Do aumento da fome à chegada da vacina: um panorama da população em situação de rua de São Paulo - Revista Esquinas

Do aumento da fome à chegada da vacina: um panorama da população em situação de rua de São Paulo

Por Larissa Mariano e Thiago Baba : outubro 26, 2021

Membros de entidades governamentais e ONGs de assistência a pessoas em situação de rua relatam a trajetória da população até a vacinação.

Membros de entidades governamentais e ONGs de assistência a pessoas em situação de rua relatam a trajetória da população até a vacinação

Acostumado a andar pelos mesmos lugares, você conhece a cidade nos momentos em que ninguém vê. À noite, mesmo as ruas do centro, ficam mais vazias, os carros e pedestres diminuem e dificilmente param nos faróis. Mas, toda sexta-feira de madrugada há um encontro especial. São amigos que passam para tomar café e bater um papo. Habituado com a desatenção das pessoas, a escuta é fundamental para tentar manter a sanidade.

Em anos passados, lembra de ter ganhado bolo de aniversário e ouvido uma canção de parabéns com seu nome. Inclusive, este último é raramente considerado pela maioria ao seu redor, que muitas vezes te enxerga sem rosto e sem história.

Hoje, o que já era uma vida construída em pequenos espaços de solidão, se torna algo ainda mais isolado, já que é exatamente essa a recomendação. Uma doença contagiosa está andando pela população. Para não se contaminar, dizem que você deve ficar em casa. Mas que casa?

Para além do vidro do carro

Essa é a experiência vivida pelas pessoas em situação de rua na cidade de São Paulo. Acostumados com a ida de ONGs para receber maior atenção e escuta, essa população sentiu o impacto das restrições vindas com a pandemia da covid-19, além da contínua vivência de outras problemáticas que já os assolam, como a fome, a hostilização pública, a marginalização e questões de saúde física e mental. Para entender essa realidade, desde o início da pandemia até a vacinação desse grupo, urge um olhar que ultrapasse o comum, do vidro do carro. 

Padre Júlio Lancelotti, coordenador da Pastoral do Povo de Rua, aponta o conflito entre as recomendações dadas pelos órgãos de vigilância e a realidade das ruas.  “Todas as recomendações dadas pela OMS (Organização Mundial de Saúde) foram negligenciadas para a população em geral.  Para a população em situação de rua acaba ficando inatingível. ‘Ficar em casa’, onde é a casa deles? ‘Lavar as mãos’, em que local se eles não têm acesso a água potável? ‘Usar álcool em gel’, quem é que vai fornecer?”, questiona.

thiago baba · PADRE JÚLIO LANCELOTTI

Logo que foi decretada a situação de emergência na cidade de São Paulo, a Secretaria Municipal de Saúde e a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS) começaram planos e rotas para o combate do vírus dentro do contexto da população em situação de rua. Maria Luiza Garcia, da equipe da atenção básica dentro da SMS, na pasta do Consultório na Rua, explica que o trabalho foi muito intenso, com a formulação de novos documentos e recomendações técnicas. Dentre as medidas, ocorreu a criação de novos Centros de Acolhida para casos suspeitos e confirmados.

Já acostumados com pontos de doações cheios, aqueles que já viviam nas ruas passam a ver um crescimento constante no número de pessoas, devido à crise econômica. Cercados de outros indivíduos que também buscam atender às necessidades básicas, desde um lanche até um cuidado humano, esses cidadãos cruzam com famílias inteiras. Pais, mães e filhos. Nessas horas, atender à fome é mais urgente que atender às medidas de segurança. Ao olhar para os lados, todos veem a possibilidade de morte, seja por fome, ou pelo coronavírus. 

Leila Ferraz, coordenadora de comunicação do Grupo de Atitude Social (GAS), apontou que no primeiro mês da pandemia, as ações ficaram paralisadas para melhor entendimento da situação. A volta às ruas, segundo ela, revela a realidade de pessoas conhecidas. “A gente já conhecia as pessoas que ficam ali por nome. Quando chegamos oferecendo um café, um lanche, alguma coisa, reconhecemos eles. O número de pessoas cresceu bastante. Agora, a gente enxerga a fome no olhar destas pessoas. Estamos diante de um caos social”, relata Leila. 

situação de rua

Ação do GAS em São Paulo.

A crise econômica advinda da pandemia é clara e gera impacto na população em situação de rua. Entretanto, não é possível estimar em números o aumento desse grupo devido à queda de empregabilidade e crise financeira de muitas famílias. Realizado pela SMADS em 2019, o último censo de São Paulo aponta para 24.344 pessoas nessa circunstância.  

As estratégias de ação do GAS também sofreram alterações por conta da crise sanitária. “Fazemos rotas menores, justamente para que não aglomerem pessoas. Começou a ser nítido que o número de pessoas aumentou demais”. Segundo Leila, esse número cresceu, principalmente, devido às famílias que perderam suas rendas. “Não conseguiam mais pagar aluguel. Começamos a ir para rotas e ver famílias inteiras na calçada. Famílias mesmo, pai, mãe e crianças que foram despejadas de suas casas e tiveram que ir pra rua”, analisa.  

Sobre a experiência de voltar com os trabalhos, Leila sente um misto de tristeza e medo. “A gente também está preocupado com a saúde, porém estamos tão envolvidos que não dá para você ficar tranquilo, tomar banho quentinho sabendo que tem gente passando fome”, afirma.

“O ideal é que ele não precisasse ser feito, que todo mundo tivesse uma casa, emprego, saúde, alimentação”, desabafa a coordenadora do GAS

Em contrapartida, alguns locais, com aglomeração já pré-existente, tornaram-se um perigo com o vírus. Fabiana Pires, equipe do gabinete da Coordenadoria Regional de Saúde Centro, na interlocução da saúde da pessoa em situação de rua, explica como a organização da Cracolândia se tornou uma grande preocupação durante a pandemia: “Eles partilham de tudo. As pipetas, os baseados, a bebida, todos os produtos que eles fazem uso são compartilhados. A própria configuração social em que eles estão também é muito aglomerada por vários fatores”. 

situação de rua

Relatos de pessoas em situação de rua sobre sua vivência durante a pandemia.
Acervo Pessoal

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A vacinação para a população em situação de rua

Maria Luiza Garcia ressalta que o trabalho do Consultório na Rua acontece de maneira itinerante. Com isso, a carga de trabalho da equipe de assistência é massiva e, portanto, mais cansativa. Além de realizar visitas aos Centros de Acolhida, também realizam busca-ativa de novas pessoas em situação de rua, munidos de EPIs e insumos para realizar as consultas. Desde 12 de fevereiro, a campanha de vacinação da covid-19 abrangeu indivíduos em situação de rua com mais de 60 anos. Após esse período, em 29 de março, foi liberada a imunização daqueles com mais de 18 anos que estão cadastrados em Centros de Acolhida da SMADS.

A programação é feita diretamente com os gestores de cada instituição social e com a equipe dos Consultórios na Rua, para que ocorra um maior foco de vacinação nesses centros. “Vamos fazendo anúncios antes para prepararem esses pacientes. Muitas vezes eles estão em situação de vulnerabilidade, mas não quer dizer que não estejam trabalhando. Eles têm seus trabalhos informais”, afirma Francisco Frazão, enfermeiro do Consultório na Rua da República.

thiago baba · FRANCISCO FRAZÃO

 Além do registro de vacinação feito pelos equipamentos sociais, os imunizados são inseridos no Vacivida, sistema de acompanhamento individualizado da vacinação no estado de São Paulo. Junto do cadastro, cada vacinado possui um comprovante de vacinação. Entretanto, a entrega ou não dele para o indivíduo depende de diversos fatores. “No caso, quem estava em equipamento social, a gente reteu esse comprovante para entregar na segunda dose. Muitos deles perdem tudo, então seguramos para maior segurança”, afirma Frazão.

A política com os comprovantes explicada por Frazão não é universal para todas as regiões e pessoas. Segundo André Contrucci, psicólogo e interlocutor do Consultório na Rua, na Secretaria de Saúde de São Paulo, cada território possui características específicas. Por exemplo, uma área pode ter maior concentração de pessoas que vão à UBS (Unidade Básica de Saúde) com frequência, enquanto outras já permanecem mais espalhadas. 

Também é considerada a avaliação individual de cada cidadão, relativo à sua própria independência. “Tem algumas equipes que retiveram a de alguns pacientes menos organizados, mas deram para alguns que estão mais organizados”, relata Contrucci, que ressalta o papel do Consultório na Rua de acolher quem precisa, mas também de estimular a autonomia de quem a possui. 

Contrucci também explica como funciona a diferenciação do plano de vacinação para os moradores que estão em Centros de Acolhida e para aqueles que ainda se encontram na rua, sem nenhum tipo de cadastro fixo em alguma instituição. Dentro deste público, que permanece fora dos centros, apenas os com mais de 60 anos estão sendo vacinados até agora. O psicólogo ressalta a priorização daqueles que estão em Centros de Acolhida devido ao maior foco de convívio e aglomeração nesses locais.

Sobre isso, o Padre Júlio Lancelotti concorda com a logística adotada pela Secretaria de Saúde de São Paulo em priorizar inicialmente os grandes centros e abrigos, e comenta o plano tardio de imunização no Brasil e especificamente para a população em situação de rua: “Foi a mesma demora do geral. Poderia ter começado há mais tempo, mas houve essa demora para todos, porque o governo federal não agilizou as compras pelo Ministério da Saúde”.  

De acordo com dados do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde, até outubro de 2021, foram vacinadas mais de 18 mil pessoas em situação de rua com 60 anos ou mais com as duas doses da vacina.

Editado por Nathalia Jesus.

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