"Parecia guerra": fisioterapeutas relembram o cotidiano das UTIs no combate à covid-19 - Revista Esquinas

“Parecia guerra”: fisioterapeutas relembram o cotidiano das UTIs no combate à covid-19

Por Fabio Ferreira de Andrade, Juliana de Almeida Picanço e Larissa Akina Silva Kikuti : novembro 10, 2021

Profissionais do Hospital Israelita Oswaldo Cruz com plaquinhas para o paciente melhorar.

Profissionais da saúde falam sobre a rotina na linha de frente da pandemia e como a crise ajudou a ressignificar os processos da profissão

Dizem que os olhos são o espelho da alma. Atualmente, são também a principal forma forma de reconhecer os médicos, enfermeiros e fisioterapeutas das UTIs voltadas para o tratamento de infectados pelo vírus da covid-19. Além da fita crepe mal colada no peito com o nome e sobrenome do profissional que se esconde por baixo da balaclava, junto do óculos, face shield e uma máscara N-95, são os olhos fundos que refletem o cansaço e as noites mal dormidas daqueles que estão na linha de frente no combate ao novo coronavírus.

Assim tem sido o dia a dia dos grandes heróis da saúde, ou melhor, das heroínas, já que as mulheres são a maioria no momento. Segundo os dados do  Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), elas representam 70% dos mais de seis milhões de profissionais atuantes no setor público e privado de saúde. Eliane Zacarias, a Lia, e Marcia Tramontini, ambas de 51 anos, especialistas em fisioterapia respiratória, fazem parte dessa estatística.

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Marcia Tramontini, fisioterapeuta da linha de frente da Covid-19, com a roupa de proteção dos hospitais.
Acervo pessoal

O início da reinvenção das fisioterapeutas

Lia, que nunca saiu da área hospitalar em todos os seus 28 anos de carreira, quase teve que parar as atividades por fazer parte do grupo de risco. Obesa, diabética e hipertensa, ela tinha todos os maus prognósticos para a doença e podia se afastar da linha de frente, mas, se recusou. “Muita gente trouxe atestado médico de hipertensão, gente que já tinha 50 anos. Mas, eu não, eu falei: ‘eu quero sair da minha zona de conforto”’, disse ela, que vivia uma rotina “toda muito parecida” no hospital antes do vírus e que agora faz dos desafios uma motivação para continuar.

Já Marcia, que antes do início da pandemia tinha confirmado a baixa em seu CREFITO (órgão público que regula, orienta e fiscaliza o exercício profissional de fisioterapeutas e terapeutas ocupacionais), estava tendo uma nova experiência em sua profissão de corretora imobiliária. A fisioterapia sempre esteve em seu coração, mas a necessidade momentânea colocou os seus pés no chão: “Quando eu voltei para Campinas, com dois filhos pequenos, acabava que o valor da remuneração não batia, não fechava as contas, então acabei deixando a profissão”, conta.

Demorou nove anos para tudo mudar, a pandemia acendeu a chama apagada há tempos, a visão de Marcia frente às reportagens da televisão não era a mesma – assim como o mundo não era mais o mesmo. “Começou a aparecer aquele monte de reportagem na televisão, um monte de vídeos, de imagens de dentro do hospital, de fisioterapeutas atuando dentro da UTI. Eu não me aguentei, precisava reativar o meu CREFITO, eu queria estar lá dentro”, lembra a fisioterapeuta.

“A gente vê que não é o dinheiro que está levando as pessoas a estarem alí. Quem está nos hospitais gosta do que faz”, diz Marcia, que, atualmente, divide os horários de trabalho em três hospitais: “Juntando os três, é como se eu trabalhasse o mês inteiro, sem folga nenhuma, por 19 horas todos os dias”, afirma a fisioterapeuta que ganha o equivalente a R$130,00 a cada plantão de seis horas.

A rotina de trabalho em três locais diferentes é inevitavelmente exaustiva para Márcia, que precisa se adaptar aos horários sempre muito variáveis. “Às vezes eu saio de um plantão e vou direto para outro hospital. Mas eu levo comida, levo água. Trabalho com meia elástica, tomo muito café para aguentar o cansaço”, comenta.

A zona de combate

Na adrenalina das UTIs, Marcia teve que lidar com adaptação dos leitos no centro cirúrgico para abrigar um número maior de doentes. “O remanejamento de pacientes é um estresse constante: de olho no monitor, olhando batimento cardíaco, pressão arterial e oxigenação: é uma adrenalina intensa”, relata.

Lia também teve que lidar com a pressão: “Parecia guerra. A gente desceu no pronto-socorro e eu não sabia quem eu atendia primeiro, quem estava com mais falta de ar. O ar era o critério, e não faltou oxigênio para nós”. Giulia, que admira a dedicação da mãe e reforça que ela sempre foi “muito mais trabalho do que lazer” acrescenta: “Ela vê pessoas com falta de ar todos os dias. Vivenciar essa situação e pensar que poderia ser com a família dela é praticamente entrar no campo de guerra”.

A fisioterapia atua em todas as fases do tratamento da covid-19, a rotina é intensa e requer cuidados ímpares. Ser o profissional que representa força e dar atenção individual para cada paciente é um desafio diário. “Nós viramos, dentro do hospital, a ponte entre o paciente e a família que não pode estar com ele”, explica Eliane com lágrimas nos olhos.

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Profissionais de hospital particular com plaquinhas desejando melhora para o paciente.
Acervo pessoal

O tratamento humanizado e a troca com os pacientes é uma forma de singularizar o atendimento das fisioterapeutas. “A gente tem um mural de sentimentos no hospital, onde a equipe coloca o que está sentindo em bilhetinhos. Também tem cartinhas das famílias, foto de paciente quando tem alta. Foi criando isso de ‘quem é você além de um paciente com covid?’”, conta Lia, que tem a tarefa de acompanhar os pacientes antes e depois de serem intubados.

Marcia, que atua diretamente na UTI e não tem a oportunidade de criar relações mais profundas com o doente no hospital, por conta do nível de debilitação física dos pacientes que estão em tratamento intensivo. “No atendimento domiciliar você consegue dar um outro enfoque comparado às UTIs, já que na maioria das vezes o paciente está sedado, intubado ou com desconforto e a gente sempre na correria. Eu só vejo o paciente crítico, quando ele sai do hospital eu não consigo acompanhar”, comenta.

Correria. É justamente o excesso dela que faz com que a saudade de momentos simples fique maior. “Sinto falta do contato com natureza, vento na cara e pisar no chão”, diz Marcia.

Mesmo assim, as fisioterapeutas sabem que não é a hora de parar: “É alguma missão, tem coisas que a gente não vai saber, mas eu me sinto feliz em ir para o hospital”, afirma Lia. No fim, o desejo é único para as duas profissionais: vencer mais uma batalha. O brilho nos olhos, acima das marcas deixadas pela máscara apertada depois de mais um dia de trabalho, refletem a esperança por dias melhores. Mas, por enquanto, o álcool em gel, a N-95, o plástico suado e a face shield têm sido a melhor saída.

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Sem as máscaras, o conforto para as fisioterapeutas ainda parece distante

Assim como quem respeita o distanciamento social, as duas fisioterapeutas têm se visto longe de um abraço amigo há muito tempo. Com a correria na rotina, Marcia “não tem tempo de criar laços com os outros colegas de trabalho”, algo comum entre os profissionais que atuam em mais de um local da linha de frente.

Para Lia, o contato físico é um acalento muito difícil de ser substituído, principalmente nos dias em que o estresse do trabalho é muito grande. Apesar de ter tido que se afastar de todos ao seu redor por conta dos riscos da profissão durante a pandemia, a fisioterapeuta ainda tem esperanças de reencontrar o conforto dos abraços em família: “Eu estou com vida e tenho um propósito muito maior. Eu sei que se a gente sair disso com vida, a gente vai ter muito tempo para se abraçar”.

Em contraponto, relações também foram estreitadas durante o período de isolamento para uma das fisioterapeutas, o que têm ajudado em momentos difíceis. O relacionamento de Lia com a filha, Giulia Zacarias, de 19 anos, foi essencial para que ela conseguisse superar os medos e as frustrações do dia a dia no hospital.

Pela primeira vez, a mãe coruja se viu amparada pela filha em uma relação que também amadureceu com as dificuldades impostas pela pandemia: “Minha filha me via como uma fortaleza e agora ela teve a oportunidade de me ver insegura, com medo. Sabe aquele filme ‘Divertidamente’? Eu era a Alegria, não consigo sentir raiva. E agora eu percebo a importância da tristeza e de mostrar o que eu estou sentindo”, afirma.

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Lia junto da filha, Giulia, de 19 anos.
Acervo pessoal

Se aproximar de si mesma foi essencial para Lia. A terapia foi uma descoberta para enfrentar o momento, o que a ajudou a expressar melhor os seus sentimentos e contribuiu tanto em sua vida pessoal como profissional. A música também passou a ser um mecanismo de refúgio para a fisioterapeuta. A sua preferida, “Metade”, de Oswaldo Montenegro, traduz nos versos um pouco do misto de sensações momentâneas:

(…) “Pois metade de mim é abrigo

A outra metade é cansaço

Que a arte me aponte uma resposta

Mesmo que ela não saiba

E que ninguém a tente complicar

Pois é preciso simplicidade para fazê-la florescer” (…)

A relação de mãe e filha se sobressai e Giulia é testemunha do quanto fazer o bem ao próximo motiva Lia a continuar: “É isso que motiva e dá um gás para a vida dela: Ajudar alguém, salvar vidas. Eu acho realmente heroico o que ela faz e tenho muito orgulho. Tenho medo sim, mas por outro lado eu apoio muito, porque acho que é realmente isso que a deixa realizada na profissão: estar ali, poder e poder ajudar”.

Editado por Nathalia Jesus

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