Advogadas criadoras do perfil “Me conta direito” explicam o que o caso Mari Ferrer diz sobre a justiça do Brasil
“A divulgação desse vídeo serve para a sociedade ver com os próprios olhos e entender o que acontece na maioria dos casos que tratam da violência contra a mulher, e para o judiciário ficar mais atento”. É o que comenta Fernanda de Avila e Silva, advogada, arquiteta e pós-graduanda em direitos humanos e responsabilidade social. O vídeo abordado por ela se refere à audiência do julgamento do empresário André Camargo Aranha, acusado de estuprar Mariana Ferrer em 2018. O The intercept Brasil teve acesso às filmagens e a publicação delas viralizou, gerando grande mobilização dos internautas, uma vez que os trechos mostram ataques e humilhações direcionadas a Mariana Ferrer.
O advogado de defesa de André Aranha, Cláudio Gastão da Rosa Filho, apresentou imagens da jovem durante a audiência, dizendo que ela aparecia em “posições ginecológicas”. Também insinuou que Mariana tivesse inventado o estupro a fim de lucrar com a história, já que não pagava o aluguel há 7 meses: “Isso é o seu ganha pão, não é Mariana?”. Quando a jovem começa a chorar, ele declara: “Não adianta vir com esse teu choro dissimulado, falso e essa lábia de crocodilo”.
Na audiência, estava presente o juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis, que não havia intercedido até o momento. “O juiz foi totalmente falho em não ter intervido em uma situação como essa. Totalmente negligente com o caso”, opina Fernanda. Foi só depois de Mariana suplicar por respeito que Rudson Marcos falou: “Mariana, se quiser se recompor, tomar uma água, a gente suspende, tá? Não tem problema”.
A advogada afirma que “o juiz foi omisso, o advogado agiu em excesso e o defensor público tinha o dever de defender e proteger a Mariana para que não ocorresse nenhum excesso, e não o fez.”
Veja mais em ESQUINAS
Especialista explica como o ataque ao aborto legal escancara o machismo da sociedade brasileira
Feminismo para os 99%: Por que o movimento deve se aliar a outras lutas para se fortalecer
Dhainna Leonardi também é advogada, pós-graduada em mediação, consideração e arbitragem e é sócia de Fernanda. Juntas, elas criaram o perfil Me Conta Direito no Instagram, onde comentam casos da justiça brasileira, principalmente os que dizem respeito ao direito das mulheres. Dhainna explica que “como o caso está em segredo de justiça e o que veio à tona foram frações do processo, nós, advogadas, não podemos falar sobre os erros que aconteceram no processo, e se houve erros”. Mas em relação à audiência, sobre a qual é possível comentar, ela concorda com a sócia: “Não houve cuidado com o caso e com ela. Eles foram negligentes com a Mariana, faltou empatia, faltou cautela, faltou tato”.
Ver esta publicação no Instagram
Apesar da indignação dos internautas no que diz respeito à forma com a qual o advogado de defesa tratou Mariana, Dhainna explica que ele cometeu uma infração civil e que, dentro das audiências, os advogados têm uma certa imunidade. Ela ainda ressalta que “nem tudo que é ilegal é crime.” Fernanda completa, afirmando que “isso acontece o tempo todo no judiciário. Porém, esse tipo de audiência acontece em segredo de justiça. As pessoas não sabem tamanha humilhação que as mulheres sofrem nessas audiências.”
As duas ainda explicam que o termo ‘estupro culposo’, muito repercutido após a viralização do vídeo, foi criado pela mídia e em nenhum momento foi citado no processo, em que André Aranha era acusado de estupro de vulnerável. “O termo estupro culposo desviou completamente o foco do que aconteceu e também levou à incompreensão dos fatos. O que aconteceu foi uma absolvição de provas e não uma condenação por estupro culposo ou absolvição por estupro culposo”, afirma Dhainna. Fernanda ainda ressalta que “o juiz não aceitou a defesa do André Aranha, o juiz entendeu que não há provas suficientes de que a Mariana estava vulnerável. No direito penal, quando você tem dúvida sobre o que aconteceu, o réu é absolvido, isso acontece sempre.”
Ver esta publicação no Instagram
Fernanda afirma que com uma justiça majoritariamente masculina e nesse caso específico em que todos os presentes na audiência, além de Mariana, eram homens, “é difícil colocar a culpa em alguém porque o sistema como um todo oprime vítimas e as trata sem cuidado. A gente vem de uma sociedade que tem um machismo estrutural, então é preciso mudar as bases para mudar o sistema.”