Com salários atrasados e a conta de energia elétrica sem pagar, a instituição, fundada em 1946, vive uma crise institucional e política
A Cinemateca Brasileira enfrenta sérios obstáculos para cumprir sua missão de preservar, guardar, restaurar e difundir uma parte importante de toda criação audiovisual brasileira.
A partir de 2018, a Cinemateca, órgão público federal desde 1984, passou a ser administrada pela organização social ACERP – Associação de Comunicação Educativa Roquette Pinto. Isso significa que, por contrato, o Governo Federal deveria repassar, em 2020, R$12 milhões para que a organização administre o local.
Em pouco tempo, esse formato revelou sua instabilidade. Nos últimos meses, por exemplo, o Estado não enviou os recursos necessários para a ACERP sustentar a Cinemateca. Desde janeiro, a associação tenta manter o lugar com fundos próprios — os quais não são suficientes.
Segundo Maria Fernanda Coelho, que trabalhou como conservadora audiovisual na Cinemateca por 36 anos, esse modelo governo-organização apresenta fragilidade, visto que essa relação não pode ultrapassar cinco anos. “Há um conflito fundamental. Uma meta importante de uma instituição de memória é garantir que seu acervo sobreviva por mais de 100 anos. Imagine substituir uma equipe a cada cinco anos precisando manter procedimentos que garantam essa sobrevivência”, opina.
Impactos do caos administrativo
Até o momento, muitos funcionários já foram demitidos e os que continuaram trabalhando estão sem pagamento. “O salário deixou de ser pago em maio. Então, o mês de abril, que a gente trabalhou, não foi pago, nem o mês de maio. Estamos há dois meses sem receber e três meses sem benefícios [vale transporte e vale refeição]”, diz um ex-funcionário desligado em junho.
Outro alvo dessa insuficiência é o acervo. Com a conta de energia elétrica atrasada há três meses, a dívida supera os R$ 450 mil. De acordo com Eloá Chouzal, pesquisadora audiovisual, “os [ambientes] climatizados, onde estão os filmes, precisam de temperatura e umidade ideais. Tem filmes antigos de nitrato que, se não estiverem nessas condições ideais, entram em processo de autocombustão. Há o perigo desse patrimônio todo ser incendiado”, alerta.
Nesse cenário de risco, a Cinemateca já sofreu com quatro incêndios, o mais recente foi em 2016 em sua sede, na Vila Clementino. Além disso, em 2020, um dos depósitos, localizado na Vila Leopoldina, passou por uma enchente. Nesses casos, é necessária uma ação imediata de duplicação dos conteúdos para recuperar os materiais atingidos. O trabalho precisa ser feito em conjunto com os técnicos da análise de dados e os técnicos da análise de materiais.
Sobre os acidentes, o prejuízo pode afetar, entre outras coisas, 250 mil rolos de filmes que formam o acervo da Cinemateca. O Centro de Documentação, por exemplo, já cadastrou mais de um milhão de documentos como fotografias, livros, roteiros e cartazes. Como as obras cinematográficas, todos esses também precisam de condições adequadas para sua preservação. A Cinemateca ainda conta com uma base de dados, o Banco de Conteúdos Culturais, que disponibiliza conteúdos digitais desde 2009.
Como o local trabalha principalmente com documentos audiovisuais, o cuidado no manuseio dos materiais deve ser maior. Os arquivos passam por revisões periódicas. Com as análises, são determinadas as condições específicas para a preservação de cada suporte fílmico. Por exemplo, os filmes em suporte de acetato de celulose ou poliéster ficam em câmaras climatizadas que operam com 50% de umidade relativa do ar e temperatura entre 10,5ºC e 15,5ºC, variando de acordo com a matriz do filme – colorida ou em preto e branco.
Outra parte importante do edifício é o Laboratório de Imagem e Som. Nesse setor, são realizados diferentes processos como a correção de cor, restauração, migração de formatos em vídeo para arquivos digitais entre outros – mesmo que a prioridade da instituição seja sempre manter o material no seu suporte de origem.
No entanto, o acervo digitalizado ainda é pequeno e incerto. “Quando se digitaliza, há dois problemas. Um é manter o analógico, esse não pode morrer, porque sobrevive ao tempo, o digital não. O outro problema é continuar investindo no arquivo digital, que vai precisar se atualizar tecnologicamente. É a única maneira de manter as imagens e os sons acessíveis”, explica Maria Fernanda.
Movimentos pela Cinemateca
Buscando atrair a devida atenção para o maior acervo audiovisual da América do Sul e sua equipe, os trabalhadores da Cinemateca optaram por iniciar uma greve no dia 12 de junho de 2020. Para formalizar a movimentação, os funcionários divulgaram uma carta com o seguinte trecho: “Muito tem se falado sobre o acervo da Cinemateca e o risco que ele corre com um aventado fechamento da instituição pelo governo, mas pouco se fala sobre a situação desses funcionários que não possuem qualquer possibilidade de renda frente à pandemia”.
Além da greve, outras ações foram articuladas com o mesmo propósito. Uma delas é o movimento Cinemateca Viva, organizada pelos moradores da Vila Mariana, bairro vizinho da instituição. Outra é a SOS Cinemateca, feita pela APACI (Associação Paulista de Cineastas), que mobilizou manifestações em frente ao prédio. Na política, o vereador Gilberto Natalini também está articulando uma frente em prol da causa. Em conversa com a Enel, o vereador conseguiu estender o prazo para pagar a conta de energia elétrica, que venceria no final de junho. Ainda, há uma benfeitoria de fundos emergenciais para os funcionários.
Existe uma solução para a Cinemateca?
Para Débora Butruce, vice-presidente da ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual), a solução de curto prazo é o Governo Federal propor um contrato emergencial com a organização que administra a instituição. A longo prazo, a solução é a possibilidade de reincorporar a gestão da Cinemateca à União. Em maio, Jair Bolsonaro chegou a anunciar que a instituição iria de “presente” para a atriz Regina Duarte, recém-demitida da Secretaria da Cultura. O presidente, porém, cedeu algo que não tem, uma vez que o martelo sobre a retomada do órgão pelo Governo Federal não está batido.
Adicionando a isso, Butruce diz: “Quando pensamos em estabilidade institucional, essencial para uma entidade de memória, o que funciona melhor é ser de caráter público, respeitando-se as especificidades técnicas de um órgão como a Cinemateca Brasileira. Mas isso é não é um processo rápido, levaria diversos meses, e a instituição não pode ser fechada enquanto espera. A manutenção dos espaços de guarda e do corpo técnico tem que ser garantida de alguma forma nesse ínterim”.
Ao longo do mês de junho, o Ministério do Turismo e a Secretaria Especial de Cultura anunciaram que estão buscando uma solução para a Cinemateca. Enquanto isso não é resolvido, o patrimônio continua em risco, o que atinge diretamente outras instâncias da cultura.
A pesquisadora audiovisual Eloá demonstrou o alcance do acervo ao citar o Museu do Cais do Sertão, em Recife. A entidade pernambucana utilizou o material da Cinemateca para exibir filmes sobre cangaceiros e a realidade do sertão. Até agora, há 150 pesquisas paradas dependentes dos conteúdos da Cinemateca.
Maria Fernanda coloca que, “quando se perde uma parte significativa do audiovisual de qualquer comunidade, perde-se o desenvolvimento humano que está contido nesses objetos”. Complementando essa ideia, Butruce destaca: “Através do patrimônio audiovisual brasileiro, podemos entender quem somos e quem podemos ser. A história do Brasil passa pela história de constituição dessa memória”.