“Desextinção” do lobo-terrível: como funciona o processo de edição genética?  - Revista Esquinas

“Desextinção” do lobo-terrível: como funciona o processo de edição genética? 

Por Rafael Di Giorgio : maio 30, 2025

Os filhotes de lobo-terrível não se tratam do animal extinto, mas de lobos-cinzentos modificados geneticamente. Foto: Divulgação/Colossal Biosciences

Campo da genética dá vislumbres de futuro “sci-fi”, mas especialistas ainda se preocupam com dilemas éticos

Recentemente, no dia 07 de abril de 2025, a empresa Colossal Biosciences anunciou sua primeira “desextinção” de uma espécie: o lobo-terrível. Essa notícia circulou tanto o meio científico quanto no público geral, mas o que a maioria das pessoas deve desconhecer é que esse processo de edição genética não é novidade e está presente há décadas.

“Os mecanismos de edição e regulação gênica sempre foram objeto de curiosidade e de estudos científicos. Desde seu surgimento em pesquisas, sempre houve um apelo muito grande, assim como a clonagem”, diz a médica geneticista Karen Cristina Moreira, formada em Medicina pela Universidade de Itaúna (MG). Sendo retratada até em filmes como “Jurassic Park” e no grupo de heróis “X-Men”, os assuntos de mutações e experimentos genéticos sempre fascinaram o grande público. 

“A busca pelo poder da criação é algo que sempre intrigou e impulsionou a humanidade, incluindo os cientistas. Mas não é isento de perigos, pois esbarra em dilemas éticos e no desconhecido”, afirma Karen Moreira.  

O desenrolar da edição genética 

A história da edição genética é riquíssima e não tão recente quanto imaginam. A partir de Gregor Mendel, com seus experimentos usando ervilhas, se iniciou a era da genética. E, décadas depois, com a descoberta de que o DNA era formado por uma dupla hélice, pôde ser dada a largada para a corrida da edição genética que, até o momento presente, não tem previsão de chegada. 

A descoberta da composição do DNA e, posteriormente, a produção dele num tubo de ensaio (créditos ao bioquímico Arthur Kornberg) foram de extrema importância para o desenvolvimento dos estudos a respeito da genética, avançando para o campo científico chamado Engenharia Genética: constituído pelo conjunto de técnicas que permitem a manipulação do material genético. 

O biólogo Odair Francisco, coordenador do Curso de Bacharelado em Ciências Biológicas/UNIFIO, comenta sobre o avanço na genética nos anos 1960 e 1970. “Com o advento da descoberta das enzimas de restrição, enzimas que cortam o DNA em sequências específicas, e a possibilidade de realizar a criação de plasmídeos com DNA recombinantes, um DNA artificial, a edição genética iniciou naquele momento o vislumbre para as enormes possibilidades no desenvolvimento da Genética Molecular, o ramo da Biologia que estuda a função e estrutura dos genes ao nível molecular”.

Seguindo o curso histórico, precisamente no ano 1981 foi realizado o primeiro experimento com um animal: cientistas transferiram o gene de um coelho para o genoma de um camundongo, utilizando o que chamam de “microinjeção de DNA”. Cinco anos depois, foi aprovada a primeira vacina recombinante para humanos: era a da hepatite B, produzida por técnica de DNA recombinante e que se tornou fundamental para o surgimento de futuras vacinas sendo utilizadas o processo recombinante. 

Novos passos para a ciência

Em 1993, são descobertos os princípios do CRISPR (Repetições Palindrômicas Curtas Regularmente Espaçadas em Cluster, sigla em inglês), pelas mão do cientista Francisco Mojica durante seu trabalho com bactérias nos pântanos de Santa Pola. O microbiólogo espanhol notou que partes do DNA das bactérias se repetiam muitas vezes, com espaços regulares entre elas. Ao longo de seus próximos 10 anos, continuou estudando com mais profundidade até que descobriu o seguinte: o DNA repetitivo correspondia a fragmentos de DNA correspondentes aos vírus que atacavam as bactérias. A partir das descobertas feitas por Mojica foi possível desenvolver futuramente melhor o CRISPR. 

“Com a descoberta do CRISPR, houve enorme desenvolvimento para a Engenharia Genética. Trouxe maior liberdade para a edição genética em qualquer genoma, uma vez que a enzima Cas9, quando associada a um RNA Guia, sequência que direciona a edição genética, compõe uma associação que pode reconhecer o ponto exato para cortar a dupla fita de DNA e, posteriormente, esse DNA conserta sua sequência, trazendo uma reparação à sequência de nucleotídeos, blocos construtores do DNA e RNA”, pontua o biólogo Francisco.

Episódios marcantes no mundo da genética já ficaram mundialmente conhecidos. É o caso da ovelha “Dolly”, primeiro mamífero a ser clonado a partir de uma célula adulta. A clonagem, feita em 1996, foi uma grande conquista para a ciência. E, seguindo nesse lado mais “animal”, sete anos depois do caso Dolly foi feita a venda do primeiro animal de estimação para casa: o “Glo-Fish”, um peixe que brilhava. Marca-se, então, o início da era em que organismos geneticamente modificados surgiram de vez para o grande público. 

A edição e engenharia genética continuaram se desenvolvendo nos anos seguintes, até um momento revolucionário: o início do uso da ferramenta de engenharia do genoma CRISPR. Sim, o cientista Mojica já havia descoberto, mas não entendeu como utilizá-lo para fins na medicina e em outras áreas. Esse feito deve-se à cientista americana Jennifer Doudna e à microbiologista francesa Emmanuelle Charpentier, além de suas equipes.

VEJA MAIS EM ESQUINAS

“Darwin sem Frescuras”: livro busca discutir ciência de maneira acessível

O que falta para uma ‘Nasa’ dos oceanos?

Brasil Jurássico

O mecanismo de funcionamento do CRISPR

Agora é preciso entender como a edição genética moderna funciona. O CRISPR-Cas9, união da tecnologia CRISPR com a enzima Cas9, funciona como uma “tesoura molecular”, que permite a edição precisa do DNA e de suas duas fitas nos locais desejados para modificação. Por meio dele que fragmentos de DNA de vírus invasores são cortados por uma nuclease bacteriana, a enzima associada a CRISPR e que desempenha papéis essenciais em diversos processos bacterianos, como na imunidade adaptativa. O fragmento de DNA cortado é armazenado como memória para combater infecções futuras e o sistema CRISPR-Cas9 como um todo pode ser projetado para editar DNA eucariótico, como o dos humanos.

Antes de começar o processo, o alvo precisa ser identificado, ou seja, a sequência de DNA a ser alterada é identificada e o RNA Guia é projetado para completar a sequência. Esse mesmo RNA Guia se liga ao DNA alvo e atrai a proteína Cas9. É ela que vai cortar as duas fitas de DNA no local de interesse: onde o RNA Guia se ligou a ele. Após esse corte, a célula usa seus mecanismos de reparo que “consertam” o corte. Dependendo do caso, ainda pode ser inserida uma nova sequência ou deleção de parte do DNA. O CRISPR, então, permite que os cientistas mudem sequências de DNA específicas para utilizá-los com propósitos dos mais diversos, como em tratamentos contra o câncer e combate à obesidade. 

A estudante Gabriela Angélica Maistro, atualmente cursando seu quinto semestre em Biologia na Universidade das Faculdades Integradas de Ourinhos, comenta sobre o CRISPR-Cas9. “Avanços como o CRISPR abriram portas para tratamentos inovadores de doenças, além de soluções sustentáveis para problemas como pragas que devastavam plantações inteiras.  Mas, ao mesmo tempo em que esses avanços são animadores, eles também trazem debates éticos complexos que precisamos encarar com seriedade. Um exemplo disso é o uso da engenharia genética para “trazer de volta” espécies extintas — como é o caso do lobo-terrível”. 

Essa espécie de “desconfiança” misturada com o reconhecimento dos avanços da genética é uma opinião compartilhada por muitos do meio da genética/biologia. “Desde a descoberta do sistema CRISPR-Cas9, muitos avanços foram feitos na área. Desse modo, outras áreas também são impulsionadas. Porém, a edição gênica pode ocasionar problemas quando se pensa que nem todos vão utilizá-la para propósitos tão nobres, gerando consequências na aplicação da saúde e ilegalidade do que se produz”, diz a médica geneticista Karen Moreira.  

Polêmico ou não, fato é que o sistema CRISPR trouxe um progresso muito significativo para a ciência. Em 2020, alguns pacientes se submeteram ao tratamento da anemia falciforme usando tecnologia do CRISPR e apresentaram melhoras significativas na quantidade de hemoglobina fetal no sangue. No mesmo ano, Jennifer Doudna e Emmanuelle Charpentier receberam o Prêmio Nobel de Química pelos seus trabalhos com o CRISPR. 

Até o momento, experimentos continuam sendo feitos e inovações surgem acompanhadas desses resultados. Usemos de exemplo o tão comentado caso do lobo-terrível. Foi utilizado o sistema CRISPR para “trazer” de volta a espécie (embora não seja de fato o mesmo lobo de milhares de anos atrás), sendo feitas 20 edições em 14 genes do lobo-cinzento para que ficasse de acordo com o que foi encontrado no DNA do animal extinto. Um lobo híbrido, praticamente. 

E o futuro? 

Sem dúvidas a área da genética é uma das mais fascinantes e promissoras para os próximos anos. “O futuro da Biologia está conectado à genética, especialmente com o crescimento da bioinformática, da biotecnologia e da necessidade de soluções sustentáveis”, afirma Maistro. 

“A genética está fortemente relacionada à atuação do profissional biólogo. Vejo o futuro com enormes possibilidades benéficas ao homem com emprego de tais técnicas de edição e acredito que o futuro da atuação profissional passe pela área da genética”, comenta Odair Francisco.

Mais fácil do que falar do futuro é falar do presente. Como é a rotina de alguém que efetivamente trabalha na área da genética? É o que conta a médica geneticista Karen Moreira: “A genética médica ainda é uma especialidade relativamente nova, uma área desconhecida e em expansão. Trabalho avaliando e diagnosticando pessoas com diversas condições genéticas, desde infertilidade até síndromes de predisposição ao câncer. O atendimento ao que é considerado “diferente” costuma ser algo difícil, mas também engrandecedor de acolher tantos pacientes e famílias especiais”.

Editado por Luca Uras

Encontrou algum erro? Avise-nos.