Uma cantora de soul e duas MC’s contam suas histórias na música e como foram afetadas pelo racismo e o preconceito
“Vivo num sonho louco ai de mudar a minha imagem totalmente, me sinto mal o tempo todo, infelizmente não dá para superar, tem que ter ajuda, tem que ter terapia. Você tem que acreditar em você, mas não tem como superar totalmente, eu não superei”, conta MC Nicky Patroa, de 29 anos. O sonho citado por Nicky fala sobre o preconceito e a padronização presentes no meio musical. Com isso surgem inseguranças e um “ideal de beleza” inalcançável fazendo com que muitas mulheres negras acreditem que é preciso mudar suas características para poder fazer sucesso e ter um contato em uma grande gravadora.
“Eu e as minhas amigas sabemos que temos capacidade de estar num KondZilla, num GR6, um contrato de uma produtora boa, mas a gente não ocupa esse espaço. Quem ocupa é a mulher branca, são as loiras e as padrão, com corpão, peitão, bundão. A gente fala pra eles que são uns ‘cuzão’, que não dão atenção para nós só porque somos assim”, relata MC Deyzerre, de 37 anos.
Outras cantoras mais experientes e com estilos musicais diferentes também passam por situações de preconceito. Esse, por exemplo, é o caso de Céllia Nascimento, 50 anos, e cantora de soul music.
“Eu nunca sofri racismo da minha equipe, mas de outra equipe sim. Eu fui ser vocalista de uma banda e na hora que eu cheguei para passar o som uma pessoa falou pra mim que eu já poderia me trocar e que iam começar a servir. Eu perguntei: ‘Como assim?’, ela falou: ‘Você não vai trabalhar na cozinha?’ Respondi que não, que eu era a artista, eles pediram desculpas e falaram que não sabiam”, conta Céllia.
Início do sonho
MC Deyzerre e MC Nicky são duas cantoras negras com diferentes histórias, porém passaram pelos mesmos problemas ao iniciarem suas carreiras na música: o racismo e o preconceito.
Ambas vivem com a meta de conseguir se sustentar com o dinheiro da música. Para alcançar esse objetivo, as funkeiras lutam diariamente para se manterem e produzirem suas músicas de forma independente.
“Eu vou continuar persistindo, fazendo meu ‘corre’, gravando as minhas músicas da forma que dá. Eu pago, porque é tudo pago. Se você vai numa produtora uma hora gravando é 100 ‘conto’, aí você grava, paga mais 200 para produzir, mais 100 pra pôr no canal, quanto que é? Já foi meio salário mínimo”, conta Deyzerre.
Céllia viveu essa situação durante grande parte de sua carreira. Com mais de 20 anos no mercado, há 10 consegue se manter somente com a música. Até então fez de tudo para se sustentar, trabalhou como taxista, cabeleireira, secretária, modelo, e office girl.
“É complicado, porque você perde tempo de dedicação do que realmente ama, fazendo outras coisas e isso influi negativamente no seu trabalho. Você perde um tempo que poderia estar dedicando a estudos e qualificação. Foi muito difícil. Isso atrapalhou muito o andamento da minha carreira, porque em alguns momentos eu tive que parar totalmente para fazer outras coisas para me manter, mesmo com apoio da família. Essa situação de ter de se dividir é muito dolorosa e com certeza traz um reflexo muito negativo”, conta Célia.
Buscando viver da música igual a Céllia, as MC’s buscaram seu aprimoramento em projetos sociais. A MC Deyzerre, por exemplo, fez diversos cursos, entre eles teatro e canto através da prefeitura. Já MC Nicky veio de Assis, interior de São Paulo, para tentar a vida através de um projeto social.
“Eu fiz a minha primeira música, tive a aprovação e me rendeu alguns bailes, mas eu queria ser que nem as MC’s de São Paulo, então eu larguei tudo onde morava e vim pra tentar o projeto Liga do Funk”, conta Nicky Patroa.
A Liga do Funk é projeto social de São Paulo que revelou diversos artistas do meio, exemplos de MC Kekel e MC João. Além deles, outros funkeiros famosos que fizeram parte da iniciativa como MC Menor da GV, MC Lil e MC MM. Dentre todos os citados, nenhuma mulher.
“A liga foi um projeto que me ajudou muito, me ensinou muito, mas eu saí porque vi que ali eu não tinha chance de ascender, então comecei a fazer meus ‘corres’ sozinha”, relata MC Nicky
Realidade individual e a vivência com o preconceito
A MC Deyzerre também conta que a idade e a aparência foram atos de preconceito que a prejudicaram no mercado fonográfico. “Direto eu tenho que falar que tenho 30 anos. Uma vez eu tava fazendo um evento e um moleque achou que eu não tinha que tá ali porque eu tinha mais de 30 anos e era mãe de 5 filhos.”
Sobre o tratamento dos produtores, Deyzerre complementa: “Agora se eu fosse uma mulher com mais de 30 anos, uma quarentona, sarada e loira, ele ia tá com o mesmo posicionamento? Não ia, ele ia ta querendo ‘me comer’, capaz dele fazer várias músicas comigo, querendo me ajudar, mas só porque eu sou assim, fora do padrão, eu tinha que estar dentro de casa ou na igreja.”
Ainda sobre o preconceito dos produtores, MC Nicky também relata um caso que aconteceu com ela assim que chegou em São Paulo.
“Eu vi que talvez a aparência contasse mais do que o talento. Fui rejeitada em uma situação que o cara me levou na produtora, chegou lá e falou: ‘Mas ela não é o perfil das outras, não tem como contratar essa menina’, sai chorando de lá. Não quis saber da minha voz, não quis saber da minha letra. Simplesmente mandou me dispensar.”
No caso de Céllia Nascimento, as habilidades artísticas já foram motivo para ser repreendida. “Já aconteceu de não passar no teste por dar demais. ‘Ah sua voz é legal, mas você pode cantar mais fraquinho, uma coisa menor’; ‘Você é muito intensa, diminui, diminui essa carga, canta menor.’ Já passei por isso também. Mas eu, Céllia, recebi muito apoio da comunidade negra mesmo, das mulheres, dos homens e dos jovens negros”, relata a cantora.
Como atuar no meio da música
“O mercado é muito injusto, hoje em dia não se dá tanto valor ao talento quanto se deveria. Hoje, ‘você me dá o que eu preciso e eu abro espaço para você’. Por mais que se abra espaço para pessoas pretas, muitas são manipuladas”, diz Céllia Nascimento.
Mesmo enfrentando tantos casos de preconceito elas continuam lutando para ocupar espaços, e dessa forma, inspirar e levantar outras mulheres que queiram entrar para o mundo da música.
MC Nicky Patroa:
“Tem que meter o pé tá ligado? Tem que ser pé na porta e tem que fazer o trampo. Vai doer, vai sofrer, mas se a gente quer representatividade e chegar onde as outras chegaram, vai ter que ter luta e tomar essa cena, nem que seja na porrada. Não pode desistir, vai ser difícil, vão ter dias que você vai querer morrer, vai se odiar, mas vão ter dias que as pessoas vão admirar seu trabalho, que você vai saber o quão grande você é independente do que você vive na periferia, das agressões, dos traumas de tudo que você já viveu. Vai ter que ser resistência, não tem outra forma.”
MC Deyzerre:
“Se você está pronta, não desista, você é talentosa, você é bonita, vai lá e passa a sua mensagem. Independentemente do que esses caras falarem pra você, não dê ouvidos, só você sabe o que você passa. Use a linguagem que quiser, você vai representar muitas gente, muitas meninas vão se inspirar em você. Pode achar que não, que se sinta um lixo, mas saiba que nessa hora você vai saber que tem alguém te olhando sim, alguém te olhando como uma guerreira. Então não desista, por mais que riam de você, da sua roupa ou do seu cabelo, desistir jamais. Porque você é maravilhosa, você veio pro mundo pra arrasar, vai e se joga!”
Céllia Nascimento:
“Ela já é uma sobrevivente ou uma resistente por ser mulher e por ser preta. Então a dificuldade que ela vai encontrar quanto a escolha de ser artista não vai doer mais do que já dói. A gente precisa muito de mulheres negras na cultura. Pois somos nós a fazer a diferença se a gente não se colocar nesse lugar que é nosso, e que é necessário. As coisas vão piorar muito, então eu digo: tem o sonho? Quer ser artista? Se sente na condição para isso? Vá ser artista, mas se prepare para tanto, prepare-se tecnicamente, para quando você chegar em um lugar e for colocada a prova você consiga se sair muito bem e se mostrar superior. Porque só assim você vai conquistar o seu espaço.”