Com a rápida popularização do vape, veja três histórias sobre o consumo de cigarro eletrônico entre jovens no Brasil
São raríssimas as indústrias que não têm que enfrentar um processo de adaptação com vistas à manutenção ou avanço do seu público consumidor. O caso da indústria do cigarro não foge à regra. O atual processo de repaginação desse mercado passa, especialmente, pelo cigarro eletrônico, conhecido como vape.
“A indústria se aproveita da tecnologia, utilizando aromas, sabores e fragrâncias com nomes interessantes. Para o jovem, o cigarro sem cheiro se torna mais interessante, permitindo que se fume em qualquer ambiente sem nem serem notados. Por consequência, nem mesmo os pais conseguem identificar o vício”, afirma a pneumologista pediátrica Yuly Valencia.
Marco, 18 anos
“A gente tem a sensação de que não vai fazer tão mal.”
“Sempre tive até algum nojo do cigarro, do seu cheiro forte e de toda aquela toxicidade”, conta Marco, nome fictício dado a um entrevistado que pediu anonimato a ESQUINAS.
Numa linha de arrependimento por ter adotado o vape, mas não vitimista, Marco, de 18 anos, criticou profundamente as estratégias industriais voltadas a atrair os jovens. Segundo ele, a sua “irresponsabilidade e imaturidade” o fizeram usar vape. Agora, diz, praticamente não há “chance de voltar atrás”.
Marco vem de uma família com diversos membros que fumam, cujo hábito nunca apoiou. Foi a influência de amigos que determinou o começo da sua jornada como fumante.
“A gente tem a sensação de que não vai fazer tão mal ou que, por achar que é mais fraco do que o cigarro, não vai gerar problema nenhum. Toda aquela atmosfera tropical dos anúncios, as cores pujantes, enfim, tudo aquilo constitui uma grande ilusão de que, na verdade, você não está ingerindo nada de muito prejudicial”, afirma Marco.
Bianca, 20 anos
“Me arrependo amargamente de ter fumado isso.”
Bianca Sanchez, de 20 anos, era uma entre tantos usuários do cigarro convencional que buscaram, por meio dos vapes, superá-lo. A jovem, que chegou a fechar uma parceria que lhe garantia o uso gratuito de diversos cigarros eletrônicos, passou a sofrer graves problemas em diversos locais do corpo e relata conviver, ainda, com sequelas decorrentes do tempo em que usou cigarro eletrônico.
“Eu fui parar na UTI (unidade de terapia intensiva) com a oxigenação em 83% (bem abaixo do considerado normal, acima de 95%). Tive três inflamações, uma no rim, outra no pulmão, e a outra urinária”, conta Bianca – “Uso bombinha de asma. Tenho que ter uma bolsa, uma no meu quarto, uma no meu trabalho e uma reserva. A minha voz nunca mais foi a mesma. Me arrependo amargamente de ter fumado isso.”
Felipe, 20 anos
“O vape baixa a pressão, dá uma acalmada.”
Um contraponto ao relato de Bianca é o caso de Felipe Leme, 20 anos, um jovem que não tem o interesse de largar o cigarro eletrônico. Felipe começou a fumar cigarro normal para só depois ver chegar ao vape. “Eu não me interessei tanto. Era uma coisa só de final de semana e tal, mas eu tinha um acesso muito mais fácil. Não era algo caro”, afirma.
Ele diz saber do ônus, mas “prefere” considerar o “bônus” que o vape lhe traz. “Sempre que estou fumando bastante cigarro eletrônico, tenho umas dores de ouvido, umas tosse fortes, inclusive nessa hora que eu dou uma diminuída, uma parada. Mas baixa a pressão, dá uma acalmada, tira um pouco da ansiedade, do meu estresse. E completa: “Depois de praticar um esporte também é gostoso, dá uma tragada, uma cigarrada, dá uma legal, abre os pulmões”.
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Sinais do vício
O médico psiquiatra Cirilo Tissot, especialista no tratamento de compulsões por drogas químicas, explica como funciona a formação do vício. De acordo com ele, a percepção de que alguém está dependente do cigarro eletrônico se dá, primeiramente, pelo grau de distanciamento que a pessoa pode ter ou não do produto. “Uma pessoa dependente fica muito desesperada se deixa o cigarro eletrônico longe. Ela tem de recarregá-lo, às vezes comprar mais de um, deixá-los em diversos lugares”, diz.
Tissot esclarece que certos grupos de pessoas são mais propensas ao vício. Um exemplo são as ansiosas e imediatistas, além de indivíduos curiosos, que querem sempre experimentar o “novo” ou novas sensações.
Mas o alerta da Organização Mundial da Saúde (OMS) é claro: os cigarros eletrônicos contêm nicotina e outras substâncias nocivas, como álcool benzílico, benzaldeído, vanilina, acroleína, diacetil, tetrahidrocanabinol, que podem acarretar doenças cardíacas, pulmonares, dermatológicas e até câncer.
“O tabagismo, em qualquer nível, é um mecanismo de agressão às vias aéreas e pulmonares. Com a modernidade e o novo dispositivo para fumo, pela composição química mais agressiva, gera um aumento [na incidência de casos em consultórios] de doenças pulmonares, principalmente as pneumonites mais graves, com internações”, acrescenta o pneumologista.
Caminho para o cigarro tradicional
Segundo estudo conduzido pela Escola Paulista de Medicina da Unifesp, publicado em maio de 2022, a iniciação da forma como ocorreu com Marco se dá pela “necessidade” de inserção no grupo. Além disso, mostra que o uso do vape aumenta em três vezes o risco de experimentação do cigarro convencional. Nas palavras do conhecido médico Drauzio Varella, em seu blog dedicado a dicas de saúde, o cigarro eletrônico pode causar “danos ao organismo semelhantes aos do cigarro comum, como inflamação, lesão celular e alteração no funcionamento cerebral”, ao passo que, equivocadamente, é apresentado como algo menos prejudicial ou “mais leve” em comparação ao fumo clássico.