Há 60 anos Bob Dylan eletrizou o Newport Folk Festival

Há 60 anos Bob Dylan eletrizou o Newport Folk Festival

Por Enzo Rocha Santos : julho 25, 2025

Bob Dylan 1991 - (Foto: Xavier Badosa/ Reprodução: Wikimedia Commons)

Em 25 de julho de 1965, Bob Dylan fez história no Newport Folk Festival, em Rhode Island, com uma apresentação que abalou o cenário musical

Diante de uma plateia conservadora, que esperava ouvir suas clássicas canções folk, e de jovens curiosos para conhecer o novo fenômeno da música, Bob Dylan surpreendeu ao subir ao palco com uma guitarra elétrica. O gesto, visto como uma traição ao folk tradicional, foi recebido com vaias e marcou uma ruptura com o estilo que o consagrou.

O gênero folk

O folk é um gênero musical com raízes em tradições populares e expressões culturais de diferentes povos, surgido entre o século XIX e o início do século XX. Assim como o folclore, tem origem rural e foi incorporado ao meio urbano, preservando a tradição da transmissão oral. Com forte cunho social, o folk funciona como um manifesto cantado, abordando temas cotidianos, injustiças e marcos históricos dos Estados Unidos. Entre seus instrumentos mais característicos estão o violão, a gaita, o violino, o banjo e a flauta.

De acordo com o compositor e historiador Neil Rosenberg:

A música folclórica era considerada acessível, fácil de aprender; e o aprendizado junto com a performance foram encorajados através de suportes ideológicos: uma autêntica e democrática expressão no formato de uma natural e despretensiosa arte.

Segundo Mariana Oliveira Arantes, pesquisadora do gênero:

As armas utilizadas por artistas ligados ao folk que se engajaram nas lutas por igualdade e direitos civis das minorias nacionais eram a música e a escrita. Os artistas ligados ao repertório folk não apenas compuseram, gravaram e interpretaram canções que explicitamente eram contra a desigualdade social e racial, mas também escreveram sobre as canções e estenderam seu engajamento à participação ativa em manifestações, reuniões das lideranças do movimento e demais atos organizados.

O Festival de Newport foi criado em 1959, inspirado no Newport Jazz Festival, idealizado em 1954. Em pouco tempo, tornou-se um ponto de encontro que representava não apenas a preservação do estilo musical, mas também de toda uma ideologia. Além de reunir nomes já consagrados, como Odetta e Pete Seeger, foi palco da ascensão de quem seria reconhecida como a rainha do folk: Joan Baez.

Bob Dylan foi um dos grandes nomes do chamado folk revival — uma significativa retomada do gênero ocorrida entre o final dos anos 1950 e o início dos anos 1960.

Joan Baez e Bob Dylan cantando juntos na Marcha sobre Washington de Martin Luther King Jr., em 1963 (Foto: Rowland Scherman/ Reprodução: Wikimedia Commons)
Foto: Rowland Scherman

O lado folk de Bob Dylan

No início da carreira, o compositor-poeta começava a construir uma base de fãs aparentemente leal, apresentando pela primeira vez hinos que logo se tornariam clássicos, como Blowin’ in the Wind, Don’t Think Twice, It’s All Right e The Times They Are A-Changin’ . Suas músicas davam voz ao povo americano (em especial ao proletariado) e ao mesmo tempo expressavam sentimentos universais da condição humana.

Seus quatro primeiros álbuns seguiram a linha do folk, e Dylan se destacou justamente por despertar o interesse da juventude pelo gênero. Ele já havia se apresentado no Newport Folk Festival nos dois anos anteriores a 1965.

Folk e rock: “opostos”

Por definição os dois gêneros se opõem em alguns aspectos no que se propõem: enquanto que o folk celebra a ancestralidade e a tradição, o rock estimula a discordância transgressora para com o passado, que é interpretado como sufocante. A corajosa tentativa de combinar os diferentes estilos evidencia a característica ambiguidade revolucionária e a contradição sempre presentes em Dylan.

Em 1983, em entrevista à revista Rolling Stone, Joan Baez comentou sobre a controvérsia do festival de 1965: “Eu apenas achei que ele [Bob] foi muito corajoso em fazê-lo [tocar com instrumentos elétricos], apesar de eu não ter gostado do som. Mas aprendi a gostar, porque ele ainda estava compondo coisas maravilhosas.”

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O pontapé elétrico

Bob Dylan já demonstrava seu interesse no blues antes mesmo de iniciar sua carreira musical. No início de 1965, Dylan havia lançado Bringing It All Back Home – seu primeiro disco com presença de faixas com instrumentos elétricos. Carlos Eduardo Lima, crítico musical e historiador, comenta:

Dylan já estava considerando elementos elétricos para suas canções já na virada de 1964/65, essa adição veio antes do festival. Ele era uma esponja, precisava de mais e mais referências para alimentar sua curiosidade e poesia. Acho que virar a atenção para o rock fez bem para ele e para o rock, que deixou de ser um gênero musical juvenil para comportar questões mais sérias. Dylan foi um dos pioneiros nisso, tanto gravando e compondo quanto influenciando Beatles, Rolling Stones e por aí vai

A faixa de abertura do álbum é Subterranean Homesick Blues – música inteiramente rock ‘n’ roll; foi lançada inicialmente como single e já despertava descontentamento dos puristas: quando questionado por um jornalista a respeito de sua mudança, Bob diz:

Eu prefiro ouvir Jimmy Reed ou Howlin’ Wolf, cara, ou os Beatles, ou Françoise Hardy, do que qualquer cantor de protesto. Claro, você pode fazer todo tipo de canções de protesto e colocá-las num álbum. Mas quem irá ouvi-las?

Dylan, a partir de certo momento, começaria a considerar a cena da música folk um amontoado de romantismo e ingenuidade sem sentido.

Bob Dylan subiu ao palco do Newport Folk Festival acompanhado por uma banda improvisada de músicos de blues, com instrumentos elétricos e amplificadores. Não havia forma mais “rock and roll” de iniciar a polêmica do que com Maggie’s Farm ,canção cuja letra ecoava sua própria situação: resistir à imposição dos outros e se recusar a ser controlado.

Além da faixa de abertura, o setlist contou com Like a Rolling Stone (lançada como single cinco dias antes), It Takes a Lot to Laugh, It Takes a Train to Cry, It’s All Over Now, Baby Blue e Mr. Tambourine Man. O show, curto devido à recepção conturbada, teve suas duas últimas músicas executadas apenas por Dylan, em versão mais suave e acústica, como uma tentativa de acalmar a plateia, que reagia com um misto de estranhamento e frustração.

Vaias e aplausos se misturavam em meio ao caos da multidão, não apenas pela ousadia da performance, mas também pela má qualidade do som, resultado de falhas técnicas na infraestrutura. Em uma coletiva de imprensa, ainda em 1965, Dylan afirmou:

Eles [o público] certamente vaiaram, te garanto. Dava para ouvir em todo lugar.

Pete Seeger, um dos organizadores do festival e amigo próximo do cantor, relembrou:

Fiquei furioso porque o som estava tão distorcido […] não dava para ouvi-lo. Estava tão irritado que disse: ‘Cara, se eu tivesse um machado, cortaria os cabos agora mesmo’. Mas eu não era contra o Bob se eletrizar.

Pouco depois da polêmica, Dylan lançou o álbum Highway 61 Revisited, em agosto de 1965, consolidando ainda mais seu mergulho no rock com faixas elétricas, incluindo a já icônica Like a Rolling Stone como faixa de abertura.

O festival de 1965 ficou marcado pelo encontro entre o rock, então em pleno auge cultural e comportamental, e o folk, tradicional e metódico, bem no centro simbólico deste último. A mistura provocou uma verdadeira ebulição: muitos consideraram a fusão uma heresia, gerando uma reação intensa que tomou conta do palco e se espalhou pela multidão. Carlos Eduardo, contextualiza:

O público era composto por jovens intelectuais e alguns tradicionalistas um pouco mais velhos. Para estes últimos, Dylan surgiu como um traidor da ‘pureza’ do folk. Talvez para os mais jovens, a atitude de rompimento com parâmetros meio decadentes tenha significado mais do que seguir no mesmo trilho

A insatisfação era ainda maior pelo fato daquilo ter vindo justamente daquele que havia contribuído tanto para a retomada do gênero, o que levou alguns espectadores a vaiá-lo, e outros a aplaudi-lo. Apesar de o episódio ser comumente associado à ocasião em que ele foi chamado de Judas, foi somente no ano seguinte, em um show no Free Trade Hall, em Manchester, que Bob Dylan seria chamado exatamente de Judas.

O que significou “se eletrizar”?

Segundo Lucas Peçanha, jornalista musical:

Bob Dylan trocar o violão pela guitarra foi seu rompimento simbólico do papel de ‘porta-voz do povo’ que lhe havia sido imposto. Para muitos fãs, a eletrificação soou como uma traição, como se abandonasse as mensagens sociais e a pureza que o violão representava. Porém, para o artista, foi um ato de afirmação artística, como se estivesse liberto das ‘amarras’ impostas pelo público e pela indústria. Dylan já estava saturado de sempre cantar as mesmas músicas em seus shows, e realizar essa atitude consagrou seu espírito rebelde no meio musical para sempre.

Bob, com isso, declarava abertamente sem mais nem menos que não se contentaria em ceder de maneira submissa à vontade de outros que estariam em alguma posição superior. A insubordinação acarretaria em um estímulo simbólico especialmente a artistas, a ser uma certa inspiração de emancipação.

Bob Dylan ter tocado numa guitarra elétrica ao invés do esperado violão acústico foi uma afirmação de sua obstinação intrínseca, apesar de não ter sido um marco de um certo “abandono” do folk, mas sim uma convergência significativa para um novo gênero: o folk rock.

“Eu não acho que Dylan mudou seu gênero musical. Ele é um artista que está acima disso. Ele tem fases, momentos distintos, mas nunca deixa de ser misterioso, enigmático e genial. Acho, sim, que a esfera criativa-artística sempre foi sua prioridade e o canal que ele sempre escolheu para dar suas mensagens”, lembra Carlos Eduardo. Lucas Peçanha ainda complementa:

Passar a utilizar a guitarra elétrica em suas composições tornou Bob Dylan um ícone do rock mundial. Quando ele ‘se eletrizou’ no Newport Folk Festival, foi o ato de rebeldia definitivo de sua carreira – algo que se liga diretamente com o gênero, historicamente associado a atos de contestação. A atitude de Dylan foi seu ato máximo de rebeldia para com o meio musical. Ele desafiou os costumes do folk e revolucionou ao mesclar com o rock em seus trabalhos posteriores. A letra de Like a Rolling Stone retrata isso perfeitamente, como se Dylan se sentisse uma ‘pedra rolando’ e ‘um completo desconhecido’ ao decidir se aventurar com ou sem a aprovação do público folk.

Em seu livro de memórias, Crônicas: Volume Um (2004), Bob Dylan relembra o domingo do dia 25 de julho de 1965:

Dane-se. Até onde eu saiba, eu não pertencia a ninguém naquela época ou agora.

Encerramento

O início da carreira do músico-poeta e o icônico episódio do Newport Folk Festival de 1965 foram marcos que continuam a ressoar. Esse momento divisor de águas, que não só moldou a trajetória de Bob Dylan, mas também redefiniu o cenário musical, foi documentado em obras como o livro Dylan Goes Electric!, (2015), de Elijah Wald, e, mais recentemente, no filme Um Completo Desconhecido (2024), de James Mangold. Tais registros atestam como a corajosa decisão de Dylan em “se eletrizar” permanece viva, provocando debates até hoje.

Editado por Giovanna Moretti

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