Profissionais de destaque na pediatria discutem as principais dificuldades e tendências do setor, além das possíveis melhorias para o sistema de saúde brasileiro
O cenário da pediatria brasileira passa por dificuldades. A falta de leitos e investimentos ameaça o bom funcionamento deste setor, o que prejudica não só os pacientes, mas também os profissionais da área. Por isso, não é incomum enfermeiros e médicos, sem alternativas, serem obrigados a improvisar nos atendimentos para dar conta da demanda. É o que conta Anna Clara – mestre em Ciências aplicadas à Pediatria pela Unifesp – quando trabalhava em um hospital da rede privada em São Paulo:
“Eu tinha uma emergência com dez crianças internadas em cadeiras de plástico porque todos os leitos estavam ocupados, além da sala de emergência, e você não tinha mais onde colocar o paciente.”
Em 2022, o sistema do Ministério da Saúde (CNES) divulgou que cerca de 18.300 leitos pediátricos foram fechados nos últimos 17 anos, representando uma queda de 25,6% no número de vagas hospitalares infantis.
Os hospitais projetados para receber crianças são bem escassos. No país, só há dois hospitais 100% pediátricos: o Hospital Infantil Sabará, em São Paulo, e o Hospital Pequeno Príncipe, em Curitiba.
Rentabilidade: setor público e setor privado
O Dr. José Luiz Egydio Setúbal, presidente do Hospital Sabará – referência em pediatria no Brasil – comenta a questão da baixa rentabilidade da pediatria, um dos fatores que ajudam a explicar a falta de financiamento no setor.
“A solução do sistema privado é sempre econômica. O setor investe onde tem retorno financeiro. Em pediatria, pouca gente investe porque o retorno financeiro é muito menor do que de um adulto. Uma das razões é demográfica: ‘por que que eu vou investir em pediatria se a população está envelhecendo?”
Para Setúbal, no setor público, a lógica não deveria ser econômica, mas sim estar de acordo com a necessidade de demanda. Apesar do Sabará prestar atendimento somente à rede suplementar, a saúde pública continua sendo uma prioridade para a instituição.
“No nosso modelo de governança da fundação, o hospital entra como gerador de recursos para projetos sociais em saúde da criança e do adolescente. Está nos nossos planos eventualmente fazer cirurgias ou atendimento para o SUS, mas em áreas específicas.”
O Dr. Donizetti Giamberardino, Diretor-técnico do Hospital Pequeno Príncipe, também se mostra preocupado com a questão do acesso na pediatria e defende uma intervenção do Estado no sentido do financiamento. Para ele, a saúde brasileira atende à uma lógica de mercado, o que vai contra a universalidade do SUS.
“Infelizmente, nos dias de hoje, 75% das crianças brasileiras que vão ao sistema público tem pouco acesso ao pediatra. E 25% que possuem plano suplementar tem acesso ao pediatra. Isso agride a nossa Constituição de uma forma horrorosa.”
Segundo Donizetti, o valor arrecadado pelo serviço prestado atualmente, na pediatria, é inferior às despesas, fazendo com que, em situações de alto risco operacional, os leitos pediátricos sejam os primeiros a fechar. O diretor-técnico ainda afirma que, por conta desse cenário, existem dificuldades de acesso ao pediatra nas Unidades de Pronto Atendimento (UPAs).
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Desafios e melhorias: o cenário da pediatria atual
O Dr. Edson Liberal, primeiro Vice-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria, também descreve um cenário desafiador do setor.
“Nós hoje precisamos ter muito mais leitos de UTI pediátrica, pois existe um déficit. Não há estado ou cidade no Brasil que não tenha déficit de UTI pediátrica: pacientes que aguardam internação ficam esperando no setor de emergência em condições muito ruins de acompanhamento por falta de leito pediátrico.”
Apesar das dificuldades, o Dr. Edson também aponta as melhorias na pediatria. O Vice-presidente afirma que as internações pediátricas exigem mais gastos do que antigamente, pois as investigações clínicas estão mais caras, assim como os exames e procedimentos. No entanto, segundo ele, houve melhorias nos cuidados de saúde e na medicina diagnóstica, o que foi essencial para aprimorar os tratamentos.
Junto com a precarização do tratamento pediátrico no Brasil, ocorre a desvalorização do profissional de pediatria, problema que é agravado pelas disparidades geográficas no país. Segundo Fátima Pinho, especialista em governança hospitalar, a mão de obra especializada não está dividida de maneira igualitária, resultando em uma concentração de profissionais nas metrópoles brasileiras. José Luiz Setúbal ainda somatiza a essa problemática a questão da falta de planejamento público da saúde brasileira.
“No Brasil, o setor público do sistema de saúde está muito desorganizado. As demandas são feitas via emendas parlamentares. Então os deputados pegam as verbas do Ministério da Saúde e fazem uma emenda. Não existe uma política pública organizada.”
Pediatria: futuro e soluções
Apesar do contexto desafiador, Fátima pensa em soluções como uma reestruturação do sistema de saúde, juntamente com o fortalecimento da atenção primária na pediatria. Assim, evitando a saturação das atenções secundárias e terciárias, como UPAs e hospitais, respectivamente.
“Nós precisamos dar mais acesso de forma ampla, independentemente de definir os mundos público ou privado. Esse acesso não pode ser de uma forma com que a criança chegue somente para tratar a “bola de neve” que já se encontra no seu quadro de saúde. Nosso sistema de saúde precisa ser transformado e mudado desde a base.”
O Dr. Edson Liberal, que pensa de uma forma semelhante à Fátima, conta os esforços por parte da Sociedade Brasileira de Pediatria nessa reestruturação do sistema de saúde: “[…] a principal questão hoje está na atenção básica. Nós temos tentado trabalhar com as entidades. Estamos no início ainda de conversas com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde. Fizemos uma reunião, nossa Ministra da Saúde esteve na sede da Sociedade Brasileira de Pediatria, conversamos a respeito disso, ela se mostrou muito sensível a essa questão.”
O Dr. Donizetti Giamberardino também vê uma necessidade de reestruturação do nosso sistema de saúde. Pensando nisso, propõe a construção de uma pirâmide.
“É preciso – no norte do Brasil, por exemplo ou em outras regiões – que haja uma organização do sistema de saúde em que exista, primeiro, a atenção básica, com eficiência. Daí, é preciso ter acesso a exames complementares e a especialistas. E depois, é necessário que exista acesso a uma rede hospitalar, que pode ser simples ou complexa. É uma grande pirâmide que precisa ser organizada.”
O primeiro vice-presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria vê como necessário um rompimento com a lógica do gasto e faz um apelo para o futuro: “Temos que pensar – como norte – que estamos tratando com vidas. Na saúde, não existe gasto, existe investimento. Enquanto a gente pensar na saúde e na educação como gasto, o país não vai ter sua soberania.”
Donizetti também é firme ao declarar que só é possível que haja mais aberturas de leitos se houver uma cooperação do Estado. E, para isso, é necessária uma política de investimento na pediatria: “É preciso uma defesa da Criança e do Adolescente e atos de proteção pelo Estado porque investir na criança é investir no futuro”.