"Zé Gotinha resolveria mais do que colocar número de mortes": intensivista que desenvolveu burnout na pandemia descreve o trabalho na UTI - Revista Esquinas

“Zé Gotinha resolveria mais do que colocar número de mortes”: intensivista que desenvolveu burnout na pandemia descreve o trabalho na UTI

Por Isabelle Valerio Aradzenka, Luisa Cardoso e Melissa Coelho : novembro 17, 2021

Profissionais da saúde em meio a pacientes internados durante a pandemia de covid-19. Foto: Jannes Jacobs / Unsplash

Sylvia Cristine de Avelar Bottentuit, formada pela UFMA, desenvolveu Síndrome de Burnout durante a pandemia e precisou se afastar do trabalho na linha de frente

Cada segundo é decisivo. O tubo deve ser precisamente alocado, qualquer erro ordinário pode ser fatal. Para a ligeira satisfação da médica e do paciente que se encontram naquele ambiente nada aconchegante em meio à pandemia, o procedimento que a intensivista administra apenas com o auxílio de um fisioterapeuta no quarto da UTI é bem-sucedido.

A vítima está estável e o coração da profissional desacelera, mas Sylvia não goza de tempo para comemorar o sucesso: há outros pacientes que precisam de ajuda. Sem certeza de que o enfermo que acaba de socorrer respirará nos próximos sete dias – período médio de intubação para pacientes com covid –, a plantonista deixa-o aos cuidados das máquinas e segue com sua função no hospital.

É dessa forma que Sylvia Cristine de Avelar Bottentuit, de 60 anos, médica formada pela Universidade Federal do Maranhão com especialidade, entre outros ramos, em ginecologia e obstetrícia, se viu realizando praticamente sozinha um dos procedimentos mais delicados pelos quais um infectado pelo coronavírus pode passar: a intubação. Sylvia decidiu se afastar de sua ocupação na ginecologia para servir de apoio em São Luís, Maranhão, na UTI de combate à crise de infecções pelo coronavírus, iniciada no começo de 2020. Desde então, permaneceu, entre idas e vindas, na linha de frente.

A médica conta que, no início, foram contratados muitos profissionais devido à alta demanda. No entanto, muitos eram inexperientes e tinham medo de se aproximar dos pacientes. “Um dia, eu tive que intubar praticamente sozinha, eu ficava gritando para o profissional ‘vem aqui, me ajuda’ e ele respondia assustado ‘não, não tem capote (vestimenta hospitalar)’ e eu dizia ‘eu não tenho como esperar, eu vou intubar’, então ficamos só eu e o fisioterapeuta fazendo tudo”, relembra.

Com as substituições de medicamentos necessárias no pico da pandemia, a médica costuma dizer que os livros de farmacologia precisaram ser reescritos. “Às vezes, faltam medicamentos porque não tem onde comprar. O Fentanil (opioide indicado para dores), por exemplo, é o que mais falta, chega um estoque e logo acaba, então somos obrigados a aplicar substitutos que não têm o mesmo efeito”, ela explica.

Consequências da nova realidade

Sylvia, desde o início das atividades na UTI da covid, se viu em uma nova realidade que afetou não somente sua carreira, mas, também, sua vida pessoal. “Minha mãe era renal crônica, então passei mais de dois meses sem ver ela e minha tia. Também enfrentei muito estresse com meu filho, que ficou em casa e passou mal com toda aquela ansiedade de me ver saindo e contando sobre os casos”.

Jeferson Bottentuit, 27 anos e filho da médica, relata que, no início, a atuação de sua mãe na UTI também o afetou. “Era bem estressante, não conseguia dormir direito, ficava checando como estava a situação com ela. Ela sempre passava muito tempo no trabalho então não deu para sentir tanto em relação à ausência, o que mais mudou na rotina foi quanto aos cuidados. Quando ela chegava, ninguém podia estar perto até ela tomar um banho. Além disso, eu tinha preocupação bem excessiva, quando ia sair parecia que ia visitar Chernobyl, mas, com o tempo, a gente foi ficando meio dormente com todo esse contexto”.

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Durante o período em que Sylvia se voltou aos cuidados dos infectados da covid, além de enfrentar o estresse da linha de frente, a médica precisou deixar em segundo plano os tratamentos e os pacientes da sua área de atuação habitual: ginecologia e obstetrícia. “Na primeira onda, suspendemos os atendimentos por mais de dois meses. Foi triste demais porque, como eu trabalho no Hospital do Câncer, faço acompanhamento de tratamentos de câncer ginecológico, então tiveram pacientes que pioraram, que não fizeram procedimentos agendados e perderam o ano, já que até conseguir agendar novamente é complicado”.

Laura Avelar, 22, sobrinha de Sylvia, precisou realizar uma cirurgia de retirada de ovário e cisto ovariano durante a pandemia, no período em que a doutora se dedicava aos infectados pelo coronavírus. A médica, entretanto, decidiu acompanhar o procedimento da jovem enquanto ainda apoiava a linha de frente.“Se não tivesse a pandemia, eu poderia ter tido mais atenção focada na minha recuperação, mas entendo perfeitamente os compromissos que a Sylvia tinha. Apesar dos muitos empregos, ela esteve presente em todo o meu processo de recuperação”, relata Laura.

A jovem ainda ressalta o movimento constante que o Hospital e seus profissionais precisavam manter. “Desde os enfermeiros até aos médicos, todos foram bem focados. Até me recordo de uma das enfermeiras que passava a madrugada me medicando e, na última vez pela manhã, ela falou ‘agora eu vou para outro hospital’. Eu sabia, mas é muito duro escutar que eles estão virando de turno em turno para poder dar conta”.

Síndrome de Burnout

Pouco tempo após o início da nova rotina na linha frente, Sylvia desenvolveu Burnout – condição de estresse crônico com exaustão física e emocional, acompanhada de sentimentos de omissão de realização e eficiência – e, em julho de 2020, a profissional decidiu abandonar os serviços da linha de frente.

“Acabei tendo Burnout, por que nunca tinha me acontecido de sair de um plantão pensando quantos amanhã eu vou encontrar, ou então vendo um paciente que melhorou e saiu do tubo e durante a noite pensar ‘será que amanhã ele vai estar intubado novamente?’. Foi muito estressante todo esse percorrer, quando chegou julho, eu falei para mim mesma ‘eu vou ter que dar um tempo, pois está me abalando demais’”.

Após um breve período, Sylvia decidiu voltar a atuar no combate da linha de frente, entretanto, apenas na área de gerência. Hoje, em 2021, a médica coordena uma UTI com dez leitos, dando suporte aos profissionais que permanecem na rotina e controlando equipamentos e medicação. “Tem poucos intensivistas, então sempre tem o colega que diz ‘vem aqui dar um plantão’ e você acaba voltando, não tem como fugir”, diz.

A pandemia no Brasil

“Faço auditoria no maior hospital particular da cidade então eu tenho o reflexo dos hospitais públicos e privados. O que vejo é que hoje a idade das internações é bem menor. Na primeira onda, tinham muitos óbitos de idosos entre 70 e 90 anos. Hoje, a internação está entre 30 e 45 anos, jovens trabalhadores. Ainda vamos ver esse reflexo na economia” opina a profissional.

Apesar da situação que a crise de infecções por coronavírus gerou no país, a médica observa como isso produziu algumas mudanças positivas na organização hospitalar do Maranhão. “Uma vantagem é que praticamente não havia leitos de UTI no interior do estado. Hoje, quase todo interior com mais habitantes e uma estrutura hospitalar melhor já tem Unidade de Terapia Intensiva, o que acabou diminuindo o fluxo para a capital”.

Sylvia ressalta que a situação ainda é preocupante e acredita que houve uma falha na compreensão das informações. “A situação da pandemia ainda deve demorar, estamos com medo porque estão vindo novas cepas. A máscara caiu no cotidiano, mas usam sem efetividade. Se você não estiver trocando e lavando a máscara a cada três horas, ela não tem efetividade. Precisaríamos reforçar essas questões, mas explicando o porquê. A pessoa comum não liga para estatísticas, pois cai no descaso. Uma campanha do Zé Gotinha resolveria muito mais do que colocar todos os dias números de quantos morreram. Apavorar não vai adiantar, já vimos este ano todo que não muda o hábito”, finaliza.

Editado por Enzo Volpe

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