O retrato da inflação no jornalismo - Revista Esquinas

O retrato da inflação no jornalismo

Por Ananda Miranda, Caroline Prado, Fernanda de Andrade, Isabelli Aquino, Lorena Oliveira, Luiza Lopes e Mariana Rossi : janeiro 20, 2022

“Não é só um movimento que parte do jornal para o leitor, vem do mercado para o jornal”, defende o jornalista Julio Wiziack sobre a cobertura da inflação pela mídia

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A alta inflação voltou a assombrar o país. Apesar de não ser nenhuma novidade na história recente do Brasil, o assunto já corre às ruas, agita as redes sociais, afeta a política, o bolso e também – como não poderia deixar de ser – pauta a imprensa.

“A inflação é uma elevação generalizada de preços”, explica José Carlos Santos, economista e professor da Faculdade de Economia e Administração da USP (FEA), “e este aumento é contínuo ao longo do tempo”.

De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) em breve vai voltar a alcançar dois dígitos – o que não acontecia desde fevereiro de 2016. Na prática, isso quer dizer que o poder de compra do brasileiro diminuiu e ficou mais caro para a população adquirir os mesmos produtos e serviços de antes.

“As causas da inflação são várias, não tem só um determinado motivo. Podem ser custos aumentando nas empresas, indexação generalizada da economia, inflação por pressões de demanda. Qualquer que seja o motivo, a inflação é sancionada por um aumento de volume de moeda na economia”, esclarece o professor.

Possíveis motivos da alta da inflação

Para ele, o processo atual de inflação tem vários motivos, mas em grande parte é motivado pela elevação das taxas de câmbio (quantos reais você precisa pra comprar um dólar). Com isso, os produtores que utilizam insumos importados têm elevação de seus custos, que são repassados para toda a cadeia de produção. Além disso, a subida da taxa de câmbio faz com que os preços internos dos produtos que têm produção negociada no mercado internacional também subam: “Se você não tiver essa equivalência, ninguém vai vender aqui dentro”, completa.

Rodrigo Goyena, cientista político e professor de História na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP (FFLCH), atribui parte da responsabilidade à administração política: “O governo, evidentemente, tem responsabilidade franca no processo inflacionário que vivemos, mas é claro que a dinâmica da economia internacional também afeta”.

Goyena conclui: “É uma responsabilidade compartilhada [entre a atuação do governo e a economia internacional] e é claro que depende do caso a caso para ver quem tem mais responsabilidade, por assim dizer, no aumento da taxa de inflação”.

A situação se torna mais delicada considerando a alta taxa de desempregados e desalentados do país e a redução da classe média gerada pela crise durante a pandemia. Por tudo isso, a inflação tem ocupado as capas dos jornais e as telas dos smartphones.

Contexto histórico

Há mais de 30 anos, em 1985, o clima no país era de incerteza. Após a redemocratização, o então primeiro governante civil carregava consigo um cenário de crise e tentativa de manejar os erros do passado recente, como o aumento dos gastos públicos e da dívida externa.

A inflação tomou proporções absurdas nos governos que sucederam a ditadura. A chamada “hiperinflação”, ou seja, a inflação elevadíssima e sem controle, gerou uma alta generalizada e contínua dos preços, provocando recessão econômica, desvalorização acentuada da moeda e corrosão do poder de compra do consumidor.

No Brasil, foram cerca de 15 anos de inflação acima de dois dígitos e de correção monetária. De acordo com dados da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), entre 1980 e 1989 a inflação média no país foi de 233,5% ao ano. Já entre os anos de 1990 e 1999, a variação anual subiu para 499,2%.

O jornalista de economia e negócios da Folha de São Paulo, Julio Wiziack, de 48 anos, em entrevista para ESQUINAS, conta: “Me lembro de algumas imagens da minha pré-adolescência, era uma loucura. Eu lembro que as caixas estavam todas abertas no mercado e os caras não paravam de colocar aquele selinho. Eles ficavam lá etiquetando, eram milhares de etiquetas, três remarcações ao dia. O repasse era mais do que automático”.

As causas da hiperinflação, porém, não são completamente restritas a motivos nacionais. Para sobreviver a isso, as pessoas buscavam diferentes maneiras de administrar o dinheiro. Wiziack conta que “o país vivia de rentista; tinha o tal de overnight, uma modalidade de investimento que compensava a perda inflacionária. O Brasil não tinha poupança, todo mundo era rentista, eram só aplicações pra você realmente evitar a perda inflacionária; o país não crescia porque é impossível você ter algum tipo de investimento numa situação como essa”.

Foi apenas em 1994, com o estabelecimento do Plano Real, programa econômico implantado no governo Itamar Franco, que a hiperinflação passou a diminuir. Para o historiador: “com o Plano Real houve uma estabilização monetária muito expressiva e de alguma forma conseguimos varrer um pouco aqueles traumas que nacionalmente tínhamos”.

Goyena, porém, acrescenta que o trauma como tal não persiste, inclusive as novas gerações, se não por ouvir falar, não têm total ciência do que foi a hiperinflação da década de 90 e 80. Isso, por outro lado. não significa que não devemos ter absoluta atenção e cuidado com o cenário atual. O processo inflacionário, se não controlado, descamba muito rapidamente.

Público x mídia

Aqueles que acompanham as notícias da atualidade, seja em qualquer canal de comunicação, sabem que quando nos referimos à inflação e desemprego a situação do país se encontra cada vez mais instável.

Em um cenário como este, “existe uma enorme má vontade ou a imprensa em geral usa os aspectos ruins do governo para serem ressaltados. Há aspectos ruins de monte, mas também há coisas boas sendo feitas. As coisas boas em geral são escondidas ou são minimizadas”, afirma o professor de economia da USP. A repercussão do público através das redes sociais mostra a indignação com os atuais índices de inflação apontados pelas mídias em geral.

Uma das matérias que chamou bastante atenção dos telespectadores foi publicada pelo portal Metrópoles. Ela se referia a algumas citações feitas pelo atual presidente da república, Jair Bolsonaro (sem partido), em relação à inflação, mais especificamente, sobre o aumento absurdo do preço dos alimentos.

Fonte: Metrópoles

Como já esperado, a repercussão dessa matéria nas redes sociais, em especial no Twitter, foi gigantesca ao ser exposta por um youtuber famoso. Em consequência disso, vários comentários negativos a respeito da fala do presidente foram deixados na publicação, além de diversas outras manifestações negativas em outras redes sociais.

Uma pesquisa do Datafolha aponta que para 69% dos brasileiros a situação econômica do país piorou nos últimos meses, para 20% a situação se manteve e 11% apontou que houveram melhorias. Com uma grande parcela da população brasileira julgando que a economia do país tem piorado, os índices estão cada vez mais próximos de todos os patamares já registrados ao abordar essa questão.

Na mesma pesquisa, o Datafolha mostra que mesmo entre os apoiadores do governo as opiniões negativas prevaleceram: para 31%, a economia melhorou, e, para 36%, piorou. Para os 32%, permaneceu como estava. Também houve piora no cenário econômico para 74% das mulheres e 62% dos homens.

Em relação à inflação e ao desemprego, houve um questionamento sobre o presidente Jair Bolsonaro ter responsabilidade ou não na alta da inflação: 41% dos entrevistados responderam que ele tem muita responsabilidade, 34% que tem um pouco e 23% que não tem nenhuma responsabilidade. Uma parcela de 2% não foi capaz de opinar.

As expectativas dos entrevistados para os próximos meses são de que daqui para frente a inflação:

  • Vai aumentar: 69%
  • Vai diminuir: 12%
  • Vai ficar como está: 15%
  • Não sabe: 3%

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Afinal, qual o papel da mídia nesse cenário econômico que estamos vivendo?

Criatividade na cozinha: veja 5 formas de substituir a carne pelo ovo sem cair na mesmice” ou “Uso de ventilador gera economia de 80% em relação ao ar-condicionado”, ambas do Jornal O Globo, são notícias que têm sido frequentes nos últimos tempos, diante do aumento da inflação e dos preços. De acordo com o professor, José Carlos, “essa é uma forma boa [de se noticiar]. A teoria econômica nos ensina o seguinte: as pessoas, até as empresas, escolhem o que vão consumir a partir de preços. Mas não são só preços, nós temos hábitos também, e é difícil sair deles”.

A atual redução do poder de compra traz o aumento do consumo de outros alimentos mais baratos ou que estão fora de época, criando uma resposta sistêmica ao aumento dos preços, como o caso da substituição da carne pelo ovo. Julio Wiziack explica: “Isso não é só um movimento que parte do jornal para o leitor, é também um movimento que vem do mercado para o jornal. Se o jornal fez essa matéria é porque o consumo de ovo disparou diante da alta da carne”.

“Se vocês puderem ensinar a população, como agentes da imprensa, a consumir de maneira inteligente, comprando aquilo que é mais barato, vocês estão fazendo um procedimento interessante e bom para a sociedade”.

– José Carlos Santos, professor da FEA-USP.

Em contraponto, o historiador Rodrigo Goyena diz que matérias como “Luz natural é jeitinho para economizar energia durante crise” são conselhos que “evidentemente podem servir e de fato servem muitas vezes na economia doméstica, mas falam pouco dos porquês de estarmos nessa situação. Há pouca compreensão e ciência do que é isso [a inflação], no sentido de onde vem e o porquê nos encontramos novamente numa alta inflacionária”. Para ele, a imprensa deveria atuar mais no processo de compreensão popular das dinâmicas econômicas, ao invés de dar conselhos que acabam transformando a macroeconomia numa economia doméstica.

Como é a repercussão do público na redação?

Wiziack conta que a opinião pública não altera muito o trabalho feito na área: “Sendo bastante sincero, acho que a gente não se preocupa com isso. A gente tem que fazer o trabalho”, além de citar dificuldade de dissociar a política da economia, principalmente quando se cobre esse assunto na capital do país, Brasília.

O jornalista relata que como ele e seus colegas de profissão tendem a fazer trabalhos mais voltados para a política econômica, não é corriqueiro o acesso às matérias de serviço, fazendo com que tenham sempre uma visão mais crítica sobre como a política afeta a economia. Além disso, a região em que as matérias são publicadas também devem ser levadas em consideração; em Brasília tem um foco maior na área da economia e política econômica e em São Paulo é possível notar um crescente número de publicações de matérias de serviço e o impacto disso no mercado financeiro.

Wiziack ainda comenta sobre o efeito da contagem regressiva para as eleições presidenciais do ano que vem e como ela acirra ainda mais esse assunto: “Especialmente no momento de disputa eleitoral essa questão política fervilha. Começa a ter mais ataques contra o [Ministro da Economia, Paulo] Guedes, contra a política dele, contra o presidente, essas divergências que existem entre o interesse político e econômico, porque isso desgasta a imagem do presidente”.

A relação entre a mídia e o governo

Wiziack não acredita que há diferença de tratamento da imprensa aos diferentes governos. “Eu acho que tem sido igual. Em relação ao governo Bolsonaro, nunca a relação entre a imprensa e o governo foi tão ruim. Ela também foi ruim no governo do PT, a imprensa no primeiro governo foi meio que paz e amor, que era o lema da campanha do Lula, mas logo começaram as primeiras críticas e o governo do PT. O governo do Lula surfou num momento econômico muito melhor do que o da Dilma”.

De acordo com o economista Santos, a imprensa em geral era mais tolerável com os erros do governo Dilma do que em comparação ao governo Bolsonaro. Goyena acrescenta: “Durante o governo Dilma podemos dizer que a grande imprensa adotou uma posição muito ríspida  em relação a Dilma, mas agora faz igualmente, se não ainda de forma mais agressiva, com o Bolsonaro”.

O professor também ressaltou um ponto importante referente à mídia e à inflação. “Não costuma ser exceção a imprensa mobilizar a inflação como mecanismo de agitação político social para derrubar um governo, como aconteceu com a Dilma em 2016. A grande imprensa foi muito contrária à permanência da Dilma no poder e fez relações, nem sempre muito justas, entre o cenário econômico e a pressão para o impeachment, e agora de uma forma ou outra, é isso que nas entrelinhas vem surgindo também.”

Futuro, economia e eleições

Segundo o professor de economia José Carlos Santos, o ambiente econômico está melhor, entretanto, não do modo que esperava. “Para o ano de 2021 nós estamos esperando um crescimento da ordem de 5% do país, que é um bom crescimento e recupera em grande parte a queda que tivemos em 2020”.

Para ele, com as empresas voltando a produção, estamos voltando à normalidade. “Aquilo que aconteceu de ruim com relação ao produto, que foi uma queda de 4%, ela vai ser em parte recuperada agora”. O professor ainda diz que a inflação exacerbada é um dos únicos fatores atuais negativos, mas que com os aumentos das taxas de juros, poderá ser estabilizada até o final do ano.

Em contraponto, o jornalista Wiziack acredita que 2022 será um ano difícil do ponto de vista econômico. “O governo vem falando ‘ah a economia tá crescendo’, sim, mas ela está deprimida. A gente perdeu 5% do PIB ano passado, então crescer 5 ou crescer 6 é empatar em zero, é voltar ao patamar que estava lá atrás”.

Ele afirma que a pandemia pesa mais nesse momento do que a questão econômica, mas alerta que as medidas serão trocadas a partir do próximo ano. “A gente já tá vendo a sinalização de que vai haver alta de inflação, de juros. Para quem investe, isso é ótimo, mas para quem produz isso não é bom. Espero que os efeitos dessa pandemia em 2022 sejam menores. Tendo a achar que esse problema será um pouco menor, mas a economia vai ser um problema pior para o Bolsonaro”.

Quanto às críticas ao atual presidente, Jair Bolsonaro, e às perspectivas futuras diante da atual gestão econômica do governo, Wiziack relata: “Eu me lembro que duas coisas levaram a derrota do Fernando Henrique Cardoso, o apagão e a inflação, que são dois fatores primordiais na perda de popularidade de um presidente. Acho que isso vai erodir ainda mais a popularidade do Bolsonaro. A pandemia causou um estrago bastante grande não só pelo efeito econômico dela em si, mas pela forma como o Bolsonaro e o governo conduziram o combate à pandemia. Esse estrago é irreversível, está na conta dele e continuará”.

Do mesmo modo, Santos também opinou sobre a questão: “Não sei se Bolsonaro consegue se recuperar desse desgaste político que ele está vivendo agora. Ninguém que vira presidente da república pode ser classificado como ingênuo ou bobo. Ele deve estar vendo tudo o que está acontecendo e deve ter algum tipo de carta no bolso do colete. Da mesma forma que os oponentes dele, todos estão querendo aparecer como uma terceira via. Nos últimos anos você sempre teve uma polarização, agora estão querendo entrar três forças políticas: Lula, Bolsonaro e uma terceira via. A terceira via ainda não se apresentou, vamos esperar para ver”.

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