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Por Isabela Guiduci, Maria Luisa Reodrigues e Rafael Fernandes Edição #62

Por uma lei mais humanizada

O advogado Lucas Sada fala sobre a situação judicial do catador de lata Rafael Braga e sobre a seletividade penal que assola o País

Em junho de 2013, durante as manifestações do Rio de Janeiro contra o aumento do preço da passagem do transporte público, Rafael Braga Vieira foi detido por policiais militares. Acusado de estar carregando duas garrafas com líquido inflamável com pequenos pedaços de pano presos ao gargalo, os PMs alegaram que o rapaz teria a intenção de preparar um “coquetel molotov” (arma química caseira para provocar incêndios em manifestações). O caso foi repreendido por parte da população, que afirma a inocência de Braga, alegando que ele foi alvo de racismo e, por isso, incriminado. O Instituto de Defensores de Direitos Humanos (DDH) assumiu a defesa em dezembro de 2013.

Outra acusação levou Braga para a prisão novamente em 2016. Dessa vez, denunciado por tráfico e incriminado por estar carregando material semelhante a entorpecentes. O réu alega que foi obrigado pelos policiais a carregar uma sacola e que também teriam oferecido a ele cocaína e o ameaçado de estupro. O rapaz foi vítima de tuberculose dentro da prisão e conseguiu, pelo menos durante o tratamento de saúde, a prisão domiciliar em 2017.

Um dos advogados que acolheu o caso, membro do DDH, foi Lucas da Silveira Sada. Formado em Direito pela Universidade Cândido Mendes, é especialista em Direito Penal e Criminologia. A esquinas conversou com o advogado.

ESQUINAS Há quanto tempo você atua no DDH?

O meu contato com a advocacia popular e com direitos humanos veio por meio das manifestações de 2013. Formaram-se coletivos de advogados para prestar auxílio aos manifestantes detidos, arbitrariamente ou não. Nessa época, o DDH já existia, desde 2007. Como já tinha certa institucionalidade, eles não faziam só os atendimentos na delegacia, faziam os pedidos judiciais de habeas corpus. E essa coisa de ir além foi o que me interessou muito

ESQUINAS Por que o DDH acolheu o caso de Rafael Braga?

Foi uma manifestação muito violenta e muita gente foi detida no dia. Alguns companheiros do departamento foram para a delegacia, atenderam outras pessoas, mas não atenderam o Rafael. O DDH, nessa época, estava com uma equipe reduzida. A gente sabia do caso do Rafael, mas não sentiu condições de atuar no processo. Foi no contexto das manifestações que a gente começou a formar um corpo. Muitas pessoas, como eu, entraram. O tempo foi passando, foram menos de seis meses até a condenação dele. Nesse período a gente formou uma equipe muito maior de voluntários e já havia, de fato, condições de tocar a defesa dele. A sentença do Rafael, de 2013, deixa claro que dentre as motivações está a suposta intenção dele de usar aquilo [garrafas com líquido inflamável e panos] na manifestação, então era um “crime de manifestação”. A gente pegou o caso nesse contexto, a partir desse entendimento de que o caso tinha relação com a nossa atuação das manifestações, que era uma condenação absurda e merecia uma defesa efetiva.

ESQUINAS Os casos que o DDH acolhe são semelhantes com o caso de Braga, no sentido de condenações consideradas absurdas?

Hoje em dia, o nosso projeto tem como foco fazer pedidos de habeas corpus para presos provisórios, com o recorte atual para aqueles acusados de crimes pela Lei de Drogas (lei 11.343, de 2006), basicamente por tráfico e associação ao tráfico. Então, é parecido com o Rafael no sentido desse caso atual (2016). A gente já fez vários cursos de formação em direitos humanos em favelas com a lógica de possibilitar a essas pessoas, que estão no território mais submetido às violações, a conhecerem seus direitos, que possam fazer sua defesa direta. Permanecemos ainda com alguns casos de responsabilidade civil contra o Estado por violência policial, inclusive nas manifestações.

ESQUINAS O caso de Braga teve dois acontecimentos, o de 2013 e esse mais recente da prisão por drogas. Você acredita que o caso de 2013 interferiu nas negativas aos pedidos iniciais de habeas corpus, em 2016?

Antes de o Rafael ser preso em 2013, ele já tinha sido preso outras duas vezes. Eu diria que tanto essas condenações anteriores quanto a condenação de 2013 certamente infleunciaram na atuação policial, na atuação do Ministério Público e no momento da sentença. As duas passagens anteriores do Rafael eram por tentativa de roubo. Certamente, quando foi detido pelos policiais e levado para a averiguação, o fato de ter condenações anteriores e de ser um “regresso do sistema” foram fatores decisivos para ter sido falsamente incriminado com a posse do suposto “coquetel molotov”. Isso é uma coisa que pesa no olhar que a polícia teve para ele, pesa no momento de se proferir a sentença e no momento de dosar a pena. Do memso jeito, foi um fator importante para essa última condenação.

ESQUINAS Como as condenações anteriores pesaram?

Rafael Braga foi abordado novamente em 2016 e ele estava com uma tornozeleira eletrônica. Foi isso que despertou a atenção dos policiais. A gente chama de estereótipo criminal, que é a imagem socialmente construída do delinquente, que associa ao crime e ao criminoso características estéticas, raciais e sociais. Durante todo o processo, em todas as decisões negativas que a gente teve, o fato de ele ter um histórico com a justiça criminal foi citado recorrentemente. É como se a pessoa que já tem uma passagem pelo sistema penitenciário, pelo sistema de justiça criminal, houvesse contra ela uma reversão da presunção de inocência e ela passasse a ter uma presunção de culpabilidade. Como essa pessoa já foi considerada uma vez criminosa, todas acusações que fazem contra ela parecem caber, parecem se encaixar. Não diria que influencia no sentido de que o juiz o condenou porque o Rafael é um preso político ou algo do tipo, não penso que seja isso. É uma questão normal da justiça criminal de ter um olhar extremamente punitivo sobre os reincidentes.

ESQUINAS Qual argumento utilizado pelo juiz Ricardo Coronha Pinheiro para negar a liberação de algumas evidências do dia em que Rafael foi preso, como o registro do GPS da tornozeleira eletrônica utilizada por ele e o registro das câmeras da viatura?

O caminho do GPS a gente conseguiu, só que o GPS tem uma precisão não muito perfeita. Acabou que não foi tão útil para a tese que a gente queria construir. Até porque essa contradição que houve entre os policiais (no caso de 2016), que poderia ser demonstrada pelo GPS, foi considerada de menor importância pelo juiz. A contradição seria a de que há um policial que diz que ele foi levado direto para a delegacia, outro diz que ele passou pela base da UPP. O que seria muito importante conseguir eram as câmeras da viatura. Mostraria uma cena que aconteceu, sob a qual há uma divergência clara de narrativa entre os policiais e o Rafael, que diz que dentro da viatura ofereceram cocaína para ele. Um diálogo que, se tivesse acontecido, tornaria a prisão ilegal pelo comportamento dos policiais. Essa prova foi pedida na segunda ou terceira das audiências e o juiz basicamente entendeu que era uma prova protelatória, desnecessária.

ESQUINAS A mobilização popular, como a campanha “Libertem Rafael Braga”, influencia o caso?

É difícil dizer o quanto influencia. Até dois meses atrás, nunca tinha influenciado, porque a gente perdeu praticamente tudo que se fez no caso do Rafael. A gente só não perdeu no ano da execução penal (2014), conseguiu progredir o Rafael para o regime semiaberto, em dezembro daquele ano, e para o regime aberto, em 2015. Eu não diria que essa decisão em si, da execução penal, tivesse algo a ver com o clamor do caso. Eu acredito que pelo perfil do Ministro da Justiça, é uma decisão que poderia dar em outras situações. Tem uma coisa interessante que é o argumento que a gente utilizou no penúltimo habeas corpus, aquele que buscava a liberdade plena enquanto o processo durasse. A gente alegou que durante muitos anos o Judiciário decretava a prisão de acusados com base no clamor social, na repercussão do fato, na expectativa da sociedade em relação a uma resposta do Judiciário. Se durante muito tempo se utilizou o clamor da sociedade por punição para manter essas pessoas presas, por que não usar esse clamor agora de modo reverso para conceder liberdade? Eu diria que a gente tem expectativa que o clamor social sensibilize os julgadores que vão avaliar a apelação do Rafael, mas eu não conseguiria dizer se isso ajudou ou atrapalhou.

ESQUINAS Vocês percebem um índice maior de casos relacionados a pessoas negras e/ou de classe social baixa que são prejudicadas quando se trata de seletividade penal ou injustiça judicial?

Na nossa visão é que sim. A seletividade é umas das características intrínsecas de qualquer sistema punitivo, porque é impossível punir todos os comportamentos que são etiquetados pela lei como criminosos. O Brasil, atualmente, tem mais de 1600 condutas que são criminalizadas abstratamente, o que a gente chama de criminalização primária. É impossível que qualquer sistema de Justiça dê uma resposta a todos esses fatos. É preciso selecionar quais fatos vão receber mais atenção. E é essa seleção que tem um efeito de reproduzir as assimetrias sociais de classe e raça, sobretudo no caso do sistema penal. Então, não é que seja exatamente uma decisão deliberada dos agentes do sistema de justiça criminal de “devemos prender negros e pobres”, mas é toda uma ideologia que condiciona a atuação desses agentes. É mais fácil prender quem está na rua e quem tem poucas defesas para ter acesso aos meios de comunicação para reclamar sua inocência e contestar a versão oficial. Quem estiver mais vulnerável ao sistema penal vai ser alvo prioritário.

ESQUINAS É comum o DDH ter conhecimento de presos que contraem doenças como a tuberculose, que foi o caso de Rafael Braga?

A gente tem, em primeiro lugar, um sistema carcerário que é declaradamente inconstitucional. As pessoas que estão privadas de liberdade sofrem desde tortura a condições insalubres, passando por todo tipo de sofrimento ilegal que é imposto aos condenados. Desse cenário de barbárie do sistema carcerário, obviamente advém uma afetação à saúde e à dignidade dos presos. No caso do Rafael, ele foi vítima de tuberculose, e sobre essa doença temos alguns números. Existe um dado de 2015 do Ministério da Saúde que informa que a incidência de tuberculose no sistema carcerário é 28 vezes maior do que na população em geral. Temos um dado recente da Defensoria Pública que mostra que a quantidade de pessoas que estão morrendo no sistema carcerário do Rio de Janeiro vítimas de doenças tratáveis é enorme. Se eu não me engano, nos primeiros cem dias, morreu um preso por dia nesse sistema de doença relativamente simples de tratamento ou doença tratável.

ESQUINAS O que vocês esperam que aconteça após o final do período de prisão domiciliar, concedido a Rafael para tratar a doença?

Entramos com um habeas corpus no Tribunal, pedindo a substituição da preventiva pela domiciliar. Perdemos no Tribunal e conseguimos pelo Supremo Tribunal de Justiça, em uma decisão liminar. Então, temos dois recursos tramitando no STJ, esse habeas corpus da prisão domiciliar, que vai ser confirmado, e outro que vai ter validade e eficácia após esses seis meses (de tratamento), que é um recurso que visa a uma liberdade ampla para Rafael durante o julgamento da apelação, ou até que seja julgada. Esse habeas corpus que está no STJ não é difícil de ser concedido, justamente porque a acusação contra o Rafael não tem nenhuma gravidade específica. Ele foi preso sozinho, sem armas, sem resistir a ação policial e com pequena quantidade de droga. O fato de ele ser reincidente, no entendimento da maior parte dos tribunais brasileiros, é suficiente para mantê-lo preso. É muito difícil dizer se a gente vai ter sucesso ou não em absolver o Rafael nesse recurso. Os tribunais mantêm esse tipo de condenação, por mais contradições e incongruências que os depoimentos de policiais tenham entre si e com a palavra do testemunho de defesa. Normalmente, se dá um crédito muito grande para a fala dos policiais, mesmo quando ela é contraditória. Então, a gente está na tentativa de reverter esse cenário.