Projeto de fé: o que querem os evangélicos na política?  - Revista Esquinas

Projeto de fé: o que querem os evangélicos na política? 

Por Lucas Brito : dezembro 5, 2020

Com pautas majoritariamente formadas em torno do conservadorismo, a ascensão evangélica na política nos últimos anos é maior e mais plural que parece

Segundo o relatório do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (DIAP), as eleições de 2018 foram responsáveis por deixar o congresso nacional mais conservador se comparado às eleições anteriores. Em grande parte, essa postura em relação aos costumes deve-se ao aumento de parlamentares evangélicos. Atualmente, são 105 deputados e 15 senadores que integram a Frente Parlamentar Evangélica. Formalizada desde 2003, a chamada Bancada Evangélica ganhou forças com o ex-líder da câmara dos deputados, Eduardo Cunha.  

De 33 partidos registrados no Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 20 possuem ao menos um integrante que faça parte dessa frente parlamentar, que diz representar 31% da população declarada evangélica no Brasil, segundo dados do Datafolha. O que chama a atenção para Flávio Conrado, antropólogo e pesquisador do Instituto de Estudos da Religião (ISER), é a pluralidade desse grupo. “A gente se acostumou a pensá-los como  bloco hegemônico, mas é uma participação plural, tem bastante igrejas”, diz o especialista. 

Ideologias

Essa diversidade, no entanto, se une quando os assuntos são sensíveis à religião. “Você tem uma participação que foi se construindo em torno de algumas agendas de pautas morais, aborto, a questão LGBT, direitos sexuais e reprodutivos. Se tornou um tema que ganha grande apoio desses parlamentares.”, completa o antropólogo. 

Às vésperas da última eleição nacional, a Frente Evangélica lançou ‘O Brasil para os brasileiros’, uma série de propostas que consideravam prioridade para o governo. Os projetos se dividem em ideológicos, como o Escola sem Partido – que visa combater a doutrinação ideológica nas escolas – e econômicos, como a reforma da previdência, parcerias público-privadas, terceirizações e outros. Entre demais projetos já propostos, estão o Estatuto da família, na tentativa de proibir adoções por casais homoafetivos, e o ensino de criacionismo nas escolas, de autoria do deputado Marcos Feliciano (Republicanos).

Divergências entre políticos evangélicos

 As ideias, porém, não são apoiadas por todos os evangélicos eleitos. É o caso da deputada federal Benedita da Silva (PT-RJ), que, apesar de religiosa, não costuma votar com a bancada, e de Carlos Bezerra Jr (PSDB-SP), pastor, ex- secretário de esporte e lazer, e eleito para o quarto mandato como vereador. “Eu só vou conseguir acreditar de verdade numa Bancada Evangélica quando ela conseguir extrapolar um ou dois temas morais, a defesa de grupos exclusivos e impérios eclesiásticos, e, de fato, tiver uma visão de país que contemple a diversidade evangélica”, relata o também médico. 

A crítica está relacionada ao fato de igrejas gigantescas estarem predominantemente em alguns partidos. É o caso da Assembleia de Deus com o Partido Social Cristão (PSC) e a Igreja Universal do Reino de Deus com o Republicanos. Para o pastor psdbista, as propostas do grupo não estão em sintonia com os principais assuntos tratados na bíblia. “São mais de dois mil versículos falando do pobre, do órfão, da viúva e do estrangeiro. Por que falam tanto das coisas que a bíblia fala tão pouco mas tão pouco das coisas que a bíblia fala tanto?”, ele questiona. 

Com o crescimento da Bancada, as preocupações dos parlamentares ultrapassaram a esfera dos costumes, é o caso do PL 7318/17, de autoria do Pastor Marcos Feliciano, para implementar a disciplina de educação financeira nas escolas. Para o sociólogo e pesquisador-visitante da Universidade Federal da Bahia, Rafael Rodrigues, esse movimento “tem a ver com uma galera que estava com uma plaquinha ‘estamos a venda’, e muitos empresários precisando passar votação começaram a utilizar a ‘bancada do Cunha'”. O termo é utilizado em referência a Eduardo Cunha, preso preventivamente no final de 2016 por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de dívidas.

“O Funaro [operador financeiro de Eduardo] disse que todo mundo sabia que, no Congresso, se você precisasse de dinheiro, era só falar com o Cunha, mas, em troca, perdia o mandato, porque votaria somente nas coisas que ele queria”, diz o sociólogo que entende que o início da votação de pautas, além das identitárias, pelos evangélicos, está relacionada ‘mais aos patrocinadores do Cunha’. 

Conservadorismo e religião

Essa transcendência dos assuntos morais, para Flávio, está ligada a uma reconfiguração do que é ser conservador no Brasil. “Por conta das próprias alianças que foram feitas entre a Frente Parlamentar Evangélica e outros grupos, como eles têm capacidade limitada dentro do congresso, é normal que esses parlamentares se aliem a determinadas pautas”. Dentre os grupos que muitas vezes os apoiam, estão a bancada ruralista, do boi, e da segurança pública, da bala. 

Quem vê o apoio evangélico a Bolsonaro, personalizado pela pastora Damares Alves à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, talvez não imagine que o grupo já foi apoio de governos petistas. Como foi o caso do pastor Marcelo Crivella (Rep-RJ), atual prefeito do Rio de Janeiro, ministro da pesca durante o governo Dilma.

“Isso não é um fenômeno evangélico, mas religioso. É o fenômeno de uma atratividade maior pelo conservadorismo”, avalia Carlos sobre o atual alinhamento evangélico com movimentos de direita. O pastor, que tem inspirações como o Arcebispo Desmond Tutu, símbolo da luta contra o apartheid na África do Sul, ressalta que, muitas vezes, os religiosos foram protagonistas em lutas progressistas. “Há muitos que vieram antes de nós e fizeram grandes contribuições”. 

Já para Rafael, a união dos evangélicos com a esquerda sempre foi pragmática. “Ao passo que, entre a direita, pelas suas pautas de costumes, isso virou uma agenda programática”. Para o pesquisador, além da ligação com alas reacionárias, existe uma nova fase evangélica, “a ideia de que podem dominar todas as esferas da sociedade”.

Estado laico com políticos evangélicos

A incidência evangélica na política ainda suscita uma discussão mais profunda sobre um possível rompimento do Estado laico. Constitucionalmente, é garantido ao cidadão a liberdade de crença e proibido ao governo estabelecer cultos de qualquer credo. Porém, ações como o perdão de dívidas de igrejas colocam em dúvida a isonomia do Estado. 

“Vão ter grupos políticos que não vão querer evangélicos na política, uma laicidade que os exclui totalmente do espaço público. Outros vão dizer que dá para ter grupos religiosos, desde que os valores religiosos não cheguem e queiram legislar para a maioria”, diz o pesquisador do ISER, Flávio Conrado. 

“Nós, homens e mulheres de fé, sentamos à mesa no espaço público nem como mais nem como menos que ninguém, mas como mais um desses atores do jogo democrático”, revela o vereador do PSDB, que finaliza falando sobre a importância da liberdade de opinião do setor religioso. Mas, ao mesmo tempo, não pode utilizar-se dela para o “massacre de minorias, retirada de direitos, desrespeito, exclusão e marginalização”.

Nota: Houve uma tentativa de contato com André Ferreira (líder do PSC na Câmara) e com Marco Feliciano (deputado federal e pastor) para a produção da reportagem, mas sem retorno.