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Por Renan Porto Edição #62

O preço da fé

Ex-fiéis da Igreja Universal do Reino de Deus se rebelam contra a cobrança de dízimo e o controle de suas vidas pessoais

Colocando a mão sobre a cabeça de cada um dos fiéis postados frente ao altar, o pastor Michel Ribeiro clama: “Você, espírito maligno, seja arrancado. Você, que trabalha para desgraçar a vida amorosa dessa pessoa, seja acorrentado!”. Os fiéis vibram e repetem, gritando, de olhos fechados e mãos erguidas, “meu Deus, tire de mim o Diabo que me impede de ser amado! Eu vou ser feliz!”. O pastor faz uma ressalva, “se você não fizer a sua parte e não comparecer nesses encontros toda semana, é natural que a sua vida amorosa seja um inferno e seu casamento, destruído”. Por isso, recomenda a todos que façam o mesmo, pedindo aos fiéis que repitam, “eu vou obedecer”.

Mas a obediência não basta. Para deixar de ser um “fracassado” na vida amorosa, é necessário também que se cumpra um procedimento que consiste em escrever sua meta afetiva em um envelope entregue pelo pastor e devolvê-lo com uma quantia em dinheiro no culto seguinte. “Você vai colocar nesse envelope a melhor oferta que você tem”. Ainda, o pastor sugere aos fiéis, em sua maioria com idades entre 60 e 70 anos, que ofertem valores correspondentes a suas idades.

É com esse propósito que Eni, de 49 anos, comparece todas as quintas-feiras à Igreja Universal da Vila Mariana, na Zona Sul de São Paulo, para a reunião do amor. Depois de ter sido deixada pelo marido por causa dos grandes valores que oferecia à Universal, a fiel vê nas reuniões uma nova oportunidade. “Isso aqui é maravilhoso”, comenta Eni. “Eu tive um surto psicótico há um tempo e a Universal tem me ajudado muito na recuperação. Tenho certeza de que vou achar uma pessoa para mim”. A fiel prefere não ser fotografada e hesita em contar sobre sua relação com a Igreja, pois no passado já foi repreendida pelos pastores por esse motivo. De acordo com o pastor Michel Ribeiro, a conduta é aplicada também à cúpula da Igreja. Além de não permitir que fotos sejam feitas dentro do local, o pastor diz ser necessária uma autorização da chefia da Universal para que possa se pronunciar.

Alexandre Silva, auxiliar do pastor Michel Ribeiro, alega que esses cuidados precisam ser tomados devido às mentiras que circulam a respeito da Universal. “As pessoas não conhecem a Igreja e o bispo Edir Macedo. Esse homem é ungido no Espírito Santo, ele é maravilhoso”. Entre as histórias de superação que afirma ter presenciado, o ajudante conta a sua. Ao ser acolhido pela Universal, ele estava viciado em drogas. Aos 22 anos, o fiel afirma ter se transformado em outra pessoa devido à Igreja e, hoje, procura ajudar os que chegam desamparados ao templo, onde presta serviços. “Aqui tem dois mil lugares. Em cada banco desses tem uma pessoa que já passou por tanto sofrimento sentimental e espiritual que a gente não faz nem ideia. As pessoas precisam de ajuda”. Ele é voluntário da Igreja. Além de trabalhar como auxiliar de pastor sem receber por isso, o fiel colabora com a limpeza dos banheiros da unidade da Vila Mariana e com o custeio de produtos de higiene para abastecê-los. “Ninguém aqui me obriga a nada, eu faço isso porque quero. É preciso servir a Deus”, afirma.

Ex-frequentadora da Igreja Universal localizada no Planalto Paulista, na zona sul de São Paulo, Daniele Silva, de 33 anos, vê os serviços voluntários de outra forma. Tendo sido voluntária desde os 14 anos, no tempo em que frequentava a Igreja, a ex-fiel afirma que há uma pressão psicológica por parte dos pastores que intimida os fiéis. Por mais que não existissem obrigações formais, ameaças subjetivas eram feitas. Ela conta que não conseguia negar por medo. “Quando eu dizia que não, os pastores alertavam que eu não estava sendo útil a Deus”. A ex-fiel revela que chegou a ofertar todo o seu salário e também seu décimo terceiro perante à promessa da solução para seus problemas. “Eu ficava na esperança, mas nada acontecia”. Diz ainda que, quando questionava os pastores a respeito da ineficácia de suas ofertas, ouvia sempre que não havia dado o melhor de si.

Quando eu dizia não, os pastores alertavam que eu não estava sendo útil a Deus – Daniele da Silva, ex-fiel

O milagre da multiplicação

Os questionamentos de uma ex-fiel como Daniele Silva, contudo, apontam para questões bem mais complexas ligadas às práticas religiosas no país. O perfil do fiel cristão mudou no Brasil. Em pesquisa divulgada pelo Datafolha, cerca de 29% dos brasileiros disseram-se evangélicos enquanto 50%, católicos, em 2016. Em 1994, apenas 14% da população intitulava-se evangélica, enquanto 75% dizia-se católica. Na visão do teólogo Luiz Antônio Capriello, essa migração está ligada, por exemplo, ao fato de as igrejas consideradas neopentecostais – às quais 75% dos evangélicos no país estão vinculados – apresentarem um espectro de aceitação de fiéis mais amplo do que a Igreja Católica. Sob a promessa de uma mudança de vida, igrejas como Assembleia de Deus, Universal do Reino de Deus, Congregação Cristã e Quadrangular procuram acolher dependentes químicos, prostitutas e homossexuais. Esses grupos, como afirma o teólogo, seriam ignorados pela Igreja Católica.

Outra característica do movimento neopentecostal seria o culto ao dízimo, prática adotada por todas as igrejas cristãs, mas levada com muito rigor pelas novas instituições religiosas. Nesse contexto, a Igreja Universal do Reino de Deus, uma das maiores neopentecostais do Brasil, é alvo de críticas a respeito do modo como faz a cobrança das ofertas por parte de seus fiéis. Em grupos do Facebook e canais no YouTube, antigos frequentadores militam contra a instituição fundada pelo bispo Edir Macedo. Para eles, a cobrança de dízimos e ofertas, a tentativa de controle sobre as decisões dos fiéis e a coerção política são algumas das principais críticas feitas.

Um dos principais fatores que mantêm os fiéis colaborando com os dízimos e as ofertas, segundo Daniele Silva, é a fundamentação bíblica que os pastores utilizam nos discursos. Um dos trechos mais repetidos com esse propósito nos cultos da Universal é o décimo versículo do terceiro capítulo do livro Malaquias (Malaquias 3:10):

“Trazei todos os dízimos à casa do tesouro, para que haja mantimento na minha casa, e depois fazei prova de mim nisto, diz o Senhor dos Exércitos, se eu não vos abrir as janelas do céu, e não derramar sobre vós uma bênção tal até que não haja lugar suficiente para a recolherdes.”

Para o teólogo Luiz Antônio Capriello, por mais que o trecho faça menção ao dízimo, não consta na Bíblia a lógica cultivada no discurso da instituição. “Eles trabalham com o que se chama de teologia da prosperidade, ou seja, quanto mais você oferece a Deus, mais ele te devolve”. Segundo o teólogo, isso não está claro na Bíblia. Por sua vez, a Igreja Universal alega em seu site oficial que os dízimos e as ofertas são “demonstrações de fidelidade do servo para com seu Senhor” e que, por meio delas, seria obtida uma vida abundante.

A Igreja Universal do Reino de Deus conta com mais de seis mil templos, 12 mil pastores e 1,8 milhão de fiéis no Brasil, de acordo com dados de 2017 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Fundada no ano de 1977, a instituição possui hoje 76 emissoras de rádio e mais de 20 retransmissores da TV, entre elas, a Rede Record, uma das maiores emissoras de TV aberta do país. Isso faz da igreja do bispo Edir Macedo a maior detentora de concessões televisivas no Brasil. No exterior, a Universal atua há 20 anos dentro da Índia, disseminando a evangelização em um país majoritariamente hinduísta, e desde 1989 e 1990 em Portugal e na Espanha, respectivamente, além de países da América do Sul como Argentina e Uruguai.

Além disso, a instituição possui presença nos meios digitais. Com quase 2,5 milhões de fãs no Facebook, a Igreja Universal oferece em seu website oficial os links para acessar todas as suas redes sociais. São 250 mil inscritos no canal do YouTube, três mil publicações no Instagram e 210 mil seguidores no Twitter. Há passagens bíblicas, vídeos de alguns cultos realizados e ainda uma área para doações online.
Fábio Lacerda, doutor pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Sociais (FFLCH/USP), afirma que o alcance da Universal e de igrejas semelhantes seria um dos fatores responsáveis pela grande representatividade dos interesses religiosos no cenário político nacional. Aliado a isso, seria fundamental o modo como elas estão difundidas em unidades por todo o território nacional.

Lacerda constatou que 50% dos candidatos apoiados pela Universal foram eleitos em 2002 para o Congresso Nacional, o que conferiu à instituição uma taxa de eleição superior a de qualquer partido. Tendo em vista que um terço dos brasileiros são evangélicos, Lacerda considera plausível que pessoas se sintam representadas por candidatos evangélicos. Porém, não explica porque elas colocam a religião acima de suas outras características. “A grande maioria das mulheres evangélicas, por exemplo, prefere votar em candidatos evangélicos a votar em candidatas mulheres. Atualmente, a Igreja conta com cerca de 15% de deputados federais ligados ao setor evangélico. Nas eleições de 2014, cinco entre os vinte deputados mais votados pertenciam à instituição, compondo assim a chamada “bancada evangélica”.

Um dos principais componentes dessa bancada seria o Partido Republicano Brasileiro (PRB). Fundada em 2006, a sigla teve o apoio da Igreja Universal. Daniele Silva conta que, após cobrança dos pastores, foi voluntária colhendo assinaturas para a obtenção do registro do partido no Tribunal Superior Eleitoral (TSE). “Eles falavam que o partido ia defender os interesses de Deus. Por isso, todo mundo da Igreja votou nos candidatos que eles indicavam”, afirma.

Militância online

Débora de Castro, de 30 anos, ex-obreira da Universal, recorda que no tempo em que frequentava a unidade do Recreio da Universal, no Rio de Janeiro, campanhas políticas eram feitas dentro da igreja em defesa dos candidatos do PRB. “Era uma apelação. A maioria dos fiéis não tem consciência política. Fica muito mais fácil para eles não ter que pesquisar em quem votar”, observa.

Somado à desconfiança a respeito do discurso por detrás das cobranças financeiras, o episódio fez com que Castro se desligasse da Universal. Após passar cinco anos como fiel, ela não percebia mais a igreja da mesma maneira que quando se converteu. “Eu entrei na Universal com a minha mãe. A gente sempre assistia aos programas na Rede Record, em que várias pessoas diziam que tinham mudado de vida. E, por termos uma vida tão difícil, nós estávamos muito depressivas com tudo, então a Universal acabou sendo a promessa de mudança que a gente precisava naquele momento”.

Depois de ter se desvinculado da instituição, Castro passou a compartilhar no Facebook mensagens sobre o que acredita ser incoerente na igreja. Atualmente, existem na rede social grupos com essa finalidade. Entre eles estão o Não sou mais a Universal, com 18 mil membros, Por trás do altar da Universal, com 16 mil membros e Eu não faço parte da sujeira Universal, com três mil membros. Esse último é administrado por Miriam Miranda, que conta que frequentou a Igreja Universal em Belo Horizonte durante 15 anos e, com o tempo, passou a desconfiar das cobranças financeiras constantes da Igreja. Acessando por acaso um grupo como esses, Miranda se deparou com várias pessoas expondo os motivos pelos quais haviam deixado a instituição, o que acabou condizendo com suas desconfianças. Inserindo-se nesse cenário de “militância online”, em março de 2016, Natan Silva, ex-bispo da Igreja Universal, criou um canal no YouTube que hoje conta com 35 mil inscritos. Segundo ele, a princípio, o objetivo do canal era mostrar uma outra versão sobre seu desligamento da instituição em 2007. Na ocasião, o bispo ministrava cultos na sede da Igreja Universal Júlio de Castilhos, em Porto Alegre, quando lhe foi designada a missão de recolher 250 mil reais com urgência para o pagamento das parcelas da compra da emissora Record News. “Naquele dia, eu subi no altar e não fiz o que foi pedido. Não porque eu não iria conseguir, mas porque eu não estava ali para essa finalidade. Uma semana depois, eu saí”, conta.

De acordo com o ex-bispo, ao se desligar da instituição, a Universal fez um trabalho para macular sua imagem, com medo de que uma dissidência da Igreja fosse criada, podendo atrair outros fiéis da Universal. Silva conta que a cúpula da instituição chegou a tentar convencer sua esposa a buscar o divórcio, oferecendo vários benefícios para que ela continuasse na religião. O ex-bispo conta ainda que foi dito que ele havia roubado a Universal e cometido adultério. Na época, não havia como se defender. Com a ascensão da internet, o agora youtuber conta que viu uma oportunidade de desmentir o que havia sido dito a seu respeito quando só as redes de televisão da igreja podiam falar sobre o assunto.

Silva afirma ainda que o fato de ser bispo não o impedia de ser cerceado a todo tempo pela cúpula da Universal. “Lá, pastor e bispo não têm vida própria. Eu, por exemplo, me submeti a uma vasectomia contra a minha vontade a pedido da Igreja”. O ex-bispo conta que a Universal fechou um “pacote” com uma clínica médica que incluía o procedimento de vasectomia de cinquenta pastores. Tudo, segundo ele, para que esses pastores pudessem ser promovidos ao cargo de bispo, conforme explica o ex-bispo em vídeo publicado em seu canal do Youtube. Entretanto, em seu site oficial, a instituição rebate dizendo que, na verdade, apoia um planejamento familiar e que muitos bispos e pastores da Universal possuem filhos. Por mais que não fosse expressamente uma obrigatoriedade, como conta Silva, aos pastores não caberia o arbítrio sobre essa questão. “Lá você diz sim senhor ou não senhor, sendo que o não senhor representa uma punição”, diz Silva.

Com antecedência, esquinas informou à Igreja Universal sobre o teor da reportagem e declarações citadas no texto para que a instituição tivesse a oportunidade de responder as reclamações e questionamentos de seus ex-fiéis. Em e-mail enviado à redação pelo departamento de Comunicação Social e Relações Institucionais (Unicom), a Universal não se pronunciou até a data de fechamento desta edição ocorrida em dezembro de 2017, apenas reiterando durante três semanas que “a demanda seria analisada” e que qualquer manifestação por parte da Igreja seria encaminhada posteriormente.