Feminismo para os 99%: Por que o movimento deve se aliar a outras lutas para se fortalecer - Revista Esquinas

Feminismo para os 99%: Por que o movimento deve se aliar a outras lutas para se fortalecer

Por Larissa Mariano : setembro 30, 2020

Com o avanço de um movimento feminista “midiático”, a luta atinge quem deveria?

Ao compararmos antigas noções machistas, conceitos e tabus de gerações anteriores com as narrativas atuais, é nítida a mudança sólida em percepções de estereótipos atribuídos às mulheres. O movimento feminista tem, sim, se expandido. Porém, nesse mesmo tempo de avanço, divisões e questões foram levantadas dentro das diferentes vertentes. O feminismo estaria de fato, principalmente com a disseminação nas redes sociais e na grande mídia, atingindo quem deveria?

Armadilhas do feminismo midiático     

No livro Feminismo para os 99%: um manifesto, as autoras e teóricas Cinzia Arruzza, Tithi Bhattacharya e Nancy Freaser dissertam sobre a necessidade de englobar recortes de classe, raça e gênero na luta feminista para, então, atuar em um campo condizente com as desigualdades sociais.

    “O feminismo que temos em mente reconhece que deve responder a uma crise de proporções monumentais: padrões de vida em queda livre e desastre ecológico iminente; guerras desenfreadas e desapropriação intensificada; migrações em massa enfrentadas com arame farpado; racismo e xenofobia encorajados; e revogação de direitos – tantos sociais como políticos – duramente conquistados.” (Feminismo para os 99%: um manifesto)

Na internet, é possível observar como o discurso propagandeado muitas vezes banaliza o movimento. A ideia de empoderamento feminino, com a venda de camisetas que estampam a frase “Girl Power” e até mesmo a postagem de fotos que realçam a sexualidade natural feminina podem parecer meios legítimos de mudança. Porém, quando analisados profundamente, os reflexos são outros.

Levantamentos como o Monitor da Violência mostram que a maioria das vítimas de feminicídio, aborto ilegal, violência doméstica e que compõem o quadro de renda mais vulnerável são mulheres pretas, indígenas, periféricas. “Porém, quem sempre discute feminismo, em grande maioria, são mulheres brancas dentro do movimento”, pontua Maíra Kubik Mano, jornalista e professora de Introdução ao Estudo de Gênero na UFBA.

Um olhar mais crítico basta para se notar que mulheres brancas, cis, e de classe média alta são as que retratam majoritariamente a vertente do feminismo liberal, seja em redes sociais, músicas, filmes, livros ou debates. Esse feminismo midiático chega até aquelas?

O “falido” feminismo liberal

Nos últimos anos, indústrias da moda, cultura e entretenimento passaram a lucrar com campanhas, slogans e estampas de frases ditas por feministas, além de venderem a ideia da sexualização do corpo da mulher como uma forma de empoderamento — contanto que fosse uma iniciativa da própria mulher. Atrizes brancas que postaram fotos, frases e bordões do movimento com esse propósito foram duramente criticadas por outros segmentos. Feministas negras, por exemplo, afirmam que esses atos ferem outras mulheres que não estão na mesma posição de privilégio. Enquanto a busca de algumas é por “empoderamento”, mulheres pretas lutam para deixarem de ser extremamente sexualizadas em todos os ambientes, inclusive o profissional.

Além disso, postagens com esses tipos de conteúdo podem expor menores de idade na internet, e a objetificação do corpo feminino, com respaldo da mulher ou não, ainda beneficia o sistema patriarcal. Por isso, o feminismo liberal é tido como “falido” para as autoras de Feminismo para os 99%. Elas o definem como algo voltado para a “quebra do teto de vidro”, já que ele promove que apenas um grupo seleto de mulheres possa escalar a atual hierarquia.

“O feminismo liberal não é anticapitalista, logo, ele compartilha a mesma lógica do patriarcado que explora e oprime as mulheres. A ideia do empoderamento liberal é capenga porque estimula o empoderamento de mulheres às custas de outras mulheres”, afirma Marília.

De acordo com o manifesto, para uma luta feminista ser de fato incisiva é necessário que esteja atrelada a uma postura anticapitalista. A divisão sexual do trabalho, quando não limita as mulheres a atividades reprodutivas e domésticas, desvaloriza e deslegitima. Isso por meio da exploração da mão de obra e a sobrecarga, com a ideia de jornada dupla — o trabalho dentro e fora de casa.

Doutora em Psicologia Social com viés feminista pela UFRGS, Marília Saldanha desenvolveu uma tese que aproxima a psicologia e o feminismo a fim de criar políticas públicas para diferentes mulheres. Acerca da pluralidade de mulheres, Marília reitera a necessidade de inclusão:  “Se quisermos um feminismo brasileiro abrangente, ele precisa estar atento aos recortes destas categorias: classe, gênero, raça-etnia, orientação sexual, idade, deficiência, identidade de gênero. As mulheres são múltiplas e suas lutas são efeitos dessa multiplicidade. A ideia central do livro 99% é que as pautas das minorias de poder sejam encampadas pelos feminismos, ou seja, que o feminismo se volte para os 99%.”

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Diálogo e escuta   

Nos últimos anos, uma demonização do feminismo surgiu ao lado de uma forte onda conservadora que deslegitima a luta. Construiu-se uma noção ideológica no Brasil de que o feminismo seria uma ferramenta partidária e um inimigo para o “atual moralismo” vigente na nação.

A discussão feminista continuou a se expandir dentro de determinada bolha, mas limitada exclusivamente a esse nicho. Para disseminar o movimento para além do meio já familiarizado, é necessário um espaço de diálogo feito através de identificações, nos meios de convivência diários. “Acredito muito na criação de campos de diálogo constantes e em qualquer circunstância. Levantemos questões com a vizinhança, com as pessoas da família, com pessoas estranhas na vida social. Quando conversamos sobre machismo, feminicídio e temáticas afins com pessoas menos familiarizadas, o melhor a fazermos é ocuparmos uma posição interessada no outro. A partir daí, temos mais chance de compreendermos o que esse outro ignora ou entende de modo deformado”, diz Marília.

Segundo ela, além de levantar questões, “precisamos cultivar uma escuta tão atenta quanto interessada. Não é fácil, mas é possível. Esse modo precisa pautar toda e qualquer interação se quisermos realmente cultivar democracia e disseminar o feminismo.”  Maíra concorda:  “Não é só chegar falando, apresentando algo. Um espaço de diálogo precisa ser criado, as pessoas também precisam apontar seus pontos para entendermos seu meio social e então se iniciar uma conversa”.

Acesso ao movimento

Ao pensarmos as questões de classe, temos em vista um Brasil que foi erguido sobre estruturas desiguais e as mantém até hoje. Dentro do feminismo, essas estruturas acabam por criar divisões de acesso, e, por isso, atravessar a bolha pode ser tão difícil.

Historicamente, a elite intelectual sempre manteve privilégios acadêmicos. Professores, estudiosos e teóricos compõem o campo progressista, porém de maneira afastada da realidade das minorias e periferias do País. Segundo Marília, o conhecimento de pautas feministas esbarra em diversos problemas do Brasil, um deles é o acesso à educação.

“Muitas pesquisadoras, professoras e estudantes universitárias nos anos 1970 viajavam para pesquisar em universidades no exterior e voltavam ainda mais entusiasmadas com o feminismo que estava sendo produzido na Europa e nos Estados Unidos. Mas estávamos na ditadura, então era preciso lutar contra a ditadura e esconder o feminismo e o ser feminista. Enquanto uma parcela da população de mulheres refinava seus estudos, outras mulheres das classes desfavorecidas mal conseguiam se alfabetizar”, expõe a psicóloga.

O Feminismo para os 99% destrincha diversas questões do movimento, aborda o papel colaborativo que homens devem exercer e explicita a importância da interseccionalidade. Para as autoras, enquanto o feminismo não inserir mulheres trans, recortes de classe, raça e questões ambientais, continuará sendo um movimento de apenas algumas, e não de todas as mulheres.

  “O feminismo para os 99% é um feminismo anticapitalista inquieto – que não pode nunca se satisfazer com equivalência, até que tenhamos igualdade; nunca satisfeito com direitos legais, até que tenhamos justiça; e nunca satisfeito com a democracia, até que a liberdade individual seja ajustada na base da liberdade para todas as pessoas.” (Feminismo para os 99%: um manifesto)