“Foram os piores dias da minha vida": Casal de médicos relata as aflições do período em que ficaram intubados com covid-19 - Revista Esquinas

“Foram os piores dias da minha vida”: Casal de médicos relata as aflições do período em que ficaram intubados com covid-19

Por Giulia Lozano : julho 15, 2021

Já recuperados, eles lembram momentos delicados em que estiveram perto da morte e afirmam ver a vida com outros olhos

No dia 26 de dezembro de 2020, o maior medo da pediatra Zuleid Linhares, isolada em sua casa e afastada do trabalho, até então, há mais de nove meses, tornou-se realidade: a covid-19 havia chegado ao seu lar, em São Paulo.

Seu marido, Rubens Mattar, também médico, testou positivo para a doença às vésperas do ano-novo. “Eu não tive medo quando ele se contaminou, tive pavor. Foi muito assustador, por mais que eu tentasse manter a calma, era impossível”, lembra a pediatra. Apesar da preocupação diante da contaminação, o casal, ambos com 64 anos, não imaginava que esse momento precederia uma luta pela sobrevivência que, para Zuleid, resultou em 26 dias de internação e, para Rubens, 45.

A internação de Rubens pela covid-19

Após cinco dias de isolamento domiciliar, fazendo acompanhamento diário via telemedicina com um infectologista, Rubens passou a apresentar sintomas mais graves, incluindo falta de ar, e precisou ser internado. “A sensação de ter voltado para casa sem ele foi a pior possível. Eu sabia que estava deixando uma pessoa que eu amo muito sozinha, quando ela mais precisava de mim. Eu chorei o tempo todo, cheguei em casa e me agarrei às roupas dele, chorando com medo de que ele não voltasse nunca mais”, lembra Zuleid. Três dias depois da internação, os médicos constataram que ele precisaria ser intubado e o aconselharam a ligar para a sua família e se despedir — padrão para pacientes de covid.

“Não tive medo. Eu sabia que poderia não retornar, mas estava confiante. Liguei para a minha família, os abençoei e pedi que rezassem por mim. Quando desliguei, falei para os médicos: ‘Estou pronto’”, conta Rubens. Para Zuleid e os filhos do casal, esse foi um momento de dor: “Ele nos ligou para dizer que seria intubado, eu e os meninos nos abraçamos para ouvir aquilo, e ele estendeu a mão num gesto de fazer o sinal da cruz e disse ‘Fiquem bem, vai dar tudo certo, eu preciso fazer isso’. Ele se comportou como um médico. Nós desabamos.”

No Brasil, em 2020, 80% das pessoas intubadas com covid-19 morreram. Essa estatística latejava na cabeça de Zuleid enquanto seu marido estava internado: “Apenas 20% dos que têm um quadro grave conseguem sobreviver. Meu sentimento era de total impotência e de confirmação de todo o medo que eu tinha dessa doença.”

O adoecimento e internação de Zuleid por covid

“Eu estava tão preocupada com o meu marido que não me atentei aos meus próprios sinais”. A pediatra testou seis vezes para o coronavírus. Todos os testes deram resultado negativo. Mesmo assim, ela começou a piorar, e foi levada ao hospital por seus filhos. Apenas lá ela testou positivo, em seu sétimo exame, e já se encontrava em estado grave.

Quando Zuleid chegou ao hospital, não havia leitos disponíveis para atendê-la, e ela foi alocada por uma noite no Pronto Atendimento. Seu quadro se agravou e a paciente precisou ser transferida para a UTI. Havia apenas uma vaga para três pacientes. “A escolha foi feita com base em quem estava mais grave. É até estranho dizer isso, mas, felizmente, eu era essa pessoa, e fui para a UTI. A partir desse momento, não me lembro de mais nada”, conta.

“Quando eu soube que a Zuleid foi internada, a sensação que eu tinha é que eu estava amarrada. Porque eu me sentia impotente, sofrendo por uma pessoa que estava longe, e eu tive que ser racional para não passar toda aquela insegurança para ela”, relembra Lídia Linhares, 59 anos, irmã de Zuleid.

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Período de intubação

Sedados, Rubens e Zuleid não tinham consciência das longas semanas de sofrimento que viveram seus amigos e familiares. Lídia mora em Goiânia; ela recebia, todos os dias, os boletins médicos de ambos e, atendendo ao pedido da irmã, repassava aos amigos via Facebook.

“Me lembro de um dia em que os dois estavam intubados, eles estavam muito mal. Eu estava tão desesperada que peguei o carro e fui andar sozinha pela cidade, e nessa minha solidão eu pude chorar tudo que eu tinha para chorar. E eu chorei tanto, eu gritei que eu precisava deles, que eu precisava que eles voltassem, que a vida não ia ter graça se eu perdesse aquelas duas pessoas que eu amo tanto. Essa é uma das lembranças mais tristes que eu tenho, eu estava apavorada com medo dos dois morrerem”, conta Lídia.

Apesar do sofrimento, ela diz que o apoio e contato constante com os amigos foi fundamental para que se sentisse acolhida e confortada nesse momento difícil.

A extubação

Rubens foi extubado uma semana antes de sua esposa. Sem notícias dela e sem contato com os familiares devido à perda de seu celular na UTI, ele foi informado por um médico sobre o estado de saúde de Zuleid. “Ele me contou que ela também estava internada e intubada, eu fiz perguntas técnicas e ele me disse que estavam tendo dificuldades de ventilação. Quando ele saiu do quarto, a emoção bateu e chorei de angústia”, conta.

“No dia 28 de janeiro, era o meu aniversário, e eu pedi a Deus a minha irmã de volta. Ela foi extubada um dia antes. Foi o melhor presente que já recebi”, lembra Lídia. Ela viveu um misto de emoções depois da extubação de ambos: “Eu estava esgotada mentalmente, mas ao mesmo tempo tão aliviada. Me deu uma sensação de missão cumprida”.

“Quando eu fui extubada, estava tudo extremamente confuso. Por uma coincidência, acordei no dia que começou o BBB, estava passando aquilo na televisão da UTI. Eu olhava e achava tudo aquilo muito estranho, eu não conseguia entender onde eu estava, não conseguia reconhecer o hospital, nada. Além disso, eu acordei sem nenhum movimento, nem o pescoço eu conseguia firmar, e foi uma sensação horrível”, recorda Zuleid.

Depois de alguns dias nesse estado de confusão mental, a médica lembra dos momentos seguintes, em que não conseguia entrar em contato com o marido, o que a deprimiu profundamente: “Eu pensei que o Rubens tinha morrido.” Por conta da degradação de sua saúde mental, a equipe médica adiantou sua alta para o quarto.

O reencontro de ambos, ocorrido alguns dias depois, ainda no hospital, foi uma “sensação de vitória” por Rubens e, para Zuleid, “uma das maiores alegrias da sua vida”.

Recuperação da covid e volta para casa  

“A volta para casa é muito boa. Você sente que está no seu lugar, no seu espaço, mesmo com todas as dificuldades”, diz Zuleid. O processo de recuperação da covid-19 é muito longo. O casal precisou, por pelo menos um mês, de cuidadores que os ajudassem a cumprir ações cotidianas. Também foi necessário reaprender a comer, andar, segurar o pescoço, engolir, ir ao banheiro sozinhos, entre outras coisas. Hoje, mais de 120 dias depois de terem se recuperado, eles ainda sentem algumas sequelas da doença, como cansaço e falta de ar após esforço físico.

A vida pós-covid

“Essa doença muda muito o sentimento que a gente tem em relação à vida, como qualquer outra que te deixa prestes a morrer. Você valoriza pequenas coisas: conseguir segurar o pescoço, ir ao banheiro sozinha, tomar banho, comer, tudo isso é fundamental, e a gente vê o valor quando estamos perto de perder”, pontua Zuleid.

Recuperados da covid-19 e, agora, vacinados, Rubens e Zuleid estão mais tranquilos. Zuleid voltou a atender parcialmente de forma presencial, mas continua tomando todos os cuidados que vinha tendo há mais de um ano. “Para mim, não mudou nada. Eu continuo tendo os mesmos cuidados, ainda estamos na pandemia, continuo fazendo compras pela internet, sem sair para lugar nenhum. Se eu não tivesse sido vacinada, eu não teria voltado ao trabalho, eu voltei com essa condição. Até que 70% da população esteja vacinada, não temos o direito de expor a vida de ninguém.”

O casal se diz pessimista quanto ao futuro próximo do cenário sanitário no Brasil. Críticos ao governo federal, eles dizem não ver uma solução a curto prazo, diante de tanto negacionismo e desvalorização da ciência.

“No dia 25 de março do ano passado, eu escrevi um texto no Facebook falando para as pessoas que nós estávamos vivendo a Terceira Guerra, e que nessa guerra não teríamos vencedores. É o que eu penso, nós estamos numa guerra sem vencedores, somos todos perdedores. Quando essa pandemia terminar, muitos já terão perdido”, finaliza Zuleid.

Editado por Fernanda de Almeida.

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