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Por Guto Martini Edição #62

Cotidiano número 01

O cheiro desta cidade é pior às 6 horas do que às 18 horas. Vai por mim: de manhã o estômago vira com qualquer coisa. No Metrô, por exemplo, pegar a Linha Vermelha do Tatuapé até o Anhangabaú é um teste de resistência. Mas tem uma hora que, sabe, foda-se. Você se acostuma com a mistura de cheiros de hidratante, subaca disfarçada com desodorante vagabundo e bafo matinal. Não tem mais embrulho no estômago, só cansaço da noite mal dormida, conformismo e um pré-estresse antes de entrar no serviço.

“Ei, garoto, isso significa que você é um proletário. Bem-vindo à realidade, porra!”

É verdade. Eu era um proletário. Eu e a Stephany. Cara! Foi ela que me deu a mão quando tropecei na vida adulta. Precisava muito de grana e ela fez uma indicação no lugar que trampava: a Uranet. Uma empresa de telemarketing no Centro de São Paulo. Minha amiga era dessas punks paulistanas de moicano, coturno e jaqueta de couro rasgada. Ela queria ser cineasta, mas ainda não tinha nada muito concreto. Estava metida num relacionamento bosta e um pouco perdida na vida. Como não podia se dar ao luxo de ficar parada, foi atrás de arranjar dinheiro num dos poucos negócios que aceitam gente de visual “diferentão”. No telemarketing, eles estão pouco se fodendo, a única regra é que não pode bermuda e coisas que a etiqueta coxa chamaria de “indecentes”. De resto, sem problemas.

Eu tinha acabado de entrar na faculdade de Jornalismo e conseguir um estágio logo assim, no primeiro mês, era complicado. Então, com meu velho em cima de mim em casa, atirei-me com a Stephany para o time dos cobradores do gerúndio. Eu e ela: os garotos da zona leste indo todos os dias para Líbero Badaró, lá do lado daquele vale fedido. Nosso prédio era o Edifício Mercantil, um bem grande e com o topo estranho parecendo inacabado – você já deve ter visto se costuma passar pelo Centro Velho.

A gente era pontual sempre, até naquelas segundas-feiras em que estávamos de ressaca depois de voltar do Madame Satã. “Acabados, mas on time” era o nosso lema e a gente o seguia à risca. Tão à risca que, às vezes, já estávamos lá meia hora antes de bater o ponto. Quando isso acontecia, era bom. Estendíamos qualquer que fosse o assunto começado durante nossa cruzada no Metrô, que geralmente girava em torno do namoro dela, dos foras que eu levava e de algum filme bizarro dos anos 1980. Em todo o caso, ou o papo caia sobre a desgraça de se apaixonar feito um idiota ou sobre o John Carpenter. Era muito louca a nossa brisa: amor e terror.

Ela gostava de fumar antes de entrar no Mercantil. Um Hollywood vermelho. Na verdade, dois. Ela sempre fumava dois e baforava na minha cara pra me irritar. Eu fazia cena e xingava, mas na verdade não ligava muito, não. O cheiro do cigarro meio que cobria outros piores, como o de mijo e esgoto, que eram bem fortes na Miguel Couto, uma rua pequena e estreita que corta a Líbero Badaró. Era lá que ficávamos conversando antes de dar a hora, cada dia alternando entre as lanchonetes que tinham todas uns salgados meio estranhos nas estufas embaçadas. Comíamos sem medo enquanto nossas conversas seguiam entre os tragos de cigarro e a música que saía dos fones de ouvido dela – quase sempre, alguma coisa do The Clash.

Era assim até chegar a inevitável hora de subir e fazer a primeira promoção ou cobrança do dia.

Engraçado lembrar dessa época. De lá pra cá, mudaram algumas coisas. Não estamos mais naquele canto de São Paulo já faz tempo. Foi aquilo: seguimos o baile. Às vezes, passo por lá (embora nunca naquele horário tão cedo) e as memórias são essas. Nenhum grande acontecimento, nada muito “uau!”. É mais aquele negócio de sentir pelo cotidiano que passou, de ter marcado um lugar pela lembrança sem pensar muito no desfecho – este quase nunca existe. Death or glory becomes just another story, igual o Joe Strummer cantava do fone da Stephany.