente que eu me perguntava se ainda teria alguém do meu lado”
Antônio lembra de forma vívida o impacto que a epidemia de HIV/AIDS teve em sua juventude. “Era como uma sombra que pairava sobre todos nós. Eu perdi muitos conhecidos, amigos próximos. Às vezes, parecia que a cada semana alguém sumia, alguém morria. Era cruel. E mais cruel ainda era o silêncio.” Comparando à pandemia de Covid-19, ele desabafa:
Foi tão devastadora quanto, talvez mais. Porque não era só a doença em si, era o estigma. A gente era tratado como culpado. Os jornais da época nos chamavam de ‘grupo de risco’, como se nosso corpo fosse uma ameaça. E isso doía.
Ele diz que não frequentava espaços militantes na época, mas acompanhava os primeiros movimentos de resistência.
Eu via as paradas começarem, pequenas, tímidas, com medo. Tinha vontade de ir, mas também medo de ser reconhecido, de perder meu emprego. Então, ficava de longe, torcendo em silêncio.
“Ser gay era ser invisível. E ao mesmo tempo, ser observado por todos”
Aldo descobriu sua sexualidade entre os muros rígidos de uma casa conservadora. “Meu pai queria que eu me casasse com uma mulher, tivesse filhos, seguisse a vida como ‘homem de verdade’. Eu não queria aceitar. Achava que podia forçar ser o que esperavam de mim”. Ele relembra com amargura os tempos de escola:
Naquela época, ser ‘afeminado’ era suficiente para virar piada. Até professor fazia graça. Eu fui me retraindo, me calando. Comecei a fingir. Criava versões de mim que eu achava que seriam mais aceitas.
O silêncio foi sua principal ferramenta de sobrevivência, mas também sua principal ferida. “Ser gay era ser invisível. Mas não no sentido de não ser visto. Era estar o tempo todo se escondendo, e mesmo assim ser observado, julgado, apontado. Como se a qualquer momento alguém pudesse te desmascarar”.
Afeto como resistência
Apesar das dores, ambos destacam momentos de acolhimento que marcaram suas vidas. Aldo fala com gratidão sobre sua cunhada: “Ela foi a primeira pessoa da família que me ouviu de verdade. Quando meus pais não sabiam como reagir, ela me acolheu, conversou com eles, ajudou a quebrar barreiras. Ela me deu chão”.
Hoje, ele encontra no ambiente de trabalho um lugar de respeito. “Tenho um chefe que me apoia, colegas que me tratam com naturalidade. Mas não esqueço de onde vim. O medo ainda ronda, às vezes”.
Antônio, por sua vez, diz que nunca buscou “espaços LGBTQIA+ específicos”, mas reconhece a importância de ambientes seguros.
Sempre frequentei os mesmos lugares de todo mundo. Nunca quis me isolar. Mas sei que muita gente precisa disso. O que faltava, e ainda falta, é empatia e informação.
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Segundo levantamento do coletivo VoteLGBT, 91% das pessoas LGBTQIA+ no Brasil já sofreram discriminação, e 75% afirmam que evitam demonstrar afeto em público por medo. Isso se soma ao que estudiosos chamam de “apagamento geracional”: a tendência de se ignorar ou silenciar as histórias das pessoas LGBTQIA+ mais velhas.
“Eu fui silenciado muitas vezes”, diz Aldo. “No trabalho, entre amigos. Não podia falar sobre quem eu gostava, sobre minha vida. Hoje melhorou, mas ainda há muitas barreiras. As empresas falam de diversidade, mas nem sempre estão prontas para lidar com ela na prática”.
Antônio, embora afirme nunca ter se sentido silenciado diretamente, reconhece o peso do não-dito. “A gente cresceu acreditando que não podia falar. E isso te molda. Você se acostuma a não pedir espaço. Agora que estou sendo ouvido, eu penso: por que esperei tanto?”
Para os que vêm depois
Ao serem perguntados sobre o que diriam às novas gerações, Aldo e Antônio hesitam por um instante, e então falam com firmeza.
“Respeitem-se. Não aceitem menos do que merecem. Mas também não usem o orgulho como escudo para atacar. Ser LGBTQIA+ é, antes de tudo, ser humano. E o mundo precisa de mais humanidade”, diz Aldo.
Antônio reforça: “Não tenham pressa. Estudem, se informem, e confiem no tempo. Cada um tem seu processo. E tudo bem. O importante é não se apagar”.
Escutar é uma forma de memória
A história da luta LGBTQIA+ no Brasil é feita de corpos que dançaram, marcharam, choraram e desapareceram, muitos sem deixar rastros. Quando damos espaço para vozes como as de Aldo e Antônio, não estamos apenas ouvindo: estamos reconstruindo memórias que o tempo e o preconceito tentaram apagar.
Porque, no fim das contas, como diz Aldo, “ser ouvido já é uma forma de vencer”.