O homicídio intensificou as manifestações antirracistas no Brasil e obrigou o Carrefour a se posicionar
No dia seguinte à morte de João Alberto, homem negro assassinado em um Carrefour de Porto Alegre, o ator e comunicador Ricardo Fernandes, 31 anos, se reuniu com um grupo de manifestantes em frente ao Carrefour da Barra da Tijuca e se surpreendeu quando encontrou o mercado aberto. Para ele, seria importante que o estabelecimento fosse fechado naquele dia como um ato de respeito à vítima, além de ser dia da Consciência Negra.
Indignado, Ricardo então começou a pensar em maneiras de intervir na operação da loja, até que encontrou um jeito. “A gente organizou as pessoas e deu a instrução para que elas entrassem no mercado, fizessem a ‘compra dos sonhos’ e, quando chegassem no caixa, dissessem que estavam sem dinheiro ou que tinham desistido da compra”, conta. Segundo ele, a ação travou todos os caixas e o estabelecimento não conseguiu resolver o problema, fazendo com que, de fato, o Carrefour parasse.
Ver esta publicação no Instagram
Na noite do dia 19 de novembro, véspera do feriado da Consciência Negra no Brasil, João Alberto Silveira Freitas, homem negro de 40 anos, foi espancado até a morte por seguranças que prestavam serviços a uma loja do hipermercado Carrefour no bairro Passo D’Areia, em Porto Alegre.
Veja mais em ESQUINAS
Médico, arquiteta e educadora negros quebraram barreiras do racismo e ocupam espaços na sociedade
Manifestações durante a pandemia: “Um dos maiores medos que senti na minha vida”
“Sofri racismo da polícia”, denuncia fotógrafo que cobriu ato antifascista
O acontecimento gerou revolta em grande parte da população nacional. Em menos de 24 horas após o homicídio, diversos manifestantes começavam a se reunir em lojas da rede por todo o Brasil,a fim de, como Ricardo, protestar contra o acontecimento e, principalmente, contra o racismo estrutural. Segundo o sociólogo Davi Correia Santos, 37 anos, essa revolta é válida. Analisando o caso, ele chega à conclusão de que qualquer força de policiamento está diretamente ligada à opressão. “Em qualquer situação que tenha um indivíduo em um ambiente de segurança, ele é automaticamente visto como uma pessoa que pode exercer repressão”, explica Davi.
Na mesma semana do ocorrido, viralizou na internet um vídeo em que Ricardo fazia um discurso e pedia a demissão de Noel Prioux, o CEO do Carrefour no Brasil. É a ele que o comunicador atribui a responsabilidade do assassinato, argumentando que a luta não pode ser contra um racismo “invisível”, mas contra quem o coordena, comanda e direciona.
Ver esta publicação no Instagram
A declaração de Ricardo é um dos símbolos da intensificação da luta antirracista em 2020. O sociólogo Davi Correia acredita que existe um motivo para a difusão do movimento no atual cenário: “Esse ano acabou sendo mais catalisador por todo o contexto, a pandemia e o sofrimento dos grupos minoritários. Essa catalisação fez com que os grupos acabassem sendo mais impulsionados a agir, mas esse é um movimento que já vem ganhando força faz tempo”, explica.
Caráter dos protestos e plano antirracista do Carrefour
Apesar das manifestações estratégicas e pacíficas citadas pelo manifestante, também ocorreram diversos protestos violentos, que divergiram opiniões. Em nota, o Carrefour legitimou as manifestações, mas, muitos criticaram a postura violenta de alguns manifestantes em lojas da rede, que chegaram a ser depredadas e incendiadas.
Ricardo acredita que essa forma violenta de protesto se deve a um ódio acumulado de tantas outras tragédias. “Quando esse problema é gerado há cinco séculos, a gente tem a infeliz possibilidade de agir com o nosso emocional”, justifica. Segundo ele, os limites de qualquer protesto não devem ser impostos por quem oprime. “O opressor precisa reconhecer o lugar dele, que hierarquicamente é acima do oprimido, e só se calar. Ele tem que achar soluções para que essas questões sejam reduzidas, e não dizer qual é o limite e como tem que ser a reação”, afirma.
De acordo com a assessoria do Carrefour, como forma de impedir que ocorram novos casos como o de João Alberto, foi iniciado no dia 14 de dezembro um processo de internalização da segurança, começando por quatro hipermercados localizados no Rio Grande do Sul. “O processo de recrutamento e treinamento dos profissionais para as lojas contará com uma associação que reúne empreendedores negros da região de Porto Alegre. Todo o processo de internalização da segurança terá como foco a implementação de práticas antirracistas e de uma cultura de respeito aos direitos humanos, além de considerar a representatividade da população brasileira (50% de mulheres e 56% de negros) como um compromisso”, diz a nota.
O plano de ação da empresa também inclui uma política de tolerância zero, que enfatiza o tratamento rigoroso de casos de discriminação e racismo por parte de colaboradores, clientes e fornecedores da rede. Também será feito um programa de inclusão e contratação de empreendedores e profissionais negros.
O sociólogo defende a postura da empresa e considera válida. “É possível e tem como dar certo. Eu vi muita gente criticando, mas não tem como negar que é um esforço que deve ser feito de alguma forma. Na pior das hipóteses, você está defendendo um grupo”, justifica.