Perda de paladar e olfato afetam de 65% a 95% dos pacientes com o vírus; para alguns, os sintomas se recusam a ir embora e deixam sequelas
“Passava perfume no punho, levava ao nariz e não sentia nada. Achei que nunca mais fosse voltar a sentir cheiros”, relembra Leonam Gomes, de 32 anos, sobre seus primeiros sintomas de covid-19. Logo no início da pandemia no Brasil, em março de 2020, o advogado começou a sentir dores na face e moleza no corpo, mas o desespero veio alguns dias depois, quando ele se deparou com a perda total do olfato. Na época, pouco se sabia sobre a doença. Ao longo dos meses, conforme os casos avançavam pelo mundo, cientistas e pesquisadores da área da saúde verificaram que a anosmia — perda parcial ou total do olfato — tem de fato uma relação direta com a infecção pelo novo coronavírus sendo uma das sequelas da doença.
“O vírus Sars-CoV-2 entra em contato com receptores da Enzima Conversora da Angiotensina 2, presentes na mucosa olfatória. A partir disso, ocorre um intenso processo inflamatório que dificulta a ação dos receptores do olfato”, explica Fabio Pinna, doutor em Otorrinolaringologia pela USP e Coordenador da Pesquisa de Olfato e Degustação do Hospital das Clínicas.
Na maioria dos casos, o sintoma vem acompanhado da ageusia — perda completa da sensibilidade do paladar. E também da parosmia, distorção de cheiros causada pelo crescimento de nervos danificados pela anosmia que tornam o cérebro incapaz de identificar corretamente o que recebe.
“A Coca-Cola ficou com gosto de sabão em pó”
Segundo Fabio, as sequelas acometem de 65% a 95% dos infectados pelo vírus, e não são surpresa. Esses quadros já eram normalmente associados a resfriados, sinusites e lesões na cabeça antes de o coronavírus surgir. Porém, para muitas pessoas que testaram positivo para a doença, os sintomas se recusam a ir embora rapidamente, gerando um cenário de incertezas e dúvidas.
De acordo com estudos do Hospital das Clínicas, cerca de 5% dos pacientes infectados não recuperaram o olfato em um período médio de quatro meses. Leonam, por exemplo, voltou a sentir alguns cheiros e sabores após duas semanas dos primeiros sintomas. Mas mesmo depois de seis meses da infecção, ele faz parte da porcentagem dos que ainda vivem com sequelas da doença. “Sempre adorei tomar refrigerante, mas após a covid-19 deixei de comprar, porque o sabor é insuportável. A Coca-Cola ficou com gosto de sabão em pó. O frango às vezes tem um gosto de sebo. Passei por alguns médicos, mas ninguém soube ao certo por que isso ocorre, apenas dizem que é um sintoma da doença.”
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“Pasta de dente é como se fosse ferrugem”
O médico explica que a diferença do tempo de recuperação total entre pacientes está possivelmente relacionada ao grau de inflamação causada pelo SARS-CoV-2 e ao histórico de inflamações prévias em cada organismo. Porém, ainda é cedo para afirmar com convicção por que algumas pessoas se recuperam mais rapidamente, enquanto outras — mesmo depois de curadas — ainda sofrem com as alterações dos sentidos.
Everaldo Filho, 33 anos, teve dentro de casa um exemplo claro da irregularidade de recuperação da covid-19. Todos os seus parentes próximos foram infectados: esposa, filho, irmão, pai, avó, tias e primos. Pelo menos metade deles também teve a perda de paladar como um forte sintoma da doença, mas retomaram os sentidos em no máximo 30 dias.
Já Everaldo vive uma realidade distinta desde maio, quando contraiu o coronavírus e os primeiros sintomas apareceram. “Comecei a sentir cheiro de roupa queimada e não conseguia distinguir o que estava acontecendo. No começo da noite, fui tomar café e não senti mais o sabor de absolutamente nada. É como se você estivesse tomando água. Você sente a textura do alimento e não sente o sabor”, conta.
Depois de duas semanas, as dores, a febre e a forte falta de ar foram embora, e restou essa nova e angustiante relação com os sabores e cheiros ao seu redor. “Pasta de dente é como se fosse ferrugem. Café eu sinto um gosto de barro. Pizza, massas no geral, não sinto mais o sabor. Não consigo mais tomar refrigerante, tem gosto de sangue. Aí é complicado.”
O maior medo do recifense é de não conseguir reverter essas sequelas, já que diversas comidas que perderam o sabor representavam algo prazeroso em sua vida. “Eu não sei se isso vai ser reversível, eu fico até com medo, porque são coisas que eu adoro consumir, como o café”, desabafa.
“Existe uma vida antes e pós covid”
Em um contexto ainda incerto e desconhecido da doença, Fabio destaca que alguns casos podem precisar de acompanhamento profissional, já que a intensidade dos sintomas não está de acordo com as expectativas dos médicos. “Na maioria das vezes a perda [de olfato e paladar] é reversível. No entanto, percebemos uma taxa de não recuperação acima da média de outros quadros virais que já conhecíamos. A partir de 14 a 30 dias do início dos sintomas, se não houver melhora, a ideia é procurar um otorrino para começar o tratamento o mais precoce possível”, diz.
Na busca por um reencontro com suas comidas favoritas, Everaldo já foi atrás de um tratamento, mas o pesadelo ainda parece não estar próximo do fim. “O médico me falou que eu teria que exercitar esse paladar. Tomar suco de limão, água com açúcar, alguma coisa amarga. Tudo isso para retreiná-lo. Mas eu fiz tudo e até hoje nada.”
Leonam concorda que a incerteza piora a situação, gerando desespero por achar que nunca mais será possível sentir cheiros e sabores novamente. Ele também destaca o impacto negativo da desinformação sobre o assunto, já que, principalmente no início da pandemia, essas não eram sequelas muito comentadas. “Não sabia que a perda do olfato e do paladar eram sintomas até que vi uma reportagem sobre isso”, lembra.
Everaldo afirma, ainda, que até hoje muitas pessoas não sabem dessas informações e se surpreendem quando ouvem seus relatos. “Muita gente teve essa perda de paladar por aqui e não relaciona. Quando eu conto, eles percebem que podem ter tido covid também.”
Muitos descobrem uma possível infecção assim, na conversa, mas para Everaldo e Leonam não há dúvidas. O coronavírus passou deixando marcas que custam a ir embora. Com o cardápio alterado e a esperança de recuperação, o recifense destaca a relevância da covid-19 na realidade dos que testaram positivo: “É uma doença complicada, cada dia um sintoma diferente. Existe uma vida antes e pós covid”.
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