A cena é recorrente para milhões de pessoas: todo dia, sucedem-se nos telefones fixos e celulares chamadas indesejadas de serviços de telemarketing. Serviços de bloqueio que prometiam resolver o problema fracassaram: consumidores continuam sendo importunados como se não tivessem apelado a ninguém. Diante da baixa efetividade, entidades que criaram os cadastros mudam de estratégia. A Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), responsável pelo Não Me Perturbe, anuncia a criação do código 0303 para identificar números de telemarketing. Em São Paulo, o Procon-SP, que mantém o Não Me Ligue, aposta em uma lista pública de “indesejados recorrentes” – a ideia é que a publicidade negativa obrigue as empresas a rever condutas.
O Brasil pode ser considerado uma espécie de paraíso do spam telefônico. Pelo quarto ano consecutivo, o país liderou o ranking de ligações que oferecem produtos ou serviços não solicitados. Segundo o recém-lançado relatório global do aplicativo Truecaller, cada usuário brasileiro recebe, em média 32,9 chamadas indesejadas por mês. Consumidores reclamam que os cadastros disponíveis para barrar o telemarketing não funcionam. A jornalista Simone Valente, de São Paulo, é cadastrada no serviço Não Me Ligue, do Procon-SP, há mais de 10 anos. “No começo, funcionava bem. Eu quase não recebia chamada de telemarketing. Quando acontecia, eu avisava as empresas de que era cadastrada no serviço do Procon e elas me retiravam da lista de contatos. Agora, elas ligam, eu aviso que sou cadastrada no Procon, e elas ignoram”, afirma. Simone buscou ajuda num grupo de jornalistas e assessores de imprensa no Facebook. Foi aconselhada a refazer o cadastro no Procon-Sp. “Não adiantou. As mais reincidentes são operadoras de telefonia celular”, conta.
Criado em 2008 com a sanção da Lei Estadual 13.226/08, o Não Me Ligue é um cadastro que restringe chamadas indesejadas de empresas de telemarketing e cobranças indevidas em até 30 dias da inscrição no site. Depois desse período, é possível denunciar empresas que estejam burlando a lei – as companhias são notificadas e obrigadas a retirar o número do reclamante. Serviços semelhantes são oferecidos Brasil afora por meio dos Procons de cada Estado.
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O Não Me Perturbe, da Anatel, funciona de forma parecida. Como características únicas, o serviço oferecido pela agência reguladora prevê a vigência do cadastro em todo o território nacional e a possibilidade de bloqueio de oferta de serviços financeiros, como crédito consignado.
Apenas na primeira semana de funcionamento, em 2019, o site do cadastro registrou 1,5 milhão de inscritos. Pouco tempo depois, os principais bancos nacionais, como Banco do Brasil, Bradesco, Itaú-Unibanco e Santander, anunciaram a intenção de fazer parte da iniciativa, ampliando o escopo do cadastro das telecomunicações para o setor financeiro.
Mas, assim como o Não Me Ligue, a iniciativa da Anatel é objeto de críticas. O servidor público aposentado Ciro Gusmão Júnior, de Brasília, fez o cadastro no Não Me Perturbe logo no início, mas não sentiu qualquer diferença. “Nem cheguei a reclamar. Preferi instalar um aplicativo que intercepta ligações de financeiras, correspondentes bancários e assemelhados”, conta, referindo-se ao Truecaller.
Procuradas pela reportagem, tanto a Anatel quanto o Procon-SP reconhecem que as iniciativas não foram suficientes para resolver o problema, mas destacam os avanços. Em nota, a Anatel declarou que tanto ela quanto o setor regulado “têm avaliação positiva sobre o mecanismo, que constitui um importante passo no sentido de uma forma de regulação cooperativa e integrada”. Também afirmou estar concluindo “a formatação de ações de monitoramento que vão conferir como as empresas de telecomunicações têm atuado sobre os seus parceiros de negócios”.
No último dia 10 de dezembro, a agência reguladora anunciou para 2022 a inclusão do código 0303 em todos os números de telemarketing para que o consumidor possa identificá-los previamente e deixar de atender se julgar conveniente. Segundo ela, as empresas de telefonia serão responsáveis pela viabilização da medida, cabendo a elas a incorporação do código aos números telefônicos e a criação de formas de visualização pelo consumidor, sob risco de sanções administrativas.
O Procon-SP ressalta que desde 2009, foram cadastradas 2,9 milhões de linhas telefônicas e registradas 256 mil reclamações. “Desde 2010, foram instauradas pela fiscalização 852 averiguações de bloqueio de telemarketing e aplicadas 348 multas, que, juntas, somam cerca de R$ 260 milhões”. Em agosto deste ano, o órgão anunciou a criação de uma lista pública com um ranking das empresas que mais perturbam o consumidor, como forma de pressioná-las a interromper os contatos por meio de publicidade negativa.